Os homens que queriam ser – e foram – reis do Pegu
Parte II

Se em Lisboa nada consta acerca da vida e obra de Filipe de Brito e Nicote, em Guimarães testemunha a existência de Salvador Ribeiro de Sousa – se bem que por via indirecta – a Rua do Rei do Pegu, que do centro histórico da cidade foi transladada para uma artéria periférica. Certo é que os Bombeiros Voluntários locais merecem ter o seu nome associado a uma das ruas mais nobres de Guimarães, mas seria mesmo necessário despromover dessa forma a memória de Salvador Ribeiro de Sousa?
Sobre o relacionamento desta dupla de aventureiros não há certezas e prevalece, como se disse, a tese da subalternidade de Sousa em relação a Nicote, sendo este último infinitamente mais ambicioso, como adiante se verá. Em termos de valentia parece não restarem dúvidas quanto à predominância do minhoto. E para realçar este e outros factos, regressemos a Sirião, que não teve uma história pacífica.
Insatisfeito com o seu quinhão, Filipe de Brito da feitoria fez fortaleza – e, em revolta aberta contra Arracão, não só se assenhorou da zona do delta e da sua população, como tentou apoderar-se dos portos de mar de Cosmim e Martavão, locais onde projectara erguer fortalezas também. Assegurar a posse dessa zona estratégica equivalia à possibilidade de controlar toda a região, como, de facto, o fizeram os portugueses.
Filipe de Brito soube conquistar a simpatia dos soberanos de etnia mon; preocupando-se em povoar as terras ermas, ofereceu-as depois, isentas de impostos, aos seus habitantes. Assim, em redor da fortaleza foi crescendo a povoação. Em Outubro de 1602, haveria no Sirião, sob guarida portuguesa, entre catorze a quinze mil pessoas. Indignado perante ousadia e abuso dos lusitanos, o rei de Arracão reagiu e, suportado por alguns do seus aliados, desferiu vários ataques aos agora rebeldes portugueses. Salvador Ribeiro de Sousa, à frente dos destinos da fortaleza de Sirião – pois Brito partira entretanto para Goa, precisamente para anunciar a disponibilidade em colaborar caso o Estado da Índia decidisse posicionar-se militarmente no Golfo de Bengala –, distinguiu-se de forma brilhante nos feitos de armas. Apenas com um punhado de homens repeliu com sucesso diversas incursões das tropas inimigas que, por terra e por mar, assolaram Sirião. Esta e outras proezas – como uma vitória conseguida sobre um tal ‘Rei Massinga, na província de Camelan’ – correram pela região e os locais não só ter-lhe-ão atribuído o título de ‘Rei do Pegu’ como foram muitos os que se quiseram juntar às suas fileiras. Há quem garanta, porém, que o tão honroso título se destinava a Brito, e como ele estava ainda ausente, Salvador aceitara-o em seu nome, mas logo o remetera a Nicote que, de novo ao comando dos destinos do Sirião, dedicado a distinção ao rei comum de Espanha e Portugal, pois, vivemos então em plena União Ibérica.
Cumprida a sua missão, Ribeiro de Sousa regressou a Portugal, onde pode disfrutar da sua imensa riqueza passando o resto dos seus dias na aldeia natal. O seu corpo jaz hoje na casa de capítulo de um pequeno convento franciscano em Alenquer, aonde uma inscrição evoca o seu nome e a sua história. Sousa é apodado por alguns escritores portugueses de Marco Aurélio da Decadência da Índia, e mais de um poeta cantou os seus louvores.


Verdadeiro ‘lançado’, senhor do seu destino, Filipe de Brito manteve-se no Sirião, sonhando ainda com a criação de um estado equivalente ao Estado da Índia, em pleno coração do Sudeste asiático. O rei de Ava, porém, estragar-lhe-ia os planos. Em 1613, após um prolongado cerco à feitoria-fortaleza portuguesa, pôs fim ao reinado do capitão. A Filipe coube-lhe a cruel morte por empalação, tendo passado “três dias em agonia antes de perecer”, como relatam as crónicas da época.
Faria de Sousa diz-nos que não era intenção inicial do monarca avanês poupar a vida aos habitantes de Sirião, mas que, “depois de acalmado, decidiu enviá-los para norte, para Ava, como escravos”. Um trajecto de mais de setecentos quilómetros, percorrido a pé pelos seguidores de Filipe de Brito e Salvador Ribeiro de Sousa, que, nas palavras do cronista, “eram constituídos por portugueses, euro-asiáticos, negros e malabares”. Totalizavam alguns milhares, entre os quais apenas quatrocentos seriam inteiramente portugueses.
Este quantitativo é, no entanto, fortemente contestado por quem se debruça com mais atenção sobre o tema em causa. Ao que consta o número de portugueses seria bem mais elevado, e nessa penosa jornada tiveram o apoio moral e a companhia dos franciscanos Gonçalo Machado e Manuel da Fonseca… Este último terá enviado uma carta, datada de 26 de Dezembro de 1616, ao vice-rei de Goa, relatando as dificuldades pelas quais passaram os prisioneiros nessa jornada.
Em 1635, partiria para Ava o dominicano e lisboeta Agostinho de Jesus, ao saber que ali se encontravam quatro mil cativos, desprovidos de qualquer assistência espiritual.
A comunidade cristã ter-se-ia entretanto multiplicado. Para prevenir uma proliferação excessiva, o soberano avanês seleccionara os mais dotados na arte bélica e integrara-os na sua guarda pessoal, exilando os restantes para a povoação de Preinma, na margem leste do rio Chindwin, afluente do Irrauadi. Daí, seriam enviados para o vale do Mu, onde fundaram oito aldeias, sendo autorizados a praticar livremente o seu culto. Trabalhavam as terras livres de impostos, sendo requisitados para o exército em tempo de guerra.


O cronista António Bocarro refere, a propósito, que “ficaram cativos d’el rei e foram postos em aldeias ou espalhados pelo reino. Como cativos eram invioláveis, padecendo o único mal de não poderem sair do país”. Incorporados em unidades militares hereditárias de elite, constituíram até ao fim do século XVII a base da artilharia do II Império Tangu.
Mas Agostinho de Jesus e Gonçalo Machado foram excepção à regra, pois o Estado da Índia ignorou sempre os insistentes apelos no sentido de serem enviados padres para o interior, ficando a comunidade irremediavelmente abandonada à sua sorte durante quase meio século. Seriam os padres barnabitas italianos quem colmataria a lacuna e estruturaria o catolicismo, fundando escolas, onde se ensinava, para além do português, o latim e o italiano. No processo, criaram tipografias, onde eram impressas gramáticas, compêndios de história e dicionários, entre os quais um dicionário de latim-português-birmanês, ao mesmo tempo que faziam constantes pedidos para que da europa lhes enviassem livros em português.
Graças aos barnabitas, a nossa língua foi uma realidade na Birmânia até ao final do século XIX, tendo, a partir de então, caído no total esquecimento. Sabe-se também que os portugueses continuaram a gozar de um estatuto privilegiado junto da corte de Ava, graças a relatos de enviados europeus, que, por exemplo, mencionavam a presença do armador Simão de Vargas, “que falava fluentemente o birmanês e o siamês”, e de António Camarata, chefe da guarda-real, que “tinha autorização para andar armado na presença do rei”.
Fruto do trabalho dos barnabitas, são recordados ainda hoje ilustres filhos da terra, como Ambrósio de Rosário, que em Roma foi cirurgião reputado; ou o padre George d’Cruz, responsável pela construção de um colégio e uma tipografia em Cosmim; ou ainda Inácio de Brito, o primeiro barnabita birmanês, poliglota, médico, escritor e, sobretudo, músico. Foram inúmeros os hinos religiosos que compôs e que até muito recentemente se cantavam, em português, nas igrejas de todo o país.
Hoje, apesar de todos os vendavais, mantém-se viva e actuante, a norte da cidade de Mandalay, uma comunidade luso descendente.
O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico