O vinho de Kant

A razão e a sensibilidade

O mundo dos vinhos está repleto de especialistas, técnicos e experientes que usam uma linguagem hermética, que têm opinião sobre tudo e que raramente têm dúvidas. E de tal forma assim é que a gramática portuguesa ficou mais rica, com o surgimento de uma nova expressão para descrever essas pessoas: os enochatos. Os enochatos são aqueles amigos que, nos jantares, não deixam ninguém falar enquanto não debitam toda a informação que recolheram sobre o vinho que eles próprios escolheram para, precisamente, poderem falar sobre o assunto. São os escanções (ou sommeliers) que corrigem as escolhas dos clientes e lhes dizem que estão enganados no seu gosto pessoal. E são muitos produtores para os quais o seu vinho foi feito com toda a mestria e o dos concorrentes está carregado de defeitos.
Hoje, como na política, no futebol e no marketing das empresas, não faltam especialistas – alguns vazios de conteúdo, mas com uma volúpia que lhes dá lindas formas de afirmação social. Para muitos, o vinho mais não é do que um instrumento para se posicionarem perante os outros. É claro que podemos debater: sempre que alguém utiliza expressões técnicas está a afirmar-se exageradamente? Claro que não. Do ponto de vista técnico há um conjunto de expressões que têm significados muito precisos e que ajudam os profissionais a comunicar melhor o vinho e tudo o que está por trás dele.
Discute-se muito sobre se a prova é objectiva ou subjectiva. Há profissionais com padrões diferentes. Há críticos internacionais que valorizam mais um perfil de vinhos do que os outros. Mas também há críticos que pontuam os vinhos de forma muito aproximada quando o provam de forma cega, em circunstâncias diferentes. Significa isto que existem padrões estáveis de avaliação qualitativa, que dependem de factores variados: o equilíbrio entre componentes como a acidez, açúcar residual, estrutura ou ph; a elegância; a potência; a ausência de defeitos; a longevidade… Mas também é certo que para os consumidores, como vulgarmente se diz, “o vinho é bom quando nos sabe bem”. Os vinhos têm circunstâncias, têm momentos, têm uma envolvente que exige características próprias. Ninguém se lembra de pedir um vinho tinto cheio de estrutura, com muita extracção, fruta compotada e madeira quando está à beira de uma piscina. Por incrível que pareça, na discussão entre a objectividade ou a subjectividade da prova de vinhos, o equilíbrio talvez resida em Kant. Entre os racionalistas (que têm uma justificação científica para tudo) e os empiristas (para quem é a experiência que permite desenvolver o mundo) há uma síntese que constitui um saudável meio termo.

Como diria Kant, o vinho tem uma paleta cromática específica, é constituído por aromas particulares, apresenta uma textura própria, etc. Mas esse conteúdo só é cognoscível e faz sentido com a sensibilidade e as capacidades subjectivas do provador, que o enquadram por exemplo num tempo e num espaço próprio. O mesmo é dizer que não acredito em profissionais do vinho sem o entendimento, sem a razão que introduz conceitos; mas também não acredito em profissionais competentes sem sensibilidade, intuição e experiência pessoal.
Uma coisa é certa. Assim como Immanuel Kant foi disruptivo para a filosofia, também o sector dos vinhos precisa de abandonar estereótipos balofos. Precisamos cada vez mais de pessoas sérias, com fundamento técnico e com um espírito aberto ao mundo, num mercado onde sobram profissionais e enófilos que já sabem tudo ou, pelo menos, sabem mais do que todos os outros.
Um exemplo? Há um par de meses fiz uma prova de alguns dos vinhos mais caros produzidos em Portugal. Nessa prova estava um sommelier-vedeta, daqueles que ditam as regras e têm seguidores. Esse sommelier caracterizou o vinho e sentenciou que um dos vinhos estava com bret (um defeito que, consoante a intensidade, provoca notas de couro, suor de cavalo ou até guache). Ao fazê-lo, interrompeu a prova: não tinha tempo para estar ali a provar aqueles vinhos. Ora, o “defeito” era acidez volátil (não era bret). E os vinhos também eram complexos, elegantes, frescos e mereciam ser provados com todo o tempo do mundo.
Uma crítica rápida pode destruir o trabalho de anos de um produtor. E ninguém nasce com tudo ensinado. Aliás, aqui estou com Sócrates (o antigo, claro): só sei que nada sei e, sabendo que nada sei, talvez saiba mais do que quem não sabe que nada sabe.
Produzir vinho pressupõe um conjunto de conquistas difíceis, sobretudo quando queremos produtores sérios, que deixam a Natureza trabalhar. Há anos que correm bem; outros que podem ser piores. Mas merece sempre respeito quem trabalha com foco na consistência e no longo prazo, com vontade de aproveitar a Natureza e transformá-la em algo melhor. Temos poucas pessoas disponíveis para fazer e demasiadas prontas a criticar. Definitivamente, o mundo dos vinhos precisa de mais filosofia: aceitando as dúvidas, respeitando os outros e, entre a razão e a sensibilidade, procurando incessantemente a Verdade. Não aquela Verdade que se impõe; mas a Verdade de espírito aberto ao mundo, que abraça a diversidade. Afinal, não é costume dizer-se que in vino veritas?

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