«Copo de água» é erro de português?

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Há alguns anos, num lindo fim de tarde, estava eu ali ao pé do Oceanário, onde ia passear com o meu filho e a minha sobrinha, a beber um café — quando um senhor muito bem vestido e seguro de si se chega ao balcão e diz, bem alto:

— Quero um copo com água!
Sim, o «com» foi dito com negrito e tudo.

Longe de mim criticar tal construção. Está tecnicamente correcta, tal como dizer «vou tomar uma colher com xarope» ou «passa-me a chávena com chá». Mas lá que tresanda a preciosismo, não haja dúvida. O tom do senhor bem parecia dizer: «Ó para mim a usar a construção correcta, ao contrário de tantos outros.»

Enfim, se calhar estou a ser muito injusto. Vai na volta, o senhor sempre disse «copo com água» — e gosta de sublinhar as preposições com a voz.

Seja como for, parece que algumas pessoas concluíram que, se o copo não é feito de água, só podemos usar a preposição «com»: queremos um copo com água, não um copo feito de água. Pode ser essa a razão, ou outra. O vício do pânico inventa as regras que forem necessárias…

As regras da língua, que temos cá dentro e não são fáceis de descrever, mesmo quando as usamos sem dificuldade no dia-a-dia, parecem ser mais complexas e até um pouco mais flexíveis (ah, o horror) do que essas lógicas da batata que inventamos a correr, só para termos o prazer de tomar os outros por parvos.

Afinal, quando falamos de algum tipo de material que está dentro de um qualquer recipiente, diz-nos a língua que temos cá dentro que podemos usar a preposição «de»: «um balde de areia», «um camião de tijolos», «um copo de água», «uma colher de xarope», etc.

Porquê? Porque é assim que o português-padrão funciona. Sim, exacto.
Se, no entanto, formos mais curiosos, podemos até tentar descortinar a lógica mais profunda dessa construção, por mais fugidia que nos pareça: estamos a dar mais atenção ao conteúdo e não tanto ao recipiente — falamos da areia, dos tijolos, da água, do xarope. O que vem antes (o balde, o camião, o copo, a colher) serve de medida daquilo que nos interessa (embora também sirva de recipiente, é verdade). É quase como dizer: «quero um metro de tecido» — da mesma forma, «quero um copo de água». Se vier numa chávena, não faz mal. O que nos interessa é a água: temos sede, não andamos a coleccionar copos.

O curioso é que todos os que ouvem «quero um copo de água» percebem perfeitamente a expressão: é usada em todos os registos e faz parte do português-padrão — e mesmo assim leva pancada de algumas pessoas, que enfiam uma qualquer lógica aleatória pela garganta da língua abaixo.

Uma nota final: se por acaso a língua tivesse seguido um caminho em que a preposição mais comum neste tipo de construções fosse mesmo «com», tenho a certeza de que haveria alguém a queixar-se. «”Copo com água” é um erro! O «com» só se pode usar quando alguma coisa acompanha outra, como na construção “carne com batatas”!» É um argumento absurdo? As preposições podem ter vários significados? Pois é, pois é…

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

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