Wandi Francisca

A sociedade nas missões protestantes no sul de Angola

Wandi Francisca predispõe-se a partilhar suas memórias de forma virtual  no Domingo de Ramos de 2024 “A Judite já me falou da vossa intenção e eu queria encontrar-me para saber o que se pretende, afinal de contas quando passamos uma “mensagem” na idade de 80 anos não é para algo sem objectivo, então eu gostava de saber,  posso começar o depoimento hoje se for preciso”.  A entrevista foi feita na semana seguinte.

© História Social de Angola

Neste depoimento, esta descendente do soberano  Ekuikui viaja pela sua vida,  passada entre várias missões protestantes onde estudou e foi professora, nomeadamente Sapessi, Chilesso, Dondi e Caluquembe. Ainda, sobre a sua infância recorda a família da amiguinha que a acolheu no primeiro dia de aulas na escola MEANS,  Missão do Dondi. 

Inicia as memórias da fase adulta descrevendo sua religiosidade, destacando  a conversão ao catolicismo pelo  casamento.

Wandi Francisca é também uma das milhares angolanas que por militância ou em situação circunstancial viveram na Jamba durante os 27 anos de conflito armado. Neste  período, continuou a dar aulas de matemática e  escreveu as sebentas de matemática da instrução primária.

Reside em Luanda desde 1992 e marca este ano descrevendo o choque social dos recém -chegados da Jamba. Hospedada em uma unidade hoteleira no centro da cidade, no seu primeiro passeio pela baixa luandense, presencia uma outra versão do premiado conto “Quem Me Dera Ser Onda”, do célebre escritor Rui Monteiro. Tragicamente, um porco cai do 4º andar de um edifício e o impacto do peso do animal sobre o corpo de uma senhora provoca a morte. 

Esta filha de Chilesso, integra-se no terceiro sector social e caracteriza a zona da Camama onde passou a residir e a trabalhar. Na época, uma periferia afastada da Luanda antiga.

Apresenta inquietações sobre o  comportamento do cidadão e do papel da sociedade civil na resolução de situações comunitárias, sobretudo na gestão dos resíduos sólidos, sem antes nos contar a origem do nome do Mercado Avó Kumbi. 

A entrevista foi interativa e  terminou a mesa do pequeno almoço com duas primas suas que acabaram por confirmar factos desta  história de vida. Outras fontes secundárias foram apresentadas, como fotografias e cartas.

O facto do depoimento ser realizado na sua residência levou a depoente descrever as memórias do lugar da entrevista, por isso não foi necessário colocar esta questão. Em suma, o local, o ambiente, a predisposição e elementos incontroláveis a entrevistadora e a entrevistada, no caso a chegada de familiares, podem atribuir  ou prejudicar, neste depoimento constituíram  mais valia.

© História Social de Angola

Introdução

Eu nasci em 1943, no dia 13 de Outubro, na Missão Evangélica de Chilesso onde o meu pai era Inspetor e a minha mãe cuidava do internato “vai ouvir muitas histórias sobre a dona Befídia[1]. Aquela é a fotografia da  minha filha N`Gueve,conhece algum dos meus filhos? e apontando para as fotografias: uma é advogado, a outra é  analista,  a terceira tem duas licenciaturas. Sou muito rica, já o meu marido não teve a sorte de viver esta felicidade. Ele era o meu “professor”, nesse depoimento ele ajudar-me-ia porque ele era amigo das ciências sociais. Já tenho bisnetos, os meus filhos estudam muito, saem aos pais, eu também estudei muito porque devemos estudar sempre, agora chega, vamos deixar às gerações mais novas estudarem, há muito para se estudar.

Eu tenho muito que contar sobre a minha vida. Quando o meu marido nos deixou, fui tirar a minha certidão e lá está escrito “filha ilegítima”. Eu sou filha do  falecido pastor Feliciano, (ilegítima). A filha do pastor que casava os outros, eu tenho certidão com cauda. O meu pai teve de tratar a cidadania, eu, e a minha irmã “que eu puxei” não levamos o apelido  paterno, Nunda. As outras já levam o nome do pai, porque quando elas nasceram ele já era assimilado, eu lembro-me destas histórias todas, já tinha certidão de verdade (referindo-se ao pai).

A Descendência Do  Rei  Ekuikui e de Portugal

Segundo o meu pai, a avó dele era branca. Quando terminou a  última grande guerra, ela era miúda, uma filha de colonos que estiveram na guerra aqui em Angola. A Filipa ficou e ao fugirem, os pais abandonaram a miúda numa vala em uma baixa. Então, o primeiro que a viu  criou-a, ela não sabia dizer  a idade dela, tinha doze anos e tiveram dois filhos. Estes dois filhos saíram daquele sítio  e foram trabalhar e tiveram também os seus filhos. A primeira filha dos netos da  Filipa  foi a Natchiemba, chamava-se Judite mas deram-lhe um nome N´Ganguela N`Suandi que significa Filha da Guerra. Foram para N`Kutatu, quando lá  chegaram à religião que existia era a católica e  encontraram a igreja protestante, foi lá onde os missionários chegaram primeiro.

O meu avô Nunda, sobrinho do Soba Ekuikui, foi formado pelos missionários na Missão de Chilesso e é indicado a ser evangelista desta missão.  Foi ali onde o meu avô e o meu pai nascem, o meu pai chamasse Nunda que significa Sobrinho, veja como a minha família andou “daqui para lá”.

Em relação à minha linhagem materna, a minha mãe é bisneta do soba de Koongo. Tanto a família do meu pai como da minha mãe têm origem no Bailundo, tiveram essas duas origens, a parte paterna de Koongo e a parte materna do Bié, a minha mãe também era familiar de um rei do Bié.

Eles casam-se, sempre foram missionários, por isso é que meu pai se torna pastor e a minha mãe…, como dizem “Atrás de um grande homem está sempre uma grande mulher”, o meu pai para fazer o que fez é porque teve uma grande mulher que o ajudou.

Hoje, o casamento é com união ou com separação de bens,  eu nem entendo o que significa “com separação de bens”, no nosso tempo não havia,  eu casei em 1962. O tempo que eu vivi com ele, 50 anos, pareceu-me só um dia.

O meu marido foi deputado à Assembleia Nacional, eu nunca fui dessas ciências, sempre dei aulas, agora estou reformada, nessa idade já não consigo ensinar, já me esqueço, mas não me esqueço da matemática.

O Ensino nas Missões Protestantes e o Ensino Rudimentar

No primeiro dia de aulas na  escola do Dondi estava sentada  a minha atrás uma menina que me disse: quer ser minha amiga, quer ser minha amiga? (pronunciando o português com a acentuação ovimbundu).  A partir daí eu e a Judite tornamo-nos amigas. Era o segundo ano na Escola MEANS, os pais dela já eram professores na Escola MEANS e ela  levou-me logo a mãe dela e a mãe dela diz “ai, é filha da mana Bifídea”, quer dizer as nossas mães já se conheciam também. De certeza  que a minha mãe era  um pouco mais velha que a tia Marta Kulipossa. Eu tinha total defesa (risos), da Judite “da mana”, eu já era defendida. Naquela altura, o pai dela, o tio  Lourenço, era professor de ciências geográficas naturais. Eu tive todo o mimo, já não comia ali, ia comer a casa deles (sorrisos de alegria), a Judite era externa e eu era interna. Mas, eu era tida como filha daquelas famílias, da família Sachiambo e da família dos tios Lourenço Chinhâungua  Joaquim e da  Marta Evadia de Gideão Joaquim[2].

Vocês fazem parte das angolanas que estudaram em regime de internato  anglófono?

Nós fomos muito  bem educadas, lá tínhamos de ter um horário. Afinal, é preciso termos  um sistema, como dizia o meu pai “o carro que distribui o dinheiro passa  muito cedo, se atrasarem ele já passou”, isso ensinou-nos a sermos pontuais, a madrugamos, a termos respeito pelos mais velhos e pelo nosso próprio corpo.  É verdade!

A entrevistadora comenta: Outro aspecto muito importante é a perda e a inversão de valores, há valores tradicionais existentes que hoje em certos momentos parecem usados de forma contrária, como o aproveitamento do alambamento que  era um acto de respeito, para muitos  o que interessa é a festança.

Até “vendem” os filhos, não é isso? Aquilo depois se transforma em uma forma de escravatura. Se formos uma família sem cultura, sem amor… aquela mulher, aquela filha está condenada ao sofrimento. Por exemplo, quando um moço me pretendeu, a minha mãe  disse “porquê isso?”, era um moço tão bonito.  Nós tínhamos de respeitar os nossos pais. A nós veio a calhar o ecumenismo, casamos com homens católicos e agora somos católicas.


[1]COMO SURGE ACÇÃO SOCIAL NA IECA? A partir de 1955, a visão holística do evangelho passou a ser a maneira como a igreja pregou a Boa Nova de Cristo e necessariamente o pastor e sua família, quer dizer, esposa assumiram a liderança do programa do Melhoramento do Povo, a par e passos com outros leigos. Um exemplo claro de liderança do programa de Melhoramento do Povo num Pastorado foi do “Rev. Feliciano Nunda e sua esposa dona Benfilia, que num projecto experimental na aldeia de Sapessi fabricaram 5000 ladrilhos e 25 mil telhas em quatro semanas. Nos anos posteriores, até 1960, fabricaram telhas, tijolos e ladrilhos suficientes para sete aldeias do centro de Sapessi” ( HENDERSON, 1990 p, 220). É importante saber que a acção social da Igreja teve até o ano da independência nacional duas linhas que concorriam para o mesmo fim. A primeira, da linha profissional: Saúde e educação; a segunda, comunitária: programa do melhoramento do povo. É importante também, saber que na década de 1960, o programa de Melhoramento do Povo tinha atingido o ponto mais alto da sua história, houve um entrosamento de alto nível entre a parte espiritual e social. De maneira que havia estudos bíblicos próprios dirigido para “VAKUACIPATO LA SUKU, (SOCIOS DE DEUS)”. Arquivo Sínodo Provincial do Huambo. em https://www.iecaecca.com/index.php/82-portugues/205-accao-missionaria

[2] Marta Kulipossa é o nome de baptismo e Marta Evadia de Gideão Joaquim é o nome de registo pós estatuto de assimilada.

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico


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