Uma janela com vista para a mina
Pelas terras de Barroso, em poucos anos, a chiadeira característica dos carros de bois, deu origem ao vaivém de camiões, com seus potentes motores movidos a combustíveis fósseis, em nome da transição energética, diziam. A dinâmica e o movimento tinham regressado à terra. Uma parte do povo, em alarido, vociferava: – Isto não é uma mina, é uma bênção divina! Ainda hoje não se sabe muito bem se seriam apenas caixas-de-ressonância da propaganda oficial “goebbliana” ou se, na sua inocência, acreditariam mesmo naquelas palavras. Também não se sabe se estes seriam os gordos, os fumadores e os bêbados, ou os outros.
Naquele tempo, foi-lhes dito que ter uma janela com vista para a mina seria privilégio de poucos. Um chalé alpino nas proximidades, privilégio de muitos menos. No topo da serra, como uma espécie de salvaguarda providencial sobre todo o empreendimento mineiro, com acesso vedado ao comum dos mortais, duas imponentes construções de fazer inveja ao povo. Uma seria do “presidente”, outra do “dona da mina”, amigos de longa data, na vida e nos negócios.
No dia-a-dia, o reboliço na terra, era evidente. Gente, muita gente. Progresso, quanto bastasse. O Eldorado barrosão estava a viver o seu apogeu.
Para trás tinham ficado anos de despovoamento, de abandono da terra e os tempos de miséria. Em pouco tempo, fazendo jus às previsões de um visionário, o PIB da região disparou para níveis inimagináveis.
E de repente, como se de um passe de mágica se tratasse, a taxa de natalidade atingiu níveis nunca antes vistos por aquelas terras e, até se dizia que, aquele exemplo seria replicado noutras latitudes, pois parecia ter sido resolvido o problema da falta de renovação geracional. Para quê ir mais longe se, afinal, a solução estava mesmo ali, à boca da mina. Com a proliferação de novos nascimentos outras necessidades prementes foram surgindo. Era preciso construir creches, um centro de saúde e porque não, uma nova maternidade, e novas escolas e até uma universidade, numa antecipação lógica de um futuro promissor. E se rápido o pensaram, mais depressa o executaram, sem derrapagens orçamentais e sem corrupção.
O sucesso do empreendimento catapultou a região de Barroso para o estrelato das zonas In em termos empresariais e, sobretudo, pelo invejável modus vivendi do povo.
A onda migratória crescia numa proporção nunca vista. Os filhos da terra regressaram e muitos outros se puseram a caminho, atraídos pelas promessas do “sonho barrosão” que, à semelhança do “sonho americano” assegurava uma terra de oportunidades para milhões de pessoas, entre empregos directos e indirectos, subsídios para tudo e para todos, regalias e outras mordomias nunca imaginadas. Em suma, um destino de eleição para todos aqueles que aspiravam a uma vida melhor. Uma verdadeira “mina” de oportunidades.
Eram aos milhares. Lembro-me como se fosse hoje. Lembro-me de ver aqueles olhos esbugalhados ansiosos pelas oportunidades difundidas pela propaganda – riqueza para todos, igualdade de oportunidades, o sucesso ao virar da esquina e uma prosperidade sem precedentes.
Importava garantir o paraíso na terra, porque o céu podia esperar.
E turistas!? Nunca vi tantos turistas por metro quadrado. Entre as principais atracções estavam, a máquina aspiradora de pó, os passadiços circundantes à mina e a lagoa azul.
Sobre a máquina que aspirava o pó, os turistas diziam que nem um grão de areia lhe escapava. Quem era eu para duvidar das palavras deles, pois, passavam horas extasiados a observar aquela geringonça. Qual robot de aspiração caseiro, em escala colossal. E os “putos”, lá em baixo, divertiam-se a manobrar o dito artefacto.
E os passadiços!? Ai aqueles quilómetros de passadiços entranhavam-se-lhes na memória. Tal como a janela com vista para a mina, também aqueles passadiços possibilitavam uma maravilhosa vista sobre a mesma.
Todavia, o ex-libris do espaço era a lagoa azul que, dependendo dos dias, também se podia apresentar verde, amarela ou alaranjada. A diversidade de colorações proporcionada por aquela lagoa era sempre uma caixinha de surpresas. Os turistas deliciavam-se com aquela imprevisível paleta de cores. Para eles, ver sempre o mesmo, era sinónimo de monotonia. Aquela gente entediava-se com o verde da natureza – a maçada de ver sempre o verde. Mas havia mais: daqueles passadiços monumentais, levantando a vista, ao longe, podiam ver o Gerês, aquele amontoado de serras inóspitas a que chamavam de parque nacional.
Muitos dos que vinham, acabavam por ficar. Os dias eram passados no café, entre o fumo das notas, o cheiro intenso a enxofre e as selfies com a “paisagem lunar” a servir de pano de fundo. Pela noite dentro, os decibéis começavam a ecoar no planalto. As explosões que se assemelhavam às batidas graves das discotecas nos anos 80, atraíam muita gente à terra, entre eles, alguns saudosistas da época e jovens – muitos jovens – que não viveram as loucuras dos anos oitenta, mas gostariam de ter vivido. Gente que dispensava uma boa noite de descanso, mas não os decibéis que ecoavam no planalto. Muitos deles encontravam-se ainda a recuperar dos traumas causados pelo fecho forçado dos espaços de diversão nocturna em tempos pandémicos. Era a realização de um sonho, diziam uns, o reviver da nostalgia de uma época, enunciavam outros.
Entretanto, os anos passaram, a mina fechou e tudo o vento levou – as poeiras, os sonhos, o dinheiro e o futuro. A máquina aspiradora de pó enferrujou, os passadiços quebraram, as pessoas partiram. Ficaram as terras esventradas, as velhas janelas com vista para a mina e a lagoa, ora azul, ora verde, ora amarela ou alaranjada. Antes do pano cair, no cimo do monte, nos seus chalés alpinos, o “presidente” e o “dono da mina”, lado a lado, partilhavam juntos os últimos momentos, fumavam as últimas notas, à espera que, também a eles, o tempo os levasse…
Elisabete Cruz
3 anos agoExcelente artigo! Obrigado Vítor.
Elisabete Cruz
3 anos agoExcelente artigo! Obrigado Vítor.
De facto, não é uma mina, é um milagre 😉
Xana Zu - Sandra Salgado
3 anos agoDEMAIS 🙂
Sandra Gonçalves
3 anos agoExcelente. Simplesmente divino… espero que os responsáveis máximos deste concelho tenham a capacidade de alcançar esta visão tão realista e trágica.
Carlos Antunes
3 anos agoDe ti, espero SEMPRE a maior dedicação às causas que defendes com unhas e dentes. A nossa terra precisa, como pão para a boca, de pessoas com a tua estaleca intelectual, liberdade de ação e visão de futuro. Nas relações de amizade, como na paixão pelo torrão natal de Barroso és um verdadeiro cavalheiro.
Obrigado.