Elogio ao pão

Enredos cerealíferos

Há quem diga que o mágico Gedi do Antigo Egipto, um homem aí dos seus cento e dez anos, comia quinhentos pedaços de pão e meio boi por dia, que acompanhava com cem jarros de cerveja; por estas razões gozava de boa saúde, não tossia e não sofria de insónias (…) pelos vistos, o trigo prestava-lhe o pão, a cevada oferecia-lhe a cerveja e o que quedava dos dois acudia ao engrossar do boi.

Por cá diziam as gentes do Douro com certa mágoa

de manhã me dão migas/ao meio dia migas me dão/à tarde pão com migas/e à noite migas com pão

era a utilização do pão levada ao extremo nos períodos de carência alimentar ou da sovinice dos donos do trabalho. Não quero assim consumar a pronta exaltação ao pão, mas, possivelmente, expressar um pequeno louvor à mais cúmplice aventura da história da gastronomia. Acontece que a história se explica sobre vários pontos de vista — dos historiadores ou dos economistas, dos sociólogos ou dos agrónomos, das palavras ou dos poetas… — porém, o pão, passado da nossa alimentação, o quotidiano da história, é um gesto de cada dia que não se explica. Não sou desse tempo nem ao divino me achego, todavia, tenho amigos bem relacionados junto dos guardadores celestiais e por isso acredito que Deus terá dito aos nossos antepassados – Adão e Eva – que deveras suariam para conseguirem a bênção diária do pão e também acredito que carregou com este fardo todos os seus descendentes. E disse pão e não leite, mesmo sendo este o primeiro sabor que conhece o paladar […] O pão não é uma dádiva nem um alimento criado pelo Criador – elabora-se; o pão não brota da terra como a batata e a castanha – semeia-se; o pão não se arranca da espiga – é fruto de muitas mãos. Enfim, o pão é um episódio da vida e o leite é uma obrigação maternal, no dizer de outros

o pão é um crédito ilimitado e o leite uma dívida eterna.
Falar de pão é falar de cereais — de trigo, centeio, cevada, aveia, milho … — mesmo que exortar o cereal não queira sustentar o produto pão. Todavia, alguém chegou mesmo a afirmar que as «necessidades vitais e espirituais do homem estão reunidas na palavra pão». Afirmação impetuosa. E o vinho? O azeite, as mulheres, a sesta, a lua ou o sol (…) Eviternos companheiros de afectos, ardores e feitiços! Admito apenas que o pão é um dos símbolos da civilização, um dos constituintes da identidade humana e da distinção entre homem e animal. Aliás, na linguagem homérica, comedor de pão é sinónimo de Homem e ao consumir vinho é-lhe conferido o estatuto de ser Humano. Eloquências. Por sua vez, as míticas filhas de Anius transformavam em trigo, vinho e azeite tudo aquilo em que tocavam. Outros apregoavam que quem não comesse um cibinho de pão nem bebesse uma taça de vinho era selvagem e bárbaro. Ousada sabedoria destes antepassados que os tecnocratas de hoje teimam em censurar! A quem de direito por esta permitida ignorância — que Deus lhe perdoe porque tenho dúvidas que os nossos filhos o façam […] De regresso aos cereais e à farinha

é razoável afirmar que a pátria do [nosso] pão é o mediterrâneo
com os trigos moles e o centeio à mistura – é uma invenção citadina; os outros pães, principalmente as massas de sêmola – o cuscuz berbere que os de Vinhais não deixaram sozinhos e acomodaram em cuscos – são produtos rurais. Lá mais para Oriente não se fiaram nas potencialidades panificáveis do [cereal] arroz e consomem-no como todos nós sabemos; na América Central vivia-se do maís que haveríamos de fantasiar nas polentas italianas, nos carolos beirões ou nas broas minhotas que já não dispensam o sumo gorduroso de uma sardinha assada e o boiar de um caldo verde. A China do Norte – terras de trigo – concedeu-nos os crepes e abençoou-nos com as massas que de trânsito para a Pérsia, através da eterna Rota da Seda, e daí para a área de influência árabe, receberam os nomes de al-itríyya (aletria) e de al-fidaws. Quanto ao pão, os egípcios já dominavam a sua técnica de fabrico desde os anos 2 500 a.C., assim como de bolos, fogaças e biscoitos, que só se impõem na Europa a partir do Barroco, excepto nas montanhas galesas e asturianas que produziam umas papas de farinha de ervas cerealíferas. É muito provável que, nesta época, este farináceo [já] endurecido e mergulhado num caldo-de-qualquer-coisa desse origem às actuais sopas e o seu ajuntamento com as carnes de cortelho adivinhasse os folares transmontanos. E foi a expansão marítima dos portugueses a embaixatriz deste nosso elogio para o longínquo Oriente.

É certo que a vida mudou com o princípio do pão-de-cereal
mas seria insensato e iníquo com o pão de castanhas ou o pão de favas, melhorados com a mistura de cereais panificáveis e só derrotados pela batata peruana e pelas panificações industriais, se neste encontro gastronómico o aplauso não lhe fosse estendido.

O pão das nossas aldeias, melhor, os cereais panificáveis
foram, então, o pressuposto da sedentarização, um novo conforto para a vida, o fim da noite dos tempos, o princípio da sopa (…) a matéria-prima da cerveja, o início da abstinência, o suporte da penitência (…) Foram o supermercado gratuito do homem primitivo! É o alimento mais universal e não deixa de ser um dos simbolismos da vida

«se os filhos demoram nove meses a nascer, também de nove meses é o tempo entre a sementeira de outono e a colheita de verão» [e] «há-de alimentar-se do seio da terra, como o filho se alimenta do seio da mãe»

Por isso, no tempo em que o vinho corria como água
o azeite prometia luares cúmplices e assossegava o pavor das noites, os cereais tornaram-se mais abundantes que a areia à beira do mar. Pois então que regresse esse tempo, acrescente-se-lhe o virar do sol, o pico da sesta, o arrebato das mulheres ou o balanceio das canções… e teremos não um ponderado elogio mas elogio consumado ao pão e à partilha do pão.

Outros enredos, outros episódios. Ainda diz o [nosso] povo
«o pão é o último apetite que se perde em caso de doença e o primeiro que se recupera na convalescença». Fez com que as suas necessidades vitais se reunissem na palavra pão — «pão para hoje e fome para amanhã» — e legou-nos tantos sabores paníferos quanto o número de aldeias, o tipo de lenha utilizada e os recheios prometidos. Tantas mestrias quantas cozinheiras-padeiras havia na região. Por isso…

entrar numa refeição sem as parçarias de um cadorno de pão
[e] um cacharro de vinho — nem pensar! O pão era só pão – sêmea obrada ou de quatro cantos, molego, ressuado, charrão ou borneiro, bento ou das almas, cozido em lenha de estevas ou em noite de estrelas. Quando muito, nos dias de festa é que poderia ser um pouco mais rebuscado: recheado de chichas gordas e enchidos cárneos, peixes de sal, azeitonas e alcaparras delas, ervas de cozinha (…) Ou, então, era substituído por empadas, bôlas e folares. Mesmo assim, um mordico de pão não podia faltar. Nem que fosse só para empurrar a comida para cima do garfo, ajudar na merenda ou chiscar qualquer coisinha, enganar o bucho e fintar a lazeira, fazer a limpeza das beiças e das gorduras do prato, medrar o martuço do caldo ou as águas da sopa.

Sopa sem pão nem no inferno dão…

         

O pão de recheio, pão ou bôla de alcaparras acabadas de curar
também podia ser obrado de azeitonas pretas descaroçadas – era o pão de azeitonas – usando-se de sortimento pimentos amarelados de guarda avinagrada e rodelas de chouriço de carne em vez de pimentos vermelhudos e fatias de presunto lardeado. Trata-se de um pão tipicamente pascal, também natalício e de entrudo, concorrente dos folares da maioria das nossas famílias e em tudo semelhante aos ancestrais eliopitta gregos de azeitonas conservadas em azeite. Outras famílias rurais ainda preferem trabalhá-lo como bôla meia-sovada recheada apenas de alcaparras, normalmente alcaparras velhas escaldadas e cortadas em pequenos pedaços, sem pitada de açúcar e untada de azeite antes de ir ao forno – é o pão de aldeia.

As bôlas de azeite é que são bôlas de massa sovada!
Pequenos pães espalmados, sem traço de fermento ou quase nenhum, simples de fabrico e de conservação prolongada. Fazem-se durante todo o ano, lembrando o pão ázimo dos marranos que confeccionavam pela época pascal. Enquanto na Terra Quente são mais conhecidas por bôlas sovadas, também por bôlas redondas ou salgotas, por bôlas calcadas no Alto Tâmega, já no Vale do Douro Superior o mais vulgar é nomeá-las de bôlas abarretadas e noutros locais sempre foram tratadas como bôlas azeitadas. Linguajares. Por norma, bôlas e empadas nunca são doces e raramente levam ovos. Doces são os bolos e ovos levam os folares, nem que seja só para o envernizamento do capote exterior antes da ida ao forno. As mais acreditadas excepções vão para as bôlas de bacalhau de cebolada bragançanas — a massa é feita de farinha triga e ovos de batedura, temperada com cravinho, colorau doce e pimenta preta, salsa à vontade, sal a contento, alhos e azeite a justo, e o bacalhau é cozido em vinho branco — os bôlos de chouriço, também brigantinos, preparados para dias de festa e guardados em caixas de folha-de-flandres, a empada de ovos fozcoense e os conhecidos santórios de Penude, presença obrigatória nas festas janeiras lamecenses de honra ao mártir S. Sebastião. Quando a massa é batida com azeite e ovos, fortalecida de aguardente bagaceira e condimentada com sementes de erva-doce, o mais comum é nomear estes elogios cerealíferos de pães de azeite e em alguns locais do Douro Internacional por bôlas de aguardente. Mas, as rainhas consortes das bôlas continuam a ser as aristocráticas bôlas de Lamego, recheadas, à vez, de carnes desfiadas de frango assado, outras carnes de vinha-d’alhos, salpicão com alguma gordura, presunto, lascas de bacalhau ou sardinha miúda, com procedência nas receitas do antigo Convento de Lamego. São muito apreciadas como merenda e de merendinha à festança, sobretudo no período dos Santos Populares. (Diz-se que terá sido aquando da aclamação de D. Afonso Henriques como Rei de Portugal, no decorrer das lendárias Cortes de Lamego, que pela primeira vez se produziu a “bola” de carnes de porco para fazer face às necessidades alimentares da inusitada afluência verificada ao burgo lamecense.) Também não deixam de ser uma manda gastronómica regional

as plebeias bôlas de Tarouca de bacalhau e sardinhas a rechear a massa amilharada, as populares bôlas de Favaios de carnes estufadas de frango e coelho de criação ou as empadas baixas de Freixo só com carnes de porco fritas em azeite, as fritas do Planalto Mirandês que poucos ovos levam e as empadas de Moncorvo, que só diferem dos folares de Mirandela na forma de armar e por não levarem carnes de galinha desfiadas, a bôla de Sabrosa de carne de anho cozida e a seguir frita em banha de porco, a bica de carne de Barroso e os tradicionais pães de fumeiro e de chicha gorda (…) as empadinhas de carne, merenda tipicamente vileira, à base de miudezas e/ou carnes desfiadas de aves, ou de carne de vaca — é o caso dos históricos covilhetes de Vila Real, antigamente ligados às vendedeiras de rua nas festas de Santo António, do Senhor do Calvário e da Senhora da Almodena, que devem o seu nome à pequena forma de barro preto de Bisalhães em que iam ao forno (…) aquelas meias-luas de camadas de massa folhada muito finas, recheadas com carne de vitela – os pastéis de Chaves – e os fradescos pastéis de entrudo de Vinhais com um enchimento de carne e aparas de vitela, presunto gordo, chouriça nova e ovos cozidos, tudo picado e temperado de sal e pimenta a gosto, que se amanhavam no sábado magro para serem consumidos antes da entrada nos rigores da Quaresma.

À semelhança das alheiras e demais enchidos pãozeiros
o folar transmontano tem artes e engenhos, conforme a folareira, a terra, as posses e os dotes caseiros. No entanto, pode dizer-se que o nosso folar é “um pão de farinha triga, amassada com um caldo de carnes muito apurado, azeite e manteiga para acomodar melhor a massa; recheado de rodelas delgadinhas de salpicão e linguiça, presunto velho, toucinho para pingar de onde a onde, carnes de galinha, a miúdo de coelho, peru e vitela – tudo refogado em azeite, desossado e desfiado em pequenos pedaços; em formas rectangulares, quadradas, redondas ou ovais; muito olhudo, leve, envernizado com gema de ovo e de «bom» tamanho, porque, se forem pequenos chamar-se-ão de folaricos ou merendeiras”. É comedoria de faca e garfo! E as ditas sopas de pão ou migas de pão?
Acompanhadas de um caneco de café!
Já foram prato único — de madrugada, pelo meio-dia, à merenda, ou nas ceias de fim de dia. Actualmente tanto servem de lastro como continuam a ser refeição completa. Azeite no refogado e de acerto final é que nunca lhe pode faltar! Se inicialmente eram as avigoradas migas das alheiras – sopas das matanças – com o pão dos dias anteriores, água da cozedura das carnes para enchimento e alhos rijados na banha do reco (…) as doenteiras sopas de cavalo cansado de pão do próprio dia, vinho tinto fervente para o amolecimento e açúcar amarelo como revigorante, as sopas de unto barrosãs – as sopas mata-fome – com o pão disponível no mosqueiro da cozinha, água bem aquentada e gordura da barriga do cevado… sem qualquer pingo azeiteiro, que era produto de rico, são, agora, as providas migas de bacalhau, as reputadas sopas de feijão-frade e as reconfortantes sopas dos pastores, que as mulheres dos guardadores de gado lhes faziam à chegada a casa — temperavam-nas de hortelã e poejos ribeirinhos e abastavam-nas de tanchagens e labrêstos amarelos apanhados à beira dos caminhos …

sopas de ovos escalfados, as migas de peixe do rio
(como eu gosto delas!), migas de espargos bravos de qualquer canto do Vale do Douro Superior, sopas secas de carnes [da Mesa do Restaurante Maria Rita, uma das «7 Maravilhas à Mesa de Portugal»], sopas de alho estrugido, em tomatadas de alguidar de Freixo de Espada à Cinta, sopas da segada e da trilha rijadas de azeite e alho, as múltiplas sopas da matança e roupas velhas, migas à lagareiro, migas disto e daquilo… os olvidados aguadinhos da Vilariça!

Quando o porco fazia parte do cortelho e da salgadeira adegueira
as [nossas] migas eram mais aprumadas. Eram as migas dos ricos ou dos ilustrados pobres. O pão, além de uma atitude guerreira ou de hierarquização social, é – também – o rosto da ingenuidade e o corpo da euforia […] Como o pão é o anel da cadeia que une a arqueologia com a alimentação e está na base da história da gastronomia — apelo aos amantes do passado que aceitam que o percurso do pão é paralelo ao da humanidade, aos acomodados do presente que acreditam que já foi tudo dito sobre o pão e aos nostálgicos do futuro que ainda pensam que o pão é de hoje e a fome não será para amanhã — a todos se decreta o pão como traço de união.

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

Deixe um Comentário

Your email address will not be published.

Start typing and press Enter to search