“Eu sou livre, tu és livre, viva a livraria”

Esta frase andava a circular há tempos no Facebook. Gosto da ideia de associar os livros ao conceito de liberdade. Os livros são universos de liberdade e empatia. A empatia não é, como a maioria pensa, o que eu sentiria no lugar do outro. Não, a empatia não se foca no eu (em mim), mas no outro. Imaginar o que eu sentiria no lugar do outro é sintonia afectiva (simpatia). Todos nós, tirando raras excepções, somos capazes de fazer este exercício desde crianças. Empatia é outra coisa, e não se manifesta de forma espontânea. Para ser empática, preciso de imaginar o que o outro sente no lugar onde está, e para o conseguir, é necessário um esforço de imaginação e conhecimento. Imaginar uma realidade que não é a minha, e conhecer o percurso do outro. A expressão inglesa de calçar os sapatos do outro revela-se, assim, a mais próxima do conceito de empatia: quando calçamos os sapatos de outrem, ficamos sempre desconfortáveis; ora porque são um número abaixo, ou acima, e mesmo que calcemos o mesmo número, os sapatos moldam-se ao formato dos nossos pés, pelo que estaremos sempre condenados a palmilhar terreno alheio. Para anular esse desconforto, seria necessário termos uns pés iguais aos do dono dos sapatos; por outras palavras, os mesmos calos, o mesmo caminho percorrido.

Resumindo, a capacidade empática não é natural nem automática, exige trabalho da nossa parte (e por isso talvez seja tão pouco praticada). Este trabalho, no entanto, é o mesmo que a literatura vem fazendo desde há séculos: chegar ao outro através da imaginação e do conhecimento. Daí que os livros sejam portas para a empatia, e possam, em tempos obscuros, ser usados como armas de empatia. Não é por acaso que os regimes totalitários têm desenvolvido o hábito de queimar livros. Os livros talvez não possam mudar o mundo, mas podem abrir-nos a porta para o outro.

E conseguiremos, de facto, imaginar o que o outro sente? Não será este um esforço inglório, uma vez que só nos aproximamos do lugar afectivo do outro tendo como referência as nossas próprias coordenadas? Não sei a resposta, mas tenho fé, vinda de um posto de observação empírica. Eram os meus filhos ainda bebés, primeiro ou segundo meses de vida, quando começaram a rir enquanto dormiam. Ainda não riam acordados, mas no sono, riam às gargalhadas. Regra geral, os bebés começam por sorrir, e só mais tarde, riem. Para rir às gargalhadas é necessário algum tempo a praticar intonações de risos variados. Quando ouvi as primeiras gargalhadas provindas do sono do meu primogénito, fiquei assombrada. Não percebi o que se passava. O cachopo estava com soluços? Foi necessário a cena repetir-se mais duas ou três vezes para finalmente compreender. E as perguntas surgiram, as mesmas que permanecem até hoje: como pode ele viver em sonhos uma experiência que nunca viveu acordado? Ou será que já ria dentro da minha barriga? Muito provavelmente; lembro-me de um estudo que descobrira que os bebés já choram no útero. Se choram, decerto também riem. Mas riem do quê, se não têm memórias ou vivências significativas associadas à experiência do riso? Aqui está um mistério que, certamente, mantém intacta a fé de conseguirmos transcender a nossa própria pele.

A autora não aderiu ao novo acordo ortográfico

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