A ignorância e a cobardia
No final de 2020 o mundo português espalhado pelas diferentes geografias conheceu uma nova polémica. Uma reportagem da televisão pública nacional deu destaque à Morais Vineyards & Winery, uma adega portuguesa no Estado da Virginia, nos EUA. Os vinhos desta empresa são apresentados como sendo trabalhados para preservar a “delicadeza dos sabores portugueses” na Virgínia. E há referências como a Touriga “National” (sim, com T) e o Battlefield – um “vinho verde” produzido com a casta portuguesa “Albarino”. Como se não fosse bastante, o enólogo, português e emigrante, incumbido de apresentar os vinhos, justifica o nome da região dos vinhos verdes por nela se produzir vinhos com uvas não maduras.
O setor vitivinícola reagiu intempestivamente: com ironia, sarcasmo e – nalguns casos – até com reações insultuosas.
De facto, o posicionamento da firma não respeita o conceito de terroir, constituído por uma tríade de factores naturais numa região (solo, castas e clima) e pela cultura associada à intervenção humana. De acordo com este conceito, os perfis dos vinhos são irrepetíveis noutros territórios, porque é impossível replicar todos os pilares que, conjugados, caracterizam cada região de produção. A região dos vinhos verdes é, por isso, única no mundo.
Por outro lado, os Vinhos Verdes são produzidos com uvas maduras, ao contrário do que advogou o enólogo. A designação da região tem várias explicações, existindo algumas dúvidas sobre a origem. Mas a explicação oficial e mais consensual é a de que a área tem muita vegetação, sendo a mais verdejante do país. Há ainda a questão da designação adoptada para a casta portuguesa “Albarino”. A origem da casta é dúbia, tendo chegado provavelmente em simultâneo ao Norte do Minho e ao Sul da Galiza. Mas em Portugal a casta escreve-se Alvarinho e em Espanha a designação é Albariño. Acresce que os nomes das castas são como os nomes das pessoas: não têm tradução. A Touriga Nacional não pode passar a “Touriga National” só porque é produzida na Virgínia.
Os lapsos, por cá considerados incompreensíveis num contexto profissional e competente, revelam mais do que meras imprecisões. Revelam as diferenças entre o perfil clássico dos países do velho mundo e o perfil disruptivo dos produtores do novo mundo. Aliás, a definição entre velho e novo mundo encontra na flexibilidade das regras e dos cânones um dos pontos de sustentação.
As regras foram criadas para assegurar padrões de qualidade, beneficiando todos: os produtores, que a longo prazo mantêm estabilidade e preços mínimos; e os consumidores, que sabem, ao comprar um vinho de determinada região, com o que contar. Mas no Novo Mundo, a regra parece ser não haver regras.
É antigo o debate sobre a apropriação de expressões exclusivas de alguns territórios vitivinícolas de acordo com a legislação respectiva. As denominações de origem de Champagne e do Vinho do Porto têm sido extraordinariamente combativas na defesa das suas denominações, para não deturpar a sua relevância e significado. Mas a legislação dos países de origem não é aplicável a países terceiros e os acordos comerciais com algumas nações são difíceis de obter. A China, por exemplo, continua a produzir vinho que vende como sendo “Vinho do Porto”.
De qualquer forma, o caso aqui relatado é pedagógico ainda noutro sentido. O universo dos vinhos é fechado e muitas vezes recatado em Portugal. Tem dificuldade em aceitar a diferença e, sobretudo, a fuga a determinados cânones. Mas o aproveitamento da imagem positiva das regiões ou das castas, construídas pelos cânones rígidos, também não parece um exercício sério. Ainda assim, o alvoroço provocado pelo ocorrido demonstrou nalguns casos uma falta de cortesia que não era usual no sector. Lembro-me bem de uma conversa com o Senhor Manuel Poças Pintão, da Casa Poças, que há umas décadas relatava com um exemplo o respeito entre as empresas de vinhos – que chegavam a emprestar as suas próprias marcas aos concorrentes, nos mercados em que não precisavam delas. A ignorância é triste. Mas a falta de cortesia também. E enxovalhar quem já está caído, chega a ser cobardia.