A Identidade Macaense
A Identidade Macaense é um tema complexo e multifacetado, e na condição de Conselheiro das Comunidades Portuguesas pelo Círculo da China, o enfoque da minha acção exige uma reflexão e abordagem abrangente desta temática, que tenha em consideração os aspectos relacionados com a história e contexto, a diversidade da comunidade Macaense, os desafios e necessidades, o diálogo e a colaboração, bem como a promoção da cultura e língua Portuguesa.
Desde logo, a constatação da herança cultural luso-asiática, uma componente fundamental da Identidade Macaense, em que a mistura de influências Portuguesas e asiáticas contribui para a singularidade da cultura Macaense, sendo a comunidade Macaense composta, na sua maioria, por pessoas que são resultado de sucessivas gerações de cruzamentos entre Portugueses e pessoas de origem asiática, incluindo mulheres de origem malaia, indiana, japonesa, chinesa e outras etnias. A preservação da língua Portuguesa, da culinária Macaense, uma expressão notável da sua identidade, e de outras tradições culturais, têm sido elementos fundamentais de suporte da Identidade Macaense.
Por outro lado, um outro aspecto importante que pode, e deve, ser valorizado como parte integrante da Identidade Macaense, está relacionado com o património histórico, porquanto Macau tem um legado histórico significativo como último território sob administração Portuguesa na Ásia. A influência Portuguesa pode ser vista na arquitetura, nas instituições e nas tradições culturais da cidade.
De considerar ainda a forte ligação a Portugal, com um sentimento de pertença à cultura Portuguesa e um interesse em manter laços estreitos com Portugal, um elemento de fundamental importância para o trabalho de um Conselheiro, no apoio à promoção desse vínculo e de facilitação de actividades de intercâmbio cultural que fortaleçam os laços entre Macau e Portugal.
No que concerne a desafios e oportunidades, pertinentes à comunidade Macaense, importa que se dê destaque à preservação da identidade cultural, num período em que nos deparamos com mudanças sociais e demográficas, sendo necessário identificar oportunidades para fortalecer a Identidade Macaense, como programas educacionais, atividades culturais e intercâmbios com outras comunidades lusófonas.
Em contexto, importa elencar alguns destes desafios que a comunidade tem vindo a enfrentar ao longo das últimas décadas, na preservação de sua identidade única. De entre alguns de significante importância, destacam-se a tendência de assimilação cultural e perda gradual da língua portuguesa entre os macaenses, consequência da natural influência dominante da cultura Chinesa, a emigração Macaense para outros países, uma realidade constatada ao longo dos anos, resultando na dispersão geográfica da comunidade, o que torna, obviamente, muito mais difícil a manutenção das tradições culturais e a coesão da Identidade Macaense, porquanto a distância física e a influência das culturas locais nos países de destino afectaram a transmissão das práticas culturais e a ligação com as raízes Macaenses, as rápidas transformações na comunidade, como a urbanização e o desenvolvimento económico, e a pressão para se adaptar a uma sociedade em constante mudança, o envelhecimento da população, que constitui um repto constante à preservação da Identidade Macaense, caso não haja um incentivo às gerações mais jovens para que se envolvam activamente no estudo, consciencialização, valorização e transmissão de um legado inestimável de conhecimentos, habilidades e tradições.
No contexto do Conselho das Comunidades Portuguesas, uma instituição que tem como objetivo promover os interesses e a participação cívica dos Portugueses que vivem no exterior, a Identidade Macaense deve ser considerada como uma parte valiosa e significativa da diversidade das comunidades Portuguesas no mundo, e uma expressão única da presença Portuguesa em Macau, com as suas características culturais, históricas e sociais, sendo essencial a representação e defesa dos interesses específicos da comunidade, trabalhando lado a lado com outras comunidades e com as autoridades competentes.
Na defesa dos direitos e interesses dos Macaenses, é necessário aos Conselheiros incentivar a sua participação activa na vida cívica e política local, envolvendo-se na defesa dos seus direitos, na promoção da representatividade Macaense em instituições locais, e no seu envolvimento na tomada de decisões que afectam a comunidade.
Além disso, o Conselho das Comunidades Portuguesas pode ser um fórum para discutir questões relacionadas à Identidade Macaense, como a preservação da língua Portuguesa, a promoção cultural, o apoio aos projetos e eventos comunitários e a colaboração com instituições locais e internacionais.
É essencial, portanto, que o Conselho das Comunidades Portuguesas seja inclusivo e representativo, dando espaço para a diversidade das experiências e identidades dentro das comunidades Portuguesas da diáspora, incluindo a Identidade Macaense. Desta forma, o Conselho pode desempenhar um papel importante na construção de pontes, na promoção da cultura e no fortalecimento das relações entre as comunidades Macaenses e Portugal.
No entanto, na perspectiva de um residente veterano de Macau, de mais de quatro décadas, a análise à Identidade Macaense requer-se mais detalhada e aprofundada, e exigente, porquanto é marcada por uma história rica e inolvidável, memórias pessoais e uma profunda conexão com a cultura local.
A primeira dúvida que me ocorreu, há algum tempo, quando me sugeriram escrever sobre a Identidade Macaense, estava relacionada com o tipo de contribuição que poderia prestar ao debate, nas suas diversas vertentes, e qual a melhor abordagem, em que todos se sentem tentados a comentar, mas que se apresenta com alguma complexidade, evitando incorrer em erros de conteúdo ou forma. Um tarefa nada fácil, com toda a certeza, tendo em consideração os trabalhos já elaborados, os discursos proferidos e os artigos publicados em revistas e / ou jornais de referência nesta matéria, por individualidades que se dedicaram ao seu estudo, profundamente conhecedoras da temática, e de reconhecida idoneidade.
Então lembrei-me de algo que alguém me disse em tempos: As barreiras e limitações que nos impomos ao longo do nosso percurso de vida são construídas com base nos valores que nos transmitem sobre o que julgam ser a verdade, ou não, sustentados em preconceitos, e não em factos, ou em opiniões e não em sólidas e autênticas argumentações. Sendo assim, esses valores são a verdade de cada um, segundo a sua própria interpretação, mas nunca será a verdade de todos. Estes são os verdadeiros obstáculos, os obstáculos da intolerância e do pré-julgamento quanto às nossas competências e à qualidade das nossas participações no diálogo social. E de repente fez-se luz…e resolvi então, participar na discussão sobre a Identidade Macaense, que tanta importância tem, afinal, para todos os que se sentem Macaenses. Porque a minha consciência, e o meu sentido de responsabilidade, perante a comunidade, assim me obriga.
Esta é a minha verdade.
Em primeiro lugar, quero afirmar, de modo categórico, o meu orgulho em também me sentir Macaense. Mas, quem somos? O que nos identifica? Qual o papel da nacionalidade neste contexto?
Como nota introdutória a esta análise, gostaria de partilhar convosco excertos de um discurso que me surpreendeu e que foi proferido pelo Professor Doutor Chia-Wei Woo, o Presidente fundador da Universidade de Hong Kong de Ciência e Tecnologia, durante a Cerimónia de Outorga dos Graus Académicos Honoríficos e de Pós-graduação da Universidade de Macau, em Novembro de 2011, em relação ao tema Macaense (o meu primeiro ensaio sobre este tema foi em 2013):
“Sei que a palavra “Macaense” apenas se refere a um segmento da população de Macau. Contudo, esta é uma palavra tão bonita. Quando dita em voz alta – como MACAENSE, soa determinada e dinâmica. Quando dita calmamente – como Macaense, soa doce e bonita. Deste modo, por favor permitam-me que seja corajoso para sugerir que alarguemos a utilização desta palavra para representar toda a população de Macau.”
Continua depois o seu raciocíno sugerindo que, imbuídos deste espírito, nos dirijamos aos nossos visitantes – turistas, negociantes, profissionais, e estudiosos universais, e exaltemos as nossas raízes e o nosso percurso de desenvolvimento histórico, desde “o romance da nossa tradição, ao fascínio da nossa modernidade”, a nossa herança cultural, a importância da rota dos descobrimentos no aproximar dos continentes, e a simbiose das várias comunidades que aqui se resolveram radicar, permitindo também uma evolução nos objectivos puramente mercantis para uma disseminação do conhecimento humano, e que está na génese da Identidade Macaense.
Ora aqui está uma via de análise que considero muito interessante. A designação de Macaense está identificada e descrita em várias obras, e o seu resumo analítico poderá ser consultado acessivelmente na Internet. Assim sendo, seria demasiado repetitivo e consequente alinhar pelo mesmo modelo de debate. E para que seja dado o mote para uma abordagem alternativa ao tema ligado à Identidade Macaense, aproveitava aqui também a oportunidade para citar o distinto presidente da ADM, Miguel de Senna Fernandes, que afirma que ser “Macaense vai muito além da ideia da naturalidade. É, na maioria dos casos, um luso-descendente, mas com forte sentido de pertença a Macau por ali ter nascido ou vivido e esta vivência é sedimentada no tempo com a comunidade”, ou em resumo “o Macaense é aquele que tem Macau por referência e um sentido especial de Portugalidade”.
Na minha humilde opinião, tenho para mim que ser Macaense é um sentimento único, especial, e que está profundamente enraizado no espírito de todos os que, de coração aberto, e sem pré-condições, sentem o pulsar, o calor, e o cheiro inebriante de Macau. O Macaense é oriundo de Macau (ou de uma forma mais abrangente, aqui radicado), e assim perdurará na história de Macau.
Macau foi, e é, territorialmente pequeno, mas nunca foi, ou será, insignificante na sua importância contextual histórica, e este é um sentimento comum a todos os Macaenses. Somos o resultado do encontro de duas grandes civilizações, e nesse contexto representamos a sua dimensão.
Macau é diferente, pois os valores da comunidade local Macaense transmitem-lhe um cunho singular. Sem eles, Macau não era o que é, e é importante que eles se continuem a sobrepor a qualquer questiúncula, para que todos possamos continuar a usufruir desta especificidade histórica, formada, ao longo de cerca de 500 anos, por estes elementos, que souberam conviver em harmonia e abraçar calorosamente todos os que por esta paragem debandaram.
A Identidade Macaense sente-se, não se diferencia. É um processo de tomada de consciência da igualdade na diferença, de interacção social e de afirmação de cidadania. Porque não somos amátridas. Macau é a nossa Mátria. A nacionalidade é uma opção individual que obedece a critérios expecíficos e que não deve ser criticável. Não queremos nem deveremos ser objecto de diferenciação. Não deveremos socorrer-nos de privilégios para nos sentirmos integrados.
O que torna a definição de Macaense complexa e contraditória tem a ver com o facto de ela ser afectada por diversos factores, tais como a lingua, gastronomia, religião, a genealogia e a sua cultura. E o que é a cultura Macaense? Julgo que não se deve, em princípio, compartimentalizar a definição da cultura Macaense, sob prejuízo de alienarmos parte da sua riqueza. Ela é o resulto desse intercâmbio magnífico entre as culturas ocidentais e orientais.
E qual é a importância da lingua na manutenção da chamada Identidade Macaense? E qual a lingua a adoptar como meio de comunicação e de integração? Aqui, o mesmo princípio se aplica. A riqueza está na diversidade. E essa é uma realidade com a qual convivemos localmente e na diáspora. Qualquer emigrante / imigrante tem noção da importância da adopção de várias linguas no processo de comunicação intercultural. E o Macaense, neste contexto, é também um cidadão do mundo, e integra-se rapidamente onde quer que vá, nem que precise para isso de aprender Grego ou Russo. Expressamo-nos, oralmente e por escrito, em Português, Chinês, Inglês e até em Crioulo ou Patuá Macaense, que, com a ajuda de alguns resistentes, nomeadamente o grupo de teatro “Dóci Papiáçam di Macau”, é um idioma que ainda vai sobrevivendo ao desaparecimento dos seus cultistas, promotores e falantes mais antigos, alguns deles entretanto já desaparecidos, tais como o saudoso José dos Santos Ferreira, o “Adé”.
Sendo um produto da multicularidade, o Macaense destaca-se na sua Identidade, porquanto não a subestima como um bem adquirido, ao contrário de outras culturas cuja percepção os induz no sofisma de terem escolhido a sua ascendência ou o local de origem.
É preciso transmitir às novas gerações esta noção de diversidade, e a riqueza inerente a esta herança, porquanto recairá sobre eles a responsabilidade de criação de unidade de propósitos a partir da diferença, sem que estes se confundam com uniformidade.
Eles são o produto de uma grande aventura, com resultados fabulosos, e não precisam de se preocupar em demasia com o problema de “Identidade”. Terão, isso sim, que se empenhar em rejeitar a sua “rotulagem e compartimentalização” quando enquadrados dentro de um contexto comunitário, pois estes só prolongarão no tempo os sentimentos de divisão, indiferença, frustração e recalcamento. É necessária a criação de canais alternativos de comunicação, como forma de destaque de alguma insatisfação, que se tem vindo gradualmente a manifestar, da forma de exclusão a que parte da população de índole Macaense se sente votada em relação a determinados assuntos e a que julgam ter um direito de opinião.
A definição da sua Identidade será aquela que lhe quiserem dar, na continuidade ou na renovação, sem necessidade de paternalismos. Eles saberão, com certeza, e como tem sido atributo das várias gerações de Macaenses, adoptar e adaptar-se às novas conjunturas, criando o modelo mais apropriado às suas necessidades comunitárias, assente na premissa de uma confluência de interesses que resulte numa difusão efectiva de parâmetros que influenciem positivamente o contexto da sua afirmação. Esta não é só a minha verdade, é o meu mais ardente desejo.
O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico
Luís Sousa
7 meses agoGosto muito da abordagem do tema particularmente pela frontalidade e lucidez da realidade Macaense e da sua complexidade.
Rui Marcelo
7 meses agoObrigado pela amabilidade do seu comentário, caro Luís Sousa.
Um abraço.
Virgínia Vieira
7 meses agoAdorei, Rui, disse tudo …. muitos parabéns 👏 !
Rui Marcelo
7 meses agoObrigado pela amabilidade do seu comentário, cara Virgínia.
Saudações fraternas.
Marcelino Marques
7 meses agoQue bela abordagem, caro Rui Marcelo, também pertinente, na véspera do dia mundial da Língua Portuguesa e no ano de novo encontro das Comunidades Macaenses em Macau.
Com a tua abordagem, eu, que vivo em Macau há 13 anos e que amo esta terra que tão bem me acolheu, e a minha filha, que aqui chegou com 5 anos e aqui fez, está a concluir, os 12 anos de escolaridade, finalmente há quem nos reconhece como Macaenses, contrariando a opinião de alguns puritanos que sempre me negaram esta evidência.
Obrigado, Amigo. O meu Abraço.
Rui Marcelo
7 meses agoObrigado pela amabilidade do seu comentário, amigo Marcelino. Conforme afirmei no artigo, esta é a minha verdade, que sei ser partilhada por muitos concidadãos que mantêm um forte sentido de pertença a essa leal terra, que tão bem nos acolheu, e a quem correspondemos com a nossa permanência incondicional.
Um forte abraço.