O Grito Silenciado

A Desvalorização do Voto Emigrante e o Futuro da Democracia Portuguesa

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Este artigo reflete a voz e o sentimento de milhares de portugueses que, espalhados pelos quatro cantos do mundo, vão partilhando com a Associação Internacional dos Lusodescendentes (AILD) as suas preocupações e frustrações. Nestas recentes eleições legislativas, um sentimento agridoce pairou, uma vez mais, sobre a comunidade portuguesa global. Se, por um lado, o ato de votar representa a ligação inquebrável a Portugal, por outro, a forma como o voto dos emigrantes é tratado – ou, mais precisamente, destratado – deixou um amargo de boca que urge ser debatido e, acima de tudo, corrigido.

É inegável que a participação dos portugueses residentes no estrangeiro no processo eleitoral é crucial para a vitalidade da nossa democracia. São milhões, com histórias de vida diversas, mas unidos por uma língua, uma cultura e um profundo amor por Portugal. No entanto, a forma como o voto dos emigrantes é encarado pelas instituições políticas nacionais parece refletir uma desvalorização que beira a negligência.

Um dos pontos mais flagrantes e revoltantes é, sem dúvida, o atraso incompreensível na contagem dos votos após cada ato eleitoral. De que serve o esforço em participar, em cumprir o dever cívico, se os resultados que ajudam a construir só são apurados dez dias depois do restante território nacional? Este desfasamento temporal não é apenas uma questão logística; é um sinal claro de que o voto, a voz dos emigrantes, é considerado de menor importância. É como se lhes dissessem: “Vocês votam, mas o que vocês decidem pode esperar.” Esta atitude, para além de desrespeitosa, mina a própria essência da democracia, onde cada voto tem igual peso e urgência.

A questão da representatividade dos deputados é outro pilar da desvalorização. A forma como os círculos eleitorais da emigração estão configurados, e o número de deputados que os representam, não reflete a dimensão e a complexidade da comunidade portuguesa espalhada pelo mundo. Sentem-se claramente sub-representados, com a voz diluída num sistema que parece não reconhecer a nem a força nem as suas necessidades específicas. Os deputados eleitos pela emigração, embora dedicados, enfrentam um desafio hercúleo para dar resposta a uma comunidade portuguesa espalhada pelo mundo tão vasta e heterogénea, com problemas e aspirações que, muitas vezes, diferem daqueles do território nacional. A sua capacidade de intervenção e influência é, por vezes, limitada pela própria arquitetura do sistema.

Não podemos ignorar também as dificuldades inerentes ao próprio ato de votar. A burocracia, a distância dos consulados, a falta de informação clara e acessível, os serviços dos CTT ou os correios locais de cada país que por vezes não funcionam, tudo contribui para afastar potenciais votantes. Muitos sacrificam tempo e recursos para exercer o seu direito, apenas para se depararem com obstáculos que tornam a experiência frustrante.

Chegamos, assim, a um ponto crítico. Se queremos uma democracia verdadeiramente inclusiva e representativa, é imperativo que o voto dos emigrantes seja valorizado e respeitado. Não podem continuar a ser tratados como cidadãos de segunda classe, cujo contributo é secundário ou meramente simbólico.

Soluções para o Futuro: Um Roteiro para a Valorização do Voto Emigrante

Mas, face a este cenário, não podemos apenas lamentar. É tempo de apresentar contributos e propostas concretas para o futuro, que permitam alterar o sistema eleitoral, e que garantam que as próximas eleições sejam um verdadeiro reflexo de uma vontade coletiva:

Agilização e Modernização do Processo de Contagem: É inaceitável que, na era digital, a contagem dos votos da emigração demore tanto tempo. É urgente investir em sistemas mais eficientes e seguros, que permitam o apuramento dos resultados em tempo útil, simultaneamente com os do território nacional. A tecnologia oferece soluções que podem ser implementadas, desde o voto eletrónico seguro e auditável, até à digitalização e agilização dos processos de contagem.

Revisão dos Círculos Eleitorais e Aumento da Representatividade: É fundamental repensar a configuração dos círculos eleitorais da emigração, garantindo que o número de deputados reflita de forma mais justa a dimensão das comunidades portuguesas. Uma análise aprofundada da distribuição geográfica e do número de eleitores por cada região do mundo é crucial para uma representação mais equitativa e eficaz.

Facilitação do Voto e Aumento da Acessibilidade: As opções de voto devem ser alargadas e facilitadas. Para além do voto presencial nos consulados, deve-se reforçar a opção de voto por correspondência, tornando-a mais simples e segura. A possibilidade de voto eletrónico, com as devidas garantias de segurança e transparência, deve ser seriamente explorada.

Campanhas de Informação e Sensibilização: É essencial que as autoridades portuguesas invistam em campanhas de informação claras e abrangentes, dirigidas aos emigrantes, sobre os seus direitos e deveres eleitorais, os prazos, os métodos de voto e a importância da sua participação. Esta informação deve ser multilingue e acessível através de diferentes canais.

Apoio e Recursos para os Deputados da Emigração: Os deputados eleitos pelos círculos da emigração necessitam de mais apoio e recursos para desempenharem eficazmente as suas funções, dada a vastidão e complexidade da sua base eleitoral.

O voto dos emigrantes não é um favor; é um direito fundamental. É a expressão da ligação indissolúvel a Portugal e da vontade de contribuir para a construção de um país mais justo e próspero. Os emigrantes apelam assim aos decisores políticos que ouçam este grito, que reconheçam a importância da voz dos emigrantes e que implementem as reformas necessárias para garantir que, no futuro, o voto de cada português, independentemente do local onde reside, seja verdadeiramente valorizado e respeitado. Só assim a nossa democracia será plena e o grito silenciado das comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo, finalmente, ecoará nas urnas.

1 Comentário

  • Frank Ferreira
    3 semanas ago Publicar uma Resposta

    Parabens!

    Não podia estar mais de acordo. Vamos colaborar e mudar esta situação.

    Saudações calorosas,
    Frank

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