CPLP

Uma Comunidade de Afectos

Sempre me fascinou o relato da chegada de Diogo Cão ao Reino do Congo e o modo como foram, então estabelecidas as relações entre os dois reinos, num plano de igualdade, com os congoleses a pedir aquilo a que hoje se chamaria a cooperação portuguesa em áreas que avaliaram poder contribuir para o seu desenvolvimento.
Particularmente notório é o pedido do rei congolês para que o seu filho fosse trazido para Portugal para aqui conhecer o modo de vida do nosso reino. Foi recebido e tratado na corte de Lisboa como um Infante, sem qualquer preconceito racial.
Lembrou-me isso um vídeo da BBC, que um amigo me mandou, onde um historiador inglês mostra e comenta o célebre quadro do Chafariz del Rey , onde se dá conta da densidade da população africana em Lisboa no século XVI. O propósito do vídeo é justamente mostrar que naquele tempo , o auge do Império comercial português, as relações entre Portugal e a população dos territórios que ia encontrando na sua expansão não eram dependentes de preconceitos racistas. Ali vêem-se negros a exercer as mais diversas profissões, juntamente com europeus. Certamente alguns eram escravos. Mas também os havia brancos. E assinala particularmente o facto de se passear a cavalo um negro de espada à cinta e hábito de cavaleiro de Santiago, predicados exclusivos da nobreza. O que confere ao quadro uma contemporaneidade à século XXI, em que por todas as cidades encontramos um ambiente cosmopolita e multi-racial, embora prevaleçam preconceitos que talvez no século XVI não fossem ainda sentidos.
Este quadro ilustra uma expressão da expansão portuguesa que o historiador britânico qualifica como a primeira globalização. Exibe também uma época que talvez se possa dizer de inocência, que infelizmente não perdurou.
A colonização portuguesa teve todos os atributos negativos do colonialismo, que se pode resumir na opressão de um povo sobre outro. Quem como eu ali tenha vivido antes da descolonização não poderá ter dúvidas.
Mas a intensa miscigenação que a caracterizou talvez tenha contribuído para malhas sem-paralelos que o Império português teceu. Outros factores se juntaram para criar uma abundância de laços entre os portugueses que andaram pelos quatro cantos do mundo, por lá se deixaram ficar, ou de lá voltaram com tão diversas memórias que enriqueceram a nossa identidade.
Na Ásia essa ligação teve um carácter distinto. Quer, talvez sobretudo na Índia, pela integração dos locais em todas as classes sociais, o que leva a que um goês nos diga orgulhoso que o seu tetravô foi agraciado com a Cruz de Cristo. Quer pela religião, o que faz que, mesmo onde Portugal não teve uma presença física permanente, muitos católicos tenham nomes portugueses, e que na península Malaia, onde falam o crioulo papiá kristáng, uma espécie de Português do século XVI , que por isso consideram sinónimo de português, nos venham dizer, com júbilo, que são portugueses, como várias vezes ouvi.
No Brasil, quer se queira quer não, pela impossibilidade de mudar os avós e as memórias que deles permanecem, (li numa estatística brasileira que 180 milhões de brasileiros têm ascendência portuguesa, não necessariamente exclusiva), mas também pelo nível que ali alcança o culto da língua e da História comum.
Em África a proximidade das guerras estúpidas e inúteis que ali travámos, estão inevitavelmente presentes. Apesar disso, e da convivência também recente, subsistem laços fortes e diversos, na língua, na educação, nos hábitos partilhados do dia a dia. Até em memórias, nem sempre felizes, mas que nos aproximam no convívio pessoal.
Estava pois a meu ver certo Adriano Moreira, esse grande português que para sempre perdurará na memória da portugalidade, quando dizia que a CPLP era uma comunidade de afectos. Se é relevante que a sua actividade se desenvolva em áreas de interesses comum, direi que essa complexa malha de afectos talvez seja o principal cimento que a liga. Recordo quando em Nova Iorque, recém liberado da Indonésia, num almoço com os ministros dos negócios estangeiros da CPLP, Xanana falava dos anos da resistência timorense, totalmente isolado numa região que lhes era hostil, em que apenas contavam com a solidariedade dos países de língua portuguesa.
O elevado número de países que se candidataram a observadores na CPLP, mostra que essa comunidade de países ligados por uma língua comum tem expressão internacional.
Teve-o de modo claro e decisivo quando Graciano da Silva foi eleito Director-Geral da FAO, por quatro votos, ou seja, graças aos oito votos da CPLP. As primeiras palavras que proferiu após a eleição, foi justamente para agradecer os votos da CPLP e exaltar a sua relevância, ali acabada de revelar pela primeira vez perante todos os membros das Nações Unidas. Facto que o governo português de então e a nossa comunicação social tiveram o cuidado de não publicitar.

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

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