Os homens que queriam ser – e foram – reis do Pegu

Parte I

© Joaquim Magalhães de Castro

Evocados os 400 anos da grande aventura dos Himalaias – efeméride em actual velocidade cruzeiro, já que tal façanha perdurou nessa região asiática durante duas décadas e agora, obrigação nossa, há que a ir relembrando ao longo dos próximos anos –, regressamos a este espaço para dar voz aos feitos mundo fora de uma pleíede de aventureiros, navegadores e missionários que ousaram deixar as suas berças para se derramarem pelos quatro continentes, plantando neles múltiplas raízes.
Serão eles o motor de busca deste espaço.

Assim, ao falarmos das terras dos outros onde essas ilustres figuras se fundiram e destacaram, à nossa regressaremos, lembrando – a quem nos lê e há muito a Portugal não vem – as façanhas por eles perpetradas.
As figuras históricas da edição deste mês do Passagens – Filipe de Brito de Nicote e Salvador Ribeiro de Sousa –, levam-nos do Norte ao Sul de Portugal, mais propriamente de Guimarães a Lisboa, ou vice versa. Foram eles personagens gradas em diversos espaços geográficos do Mianmar, um país actualmente em guerra civil onde subsistem inúmeros luso-descendentes, de várias origens e tempos.
Interessam-nos neste particular os ditos bayingyis, que vivem hoje um momento particularmente conturbado e difícil.
Remeto-vos, a propósito, para uma campanha de solidariedade em curso relacionada com esses nossos patrícios distantes e levada a cabo pela AILD.

© Joaquim Magalhães de Castro

É sobre eles que iremos falar.

“Se vai ao meu país, não se esqueça de visitar a Ilha dos Portugueses”. Foi com estas palavras que se despediu de mim o jovem secretário da embaixada de Mianmar em Pequim quando aí fui solicitar um visto de turista, já lá vão umas décadas. Dessa vez, não chegaria a utilizar o dito cujo, mas aquilo da ‘Ilha dos Portugueses’ ficou-me na ideia durante algum tempo.
Quando finalmente visitei pela primeira vez essa nação que já se chamou Birmânia e que um punhado de generais teimava (e teima) em considerar feudo seu, levava a lição minimamente estudada, graças à informação que em Macau me fora fornecida por um amigo entusiasta nessas coisas das miscigenações…
Na sua Peregrinação, Fernão Mendes Pinto refere-nos as riquezas da Birmânia, chamariz para mercadores portugueses, que ali demandavam a partir de Malaca, em busca das afamadas madeiras, cereais, laca e pedras preciosas, como os rubis ou as safiras, entre tantos outros produtos, e visitavam no processo o arquipélago de Mergui, as cidades de Tavoy, Sirião, Cosmim, Akyab, tornando-se aliados do rei de Pegu. Chegaram acompanhados pelos respectivos capelões, e assim se foi instalando o cristianismo na região.
Em alguns dos capítulos da sua magnífica obra Mendes Pinto relata-nos vários episódios envolvendo mercenários portuguess e cita até o nome de muitos deles. Ele próprio exercia na altura essa função e, ao chegar ao porto de Cosmim, após uma atribulada travessia do país, deparou com uma pequena colónia de católicos, precisamente o resultado dos casamentos inter-raciais entretanto efectuados pelos soldados e mercadores portugueses ali estabelecidos.
O porto de Sirião, na embocadura do rio Irrauadi, frente a Yangon, ficaria para sempre ligado ao nome de Portugal e dos portugueses, graças ao controverso desempenho de um aventureiro chamado Filipe de Brito e Nicote, que, de 1600 a 1613, fez o que muito bem lhe apeteceu em Sirião e na vizinha zona costeira. Brito tinha absoluto poder sobre a região e seus habitantes, tendo sido sob a sua protecção e auspícios que os capelões jesuítas puderam dar início ao processo de “evangelização entre os gentios”, como então se dizia.
Filipe de Brito não foi o único, mas tratou-se seguramente do mais famoso dos lusos aventureiros que pululavam naquela e noutras regiões da Ásia.
Os descendentes desses soldados portugueses, que na época de Seiscentos lutaram ao lado dos soberanos de Ava e do Pegu, ou que faziam parte do pequeno exército de Filipe de Brito, ou do seu companheiro de armas, Salvador Ribeiro de Sousa, alcunhado de “Massinga”, senhores feudais em terras do Oriente, ambos empossados com o título de ‘Rei do Pegu’, são hoje conhecidos em Mianmar como bayingyis.

© Joaquim Magalhães de Castro

Ora, no que concerne ao pomposo título ‘Rei de Pegu’ não há consensos. Há quem defenda a subalternidade de Ribeiro de Sousa em relação a Brito e Nicote (o mais provável), mas também há quem considere o contrário, como é o caso de Manuel Abreu Mousinho, autor de Breve Discurso em que Se Conta a Conquista do Reino do Pegu na Índia.
No que a Brito e Nicote diz respeito, sabe-se que nasceu em Lisboa, de pai francês, um tal Jules Nicot, supostamente irmão do famoso embaixador e linguista Jean Nicot, conhecido por ter introduzido o tabaco em França. A designação em latim para a planta nicotiana tabacum deriva precisamente do apelido desse francês que em 1560 presenteou o rei Francisco II com essa exótica espécime, trazida para a Europa pelos portugueses, e promoveu o seu uso medicinal. Acreditava-se na altura que o acto de fumar prevenia certas maleitas, nomeadamente a peste. Um ano antes Nicot estivera em Portugal a negociar o casamento da princesa Margarida de Valois, de seis anos apenas, com o rei Sebastião de Portugal, um ano mais novo, daí ter tido conhecimento da folha do tabaco.
Apesar do malogro da sua missão, Nicot continuaria a ocupar o posto de embaixador francês em Lisboa durante vários anos. Vivia na cidade o seu irmão Jules, negociante de profissão, que optaria por ficar por cá, finda a comissão de Jean… Jules naturalizou-se, mudou o seu nome para Júlio de Nicote e casou com a portuguesa Marquesa de Brito (“Marquesa” era, neste caso, um nome próprio apenas, e não título de nobreza), filha de um tal Filipe de Brito, camareiro de D. Duarte de Portugal, Arcebispo de Braga. Fruto dessa união surge o nosso aventureiro, homónimo do avô materno.
Apesar do historiador Manuel de Faria e Sousa (aquele que mais nos fala da sua vida) não referir tão ilustre ascendência, dizendo-nos apenas que Filipe de Brito “tinha o emprego de carvoeiro”, o certo é que ele serviria na Índia sob os títulos de Fidalgo da Casa Real de D. Filipe II de Portugal e Cavaleiro da Ordem de Cristo.
Em Guimarães, mais exactamente na herdade de Quintães, circunscrição de Ronfe, ou couto de Ronfe – o que denota origem nobre –, nasceria outro dos mais destacados aventureiros portugueses no Sudeste asiático. Salvador Ribeiro de Sousa, de seu nome, era também ele cavaleiro e comendador da Ordem de Cristo.
Um e outro estiveram ao serviço do poderoso rei de Arracão, que lhes legou a tal ilha de Sirião como recompensa pela sua participação na conquista do Pegu, facto histórico que ficaria imortalizado num mural de um relicário contíguo ao templo de Ananda, na cidade de Bagan, e que nos mostra aqueles que parecem ser Brito, Sousa e demais companheiros embarcados em juncos.

Acompanhe-me nesta magnífica viagem

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