Desmistificando
a Psiquiatria Infantil e da Adolescência
A Organização Mundial de Saúde estima que cerca de 20% das crianças e adolescentes apresentem pelo menos uma perturbação mental antes de atingir os 18 anos de idade (que é o equivalente a dizer, uma em cada 5 crianças). Infelizmente, apenas 1/3 a 1/5 recebe o devido tratamento. Acresce a estes, o importante dado de que 50% da psicopatologia encontrada no adulto tem início antes dos 14 anos de idade e 75% antes dos 24 anos de idade. Estes dados mostram a enorme importância da Saúde Mental Infantil e, consequentemente, da pedopsiquiatria. Temo que a pandemia tenha vindo a agravar estes números, resposta que teremos nos próximos anos.
Em Portugal, a Psiquiatria da Infância e da Adolescência é uma especialidade médica autónoma desde 1983. Dedica-se ao diagnóstico e tratamento de doenças do pensamento, emoções e/ou comportamento que afetam crianças, adolescentes e as suas famílias. Dedica-se ainda à promoção da saúde mental, a avaliação, diagnóstico e definição de estratégias terapêuticas para situações de perturbação mental e intervenção preventiva em grupos de risco. Infelizmente, como somos poucos, acabamos por nos dedicar mais ao diagnóstico e tratamento do que à promoção e prevenção em saúde mental.
A grande diversidade de apresentação dos quadros psicopatológicos durante a infância e adolescência, exige do especialista uma elevada diferenciação para permitir o diagnóstico e a implementação de intervenções adequadas às várias etapas do desenvolvimento. Não só cada faixa etária apresenta um grupo de patologias específicas, como também a expressão sintomática de uma determinada patologia se manifesta de forma distinta ao longo do desenvolvimento.
Entre os 0 e os 3 anos de idade (período peri-natal e primeira infância) a prioridade é o apoio à função parental, o rastreio de situações de risco psicopatológico e a intervenção precoce em patologias com impacto no desenvolvimento, como as Perturbações do Espectro do Autismo (PEA). As PEA exigem a organização de programas terapêuticos intensivos, prolongados, que promovam o desenvolvimento, preservem as expectativas e envolvam e apoiem as famílias.
Entre os 3 e os 10 anos de idade (idade pré-escolar e escolar) assume especial importância o diagnóstico e a intervenção em patologias com impacto no desempenho escolar, como a Hiperatividade com Défice de Atenção (PHDA), os problemas do comportamento ou as problemáticas do foro ansioso e depressivo. O trabalho de colaboração com a escola torna-se fundamental.
Na adolescência, as problemáticas da ansiedade, depressão, risco suicidário e de outros comportamentos de risco têm uma prevalência significativa. Começam a tornar-se também mais frequentes as patologias aditivas, requerendo novas especificidades ao nível da avaliação e tratamento.
Adicionalmente, em qualquer uma destas etapas, pode ser necessária a identificação precoce de situações psicopatológicas graves (como perturbações psicóticas ou do espectro bipolar). Estas perturbações, embora relativamente raras quando comparadas às mencionadas mais acima, requerem obrigatoriamente a intervenção da pedopsiquiatria e a sua deteção atempada tem importantes implicações no prognóstico.
Acrescento ainda que a pedopsiquiatria, sendo uma especialidade médica, tem um importante aporte das ciências sociais e humanas. Após primeira consulta e colocação de hipótese diagnóstica, há que delinear um plano terapêutico. Não raras vezes, fazem parte desse plano outros técnicos de saúde, com quem trabalhamos lado-a-lado, numa perspetiva colaborativa e complementar. Isto acontece porque os problemas de saúde mental da infância e adolescência são variados e complexos, o que exige uma resposta diferenciada, traçada caso-a-caso. Apesar da constituição das equipas de pedopsiquiatria ser muito variada, estas deveriam ser sempre constituídas por pedopsiquiatras, psicólogos, enfermeiros especialistas em saúde mental, técnicos de serviço social, terapeutas ocupacionais, terapeutas da fala, psicomotricistas, técnicos superiores de educação especial e reabilitação, entre outros. Num mundo ideal (na minha pedopsiquiatria ideal) gostava ainda de contar com a presença de outras especialidades médicas, sobretudo a pediatria e psiquiatria, com quem articulamos muitas vezes de forma informal.
As vantagens do trabalho em equipa são enormes mas gostaria de destacar a possibilidade de assim oferecer intervenções mais específicas, centradas na necessidade de cada criança e família, a capacidade de encontrar soluções mais criativas para problemas mais difíceis (duas, três ou quatro cabeças pensam melhor que uma…) e, na minha opinião, o trabalho em equipa tem também um papel importante na prevenção do burnout associado a quem trabalha em saúde mental (a partilha de decisões e o encontrar de soluções conjuntas tornam o trabalho mais leve, e recompensador).