Natal

O Natal tem preguiça de se ir embora. Sempre que se tenta despedir, a mãe enlaça-o nos seus braços de anaconda e sussurra-lhe ao ouvido, meu filho, não deixes de brilhar. O Natal é filho adoptivo e o único abraço materno que conhece é o desta mulher-árvore, iluminada pelas luzes artificiais de olhares alheios que a embelezam e envaidecem em doses iguais. Atrás dos enfeites, dos embrulhos e dos sorrisos, é uma mulher igual às outras, capaz de gerar filhos; porém nunca quis engravidar, achava que já havia crianças em demasia no mundo, era preciso reduzir a população e salvar da miséria e da subnutrição física e afectiva esses pobres inocentes que tinham nascido sem o pedirem. Natal cresceu sem pai, pois a mulher vivia sozinha num casarão, na companhia de vinte e sete gatos que iam e vinham, procriavam, brigavam e enchiam os soalhos, os sofás e as almofadas de pelos. Cedo se apercebeu de que ela se alimentava de luz; comia pouco, quase nada, bebia cerveja atrás de cerveja, embriagava-se de recordações, vestia-se a preceito como uma diva da ópera e cantava para as paredes e os felinos, sempre atentos. Rematava com uma vénia a uma assistência imaginária. Natal era bom aluno, bem-comportado, não dava trabalho nenhum, nem à mãe nem aos professores. Aprendeu a cozinhar cedo, fazia as refeições e a limpeza, além dos trabalhos de casa. Sonhava correr mundo, pertencer aos Médicos Sem Fronteiras e salvar crianças de catástrofes várias. Mas sempre que se tentava despedir, os braços da mãe voltavam a enfeitiçá-lo.

Tinha medo de perder o brilho caso se afastasse dela. E sabia que, uma vez liberto, jamais voltaria. Por isso ficava, a piscar, luz débil de uma estrelinha desgarrada.
Natal ganhou coragem e deixou a mãe alcoólica, os gatos incestuosos e a mansão decadente, onde a humidade laborava, incessante, emprestando às paredes uma rede capilar que se estendia às canalizações e aos ossos das vigas mestras. Percorreu estradas desertas, atalhos no meio dos bosques, ribeiros, povoações perdidas nos caminhos, e no céu nocturno a estrela da manhã indicava-lhe o destino. Chegou à cidade três dias depois. Mergulhou nas ruas junto ao porto, pejadas de mendigos, cães vadios, ladrões, drogados, putas e chulos. Em breve se tornou um membro daquela pequena comunidade diversificada, unida na miséria e num espírito de fraternidade que ele jamais conhecera. Fez amizade com uma anã de dimensões perfeitas que se contorcia em posições acrobáticas de tirar o fôlego aos transeuntes, enquanto ele tocava acordeão. A chuva de moedas que caía no cesto junto aos seus pés era suficiente para lhe manter viçosas as mãos e as articulações da bailarina. À noite, a moça esquecia estas habilidades e entregava-se aos clientes que pagavam um extra para foder uma anã de proporções harmoniosas, uma raridade, porventura satisfazendo algum apetite secreto de pedofilia. Natal deixou crescer a barba, que rapidamente se encheu de fios brancos, para perplexidade geral. Começaram a chamar-lhe Pai Natal, por graça, e o nome pegou.

(excerto de História de Natal, publicado na colectânea de contos Espécies Protegidas, editora On y va, 2021)

A autora não aderiu ao novo acordo ortográfico

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