Fernando Namora-Parte I

O Mundo é Mudança, não há geografias fixas, mas há raízes profundas

«Ó vila do meu nascer,
assim sonolenta e calma:
que uma onda do teu sono venha temperar
o mar encapelado do meu sangue
em fogo.»
(Retratos de Família, As Frias Madrugadas, p. 151)

Há muitas biografias num só corpo. Há também várias geografias. Falar de Fernando Namora implica falar de espaço, de Portugal, sobretudo. De um Portugal genuíno, rarefeito nos dias de hoje.

Um Portugal de dor, fome e cansaço, mas também um Portugal de esperança e de amor à terra. Condeixa foi berço, Coimbra molde, Monsanto nave, Pavia uma fascinação de cal e de silêncios extasiados, e Lisboa, a cidade, um arquipélago de ilhas sem ponte, um formigueiro em pânico e tantas vezes, o silêncio. A obra de Fernando Namora funda-se em vários caminhos e várias facetas, numa vida complexa de quem precisou conciliar o amor pela arte e pela literatura com a profissão de médico.

Ou a quem a profissão de médico concedeu um conhecimento enriquecido nas dores de corpo e de alma, de terras e gentes. Terras rurais, do interior de um Portugal quase esquecido — montanhoso, plano, desmesuradamente frio ou torridamente quente — mas também do Portugal urbano — Coimbrão e Lisboeta. E Namora quis dar-nos conta de tudo isso:
«Gostaria de vos contar coisas dessa gente. Coisas da vila, do Alentejo cálido e bárbaro e dos heróis que lhe dão nervos ou moleza, risos ou tragédia. (…) E gostaria de vos falar ainda dos trigos e dos poentes incendiados, dos maiorais e dos lavradores, do espanto dos dias, do apelo confuso da terra, da solidão.»
(Namora, O Trigo e o Joio, pp. 22-23)

Estas linhas resumem bem o movimento literário neorrealista em que Namora se inscreve mas, acima de tudo, o que o faz inscrever-se nele: a atenção e a proximidade à terra e a quem a vive e nela vive. É justamente da terra, do território, que julgamos necessário falar ainda, quando já tanto se disse a propósito deste autor.
Filho de António Mendes Namora e de Albertina Augusta Gonçalves Namora, camponeses da aldeia de Vale Florido, no concelho de Ansião. Para tentarem melhorar a qualidade de vida os pais abandonam a agricultura e abrem no rés-do-chão da casa que vêm a habitar em Condeixa uma retrosaria.

Fernando Gonçalves Namora nasce assim em Condeixa, a 15 de abril de 1919, naquela que é hoje a Casa-Museu com o seu nome. Aí viveu durante os primeiros dez anos de vida, até completar a instrução primária na Escola Masculina Conde Ferreira (hoje Galeria Manuel Filipe). A continuidade dos estudos leva-o para fora de Condeixa, primeiro para Coimbra, depois para Lisboa e novamente Coimbra. Findo o curso de medicina chega a abrir um consultório em Condeixa, mas por breves meses. E novas deambulações se seguem: desce «degraus no mapa, da Beira Litoral para a Beira Baixa, desta para o Alentejo» e depois para Lisboa.

Seria fácil esquecer uma vila pequena, no litoral do país, onde se viveu a infância e as férias escolares. Seria fácil também compará-la e diminuí-la, com todos os lugares que conheceu. Mas se a comparou, foi sempre para a engrandecer, foi sempre para a sublinhar modelo: «(…) a minha terra, a sua paisagem e a sua gente estão mais próximas de uma vida feliz. Cultivando a amizade, a colaboração, o otimismo, vão mais longe e vivem mais intensamente. (…) Da distância lhes envio este abraço.»
(Revista das Beiras, Ano II (Jan-Jun), p. 12).

Em meio século de vida literária (1938-1988), Namora deixa-nos trinta e duas obras publicadas, algumas delas com adaptação ao cinema. Falamos de Retalhos da Vida de um Médico (que originou também uma série televisiva), O Trigo e o Joio e Domingo à Tarde. Deixa-nos inúmeras pinturas, também. Uma obra vasta de quem conseguiu a magia de ser aliado do tempo; magia essa que é trabalho e sacrifício familiar, tantas vezes:
«— Para que escreves?
Esse “para que” desarma-me, encoraja-me a desertar. Mas se, apesar de tudo, resisto, se mostro preferir os silêncios e a detestada máquina à vossa companhia, recorres a outras armas mais capciosas:
— O avô já escreveu tudo?
E, nesse ponto, rendo-me. Para meu alívio e satisfação de ambos. Agora, porém, o que tenho para pôr no papel é um modo de permanecer convosco, de dilatar estes dias efémeros.»

(Estamos no Vento, pp. 23-24)

Em Condeixa, sua raiz mais profunda, sua matriz, a Casa-Museu Fernando Namora tenta preservar esse tempo de criação artística e literária, mas também esse tempo familiar. Constitui-se em quatro núcleos fundamentais: o núcleo de pintura da autoria de Fernando Namora; o núcleo artístico composto por obras de outros artistas que doaram as suas obras a Namora, com pintura e escultura; o fundo documental que inclui manuscritos, apontamentos originais, livros publicados e anotados e, por último, o escritório transferido da sua residência em Lisboa, que nos transporta para o ambiente de trabalho de Fernando Namora, mas também para os seus laços afetivos e familiares, com objetos trazidos das suas viagens e fotografias de amigos e familiares, numa relação íntima entre o que o leitor conhece do autor e o estreitamento à sua vida privada. Condeixa foi berço e infância, primeira cofragem de Namora, e é hoje também lugar privilegiado de diálogo sobre este homem multifacetado.

Parte II

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