Fernando Namora-Parte II

Uma Autobiografia Disfarçada ou Os Outros que o Fizeram

«É sempre de nós que falamos», escreve Fernando Namora na sua Autobiografia. Uma biografia que, justamente, se faz com a narrativa das pessoas ao seu redor. Conhecendo-as, adentramos no autor e na sua obra, que parece procurar camuflar-se, desvelando-se no próximo: «conheço melhor o alheio e o conhecimento do alheio permite-me conhecer melhor o que sou e o que somos». (Jornal sem Data, p. 38). E, talvez por isso, inicia a sua autobiografia a falar-nos de alguém que não ele: Calhica. Calhica é, tomando as suas palavras emprestadas, uma idosa mulher castiça.

Outrora contrabandista, dedicou-se mais tarde a acompanhar turistas em Monsanto. E nesses encontros com turistas fala-lhes de Fernando Namora e do seu heroísmo. Um heroísmo efabulado, que envolve contrabando, militares, balas e uma interposição de Namora entre estas e o corpo de Calhica. Poucas páginas adiante, fala da sua infância também através de outros. Confessa mesmo que se lembra mais das pessoas: «Que foram, pois, os meus verdes anos? Repito: lembro-me de muito pouco. Ou seja: não me lembro de mim, apago-me secretamente. Lembro-me mais das pessoas, de certas pessoas.» (Autobiografia, p. 12).

E enumera-as. Fala do Padre-Boi, alcunha de João Antunes, amante das artes que financiava uma Escola de Artes e Ofícios para os jovens do concelho de Condeixa. Fala também do seu vizinho Gabriel, alfaiate e leitor voraz, assim como de Joaquim Melâneo, pintor. Voltará a referir-se a estes, num encontro cuja intervenção se encontra na obra Sentados na Relva: «Condeixa dos prados, das azenhas, dos arroios da minha infância, onde homens como Joaquim Melâneo e António Moita me ensinaram a descobrir a beleza nas coisas e a tentar fixá-la numa tela, e outros, como o meu vizinho Gabriel e João Lóio, me revelaram o mundo daqueles livros onde se falava de gente verdadeira (…).» (Sentados na Relva, p. 157).

É desta gente verdadeira que também ele vai falar, nas suas obras. É esta gente verdadeira que dará o nome de neorrealismo à corrente literária em que a sua obra se insere.
Namora chama a si e aos seus conterrâneos «(…) filhos de uma terra de artistas – e talvez seja esse molde uma das explicações para a instabilidade inquieta, para o fascínio pelo desconhecido, pela aventura, pelo risco e até pelo drama que têm caracterizado muitos dos que aqui foram nascidos.» (Sentados na Relva, p. 157) Características não apenas alheias, mas próprias também. E determinantes para si e para a sua obra: «Um escritor tem de ser antes de mais uma sensibilidade e uma inquietude que se descobrem.»

(Encontros, p. 226) Retomando a sua Autobiografia como bússola neste percurso interpessoal, Fernando Namora fala logo de seguida dos seus pais: «Meu pai era o viageiro de sonhos (…) minha mãe era o real, a vida olhada de frente.» (Autobiografia, p. 15). O pai, que quase todos recordamos do poema Um Segredo, «tinha sandálias de vento» (Nome para uma Casa, p. 18), e a quem Namora confessa grande admiração. De facto, o outro sempre lhe provocou admiração: «(…) sei que toda a vida senti o deleite de admirar. Admiro sem escolher entre os que humanamente me justificam simpatia ou antipatia. (…) A admiração sou eu que a saboreio, é um prazer meu, não deles.» (Autobiografia, p. 19). E mais adiante volta a enumerar as diversas figuras com quem, como diz, teve o privilégio de conviver: Professor Gentil, Jaime Cortesão, Sérgio, Aquilino, João de Barros, Fernando da Fonseca. (Autobiografia, p. 37). E percebemos que este curto texto, a que se chamou Autobiografia, tem mais dos outros que de si próprio. Ou tem, por outro lado, a humildade e sabedoria de quem se sabe a construir-se com os outros, sejam eles rurais ou citadinos, homens do campo ou das letras, amigos ou pessoas com quem não se identifica.

Mas sabe, e di-lo, a lembrar Ortega y Gasset, que «Cada pessoa é o que é e mais aquilo que lhe vão acrescentando.» (Encontros, p. 195). Fernando Namora soube acrescentar-se e deixou que lhe acrescentassem. E se na sua Autobiografia fala dos demais, ao longo dos seus romances descortinamo-lo nos detalhes das personagens que nos traça. Importa ao leitor separar o trigo do joio, a ficção da realidade, e saborear ambas.
«— Avô, que é ser escritor?
Repito a resposta que te dei há pouco:
— É por aqui no papel o que precisamos de dizer às pessoas.
E depois?, perguntarás. Depois cada um lerá no que escrevemos mais ou menos o que lá deseja encontrar. A simpatia ou a antipatia vêem coisas diferentes nas mesmas coisas. E todo o escritor escreve para quem o ama e para quem o detesta. A partir de certa altura, como um céu tempestuoso serenado na distância, tudo isso, aliás, se desvanece: o escritor vai sentindo que a sua porfia é fundamentalmente uma aposta no futuro.» (Estamos no Vento, pp. 84-85)

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