«Os Maias são uma seca!»

Ai, Os Maias!
Tudo começou no ano anterior ao ano em que tinha mesmo de os ler na escola.
Precavido ou armado aos cágados (uma coisa ou outra), achei que era melhor ler antes que me obrigassem, porque podia dar-se o caso de nunca vir a gostar da obra só porque a tinha lido por obrigação.
Pois, li. E confesso que li maravilhado com aquele século XIX, com aquelas conversas entre amigos, com toda aquela história que me parecia muito concreta e palpável. Isto ou outra coisa qualquer, porque entretanto já li o livro mais umas vezes e não sei assim tão bem o que li dessa primeira vez.
Mas lembro-me disto: o final d’Os Maias foi uma chapada na cara. Aquilo era lindo! E achei que esse final era ironicamente optimista: aqueles gajos achavam-se muito blasé, diziam que não valia a pena correr por nada — e, no entanto, corriam!
Sim, eu sei: é mais complicado do que isso. Mas eu tinha uns 14 anos. Perdoem-me, senhores, que eu não sabia o que lia.
Anos depois, voltei a ler a obra e ri-me muito, coisa que não tinha acontecido da primeira vez. O final já me pareceu menos assombroso — também, já estava à espera — e andava na fase de ficar horrorizado com certas passagens machistas e racistas por onde, anos antes, tinha passado sem pestanejar.
Mais anos depois, li de novo, agora em formato electrónico (só para experimentar). Ri-me ainda mais e li ainda mais depressa. Percebi o óbvio: estava a ler um livro diferente: de cada vez que reli Os Maias, o romance era outro.
Por esses dias, começou a ser-me difícil compreender como alguém pode considerar Os Maias um livro secante. E, no entanto, ele é mesmo uma seca para um adolescente que tem um calhamaço daqueles à frente, com uma casa oitocentista logo à partida, de fachada imponente — e ao lado tem todas as histórias entre amigos e amores da sua própria vida. É preciso dar um salto difícil para perceber que, por acaso, aquele livro em particular até tem muito a ver com essa fúria de deixar escrita a vida entre amigos, por entre amores e os anos que passam.
O que fazer com esta sensação inabalável que este grande clássico é uma seca — sensação partilhada por tantos?
Podemos desistir, podemos armar-nos em missionários duma religião literária, podemos desprezar quem pensa assim — e estaremos a errar, quanto a mim.
O melhor é aprender com os livros a perceber que os seres humanos são mais complicados do que pensamos e que há várias formas de viver bem, algumas delas até sem livros — por mais que tal ideia arrepie quem gosta muito de ler e não concebe uma boa vida sem livros à volta.
Quer isto dizer que não devia ser leitura obrigatória? Não: acho que deve ser obrigatório, sim senhora. É bom haver obras partilhadas por muitos, como se fossem o café central da literatura portuguesa, um espaço de que uns gostam e outros nem tanto, mas que todos conhecemos e faz parte da memória colectiva. Mas mais do que isso: a verdade é que, se não infecta muitos, o bicho da literatura lá entra por uma ou outra alma, das milhares que todos os anos passam pelas escolas portuguesas. E, depois, não há melhor forma de aprender a escrever em bom português do que ler muita e boa literatura.

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

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