Manuel Casimiro

Pintor, escultor, fotógrafo, designer, cineasta

© Descendências/Tiago Ribeiro

Entre a razão e a sensibilidade, entre o gesto e a ideia, Manuel Casimiro construiu uma das obras mais singulares e intelectualmente rigorosas da arte portuguesa contemporânea. Pintor, escultor, cineasta, escritor e pensador, é um artista que recusa fronteiras e se reinventa a cada meio, guiado por uma inquietação essencial: a de compreender o mundo e devolvê-lo através da forma. Nesta conversa, o criador do icónico ovóide reflete sobre a identidade, a sinceridade na arte, o papel do espectador e a solidão do artista num país que ainda hesita em reconhecer os seus visionários.

© Descendências/Tiago Ribeiro

A sua infância no Porto, marcada por uma herança familiar tão intensa – o pai como cineasta, o contacto com a cultura cinematográfica e literária – e os caminhos que depois seguiu entre França, Nova Iorque e Portugal, tudo isso forma um tecido profundo que alimenta o seu trabalho. Como se sente hoje, olhando para trás, em termos de identidade: reconhece-se mais no “homem do Norte”, no cosmopolita, no exilado voluntário ou num híbrido, e como essas várias identidades coexistem ou se conflitam no seu processo criativo?

É verdade que, na casa dos meus pais, havia um ambiente profundamente ligado às artes – à literatura, à pintura, ao cinema. A nossa casa no Porto era um espaço atravessado por cultura em todas as suas expressões. Escritores, realizadores, pintores e pessoas ligadas ou interessadas na criação artística passavam por lá com frequência e, muitas vezes, partilhavam connosco refeições. Recordo-me de ter conhecido figuras como o José Régio, a Agustina Bessa-Luís e outros nomes maiores da nossa cultura. Esse convívio, claro, teve um impacto importante na minha formação, mas não foi o único nem, talvez, o decisivo.
Sempre gostei muito de ler. O meu pai tinha uma excelente biblioteca, e foi através dela que comecei a descobrir o mundo – os livros foram a minha primeira grande escola. Mas devo dizer que a minha verdadeira formação, aquela que se tornou mais profunda, alargada e estruturada, começou quando fui para França. Foi aí que tive o privilégio de conviver com figuras como Jean-François Lyotard, Michel Butor e Pierre Restany. O contacto com esses pensadores, sobretudo com Lyotard e Butor, foi determinante; foram eles que ajudaram a forjar em mim os pilares de uma visão mais ampla e crítica sobre a arte e o pensamento contemporâneo.
Lá em casa éramos quatro irmãos, mas apenas eu segui o caminho das artes. Isso mostra que, embora o ambiente familiar possa ser fértil e inspirador, ele não é suficiente por si só para determinar uma vocação. A vocação é um mistério – não sei dizer de onde vem. Mas posso afirmar, olhando para o meu percurso, que dedicar uma vida inteira à arte exige mais do que talento ou circunstância: exige uma persistência hercúlea, uma resiliência constante. E, sobretudo nos inícios, não é fácil. Quando se pretende explorar caminhos nunca antes percorridos, surgem muitos entraves, incompreensões, resistências. É uma caminhada longa e exigente, mas também profundamente gratificante.
Viajei e vivi em vários países, e essas experiências deixaram marcas importantes no meu trabalho e na minha forma de estar no mundo. Vivi duas décadas em França, que considero fundamentais para a minha formação e consolidação artística, e ainda depois disso mantive lá casa durante mais dez anos. Vivi também um ano em Nova Iorque, onde cheguei a receber um convite de uma importante galeria da altura, a OK Harris. Acabei por recusar por duas razões: por um lado, exigiam-me a entrega de um número fixo de obras por mês; por outro, obrigava-me a viver permanentemente em Nova Iorque. E embora seja uma cidade extraordinariamente inspiradora do ponto de vista criativo, também é profundamente desgastante. A vida lá é intensa, acelerada, extenuante – e percebi que não queria submeter-me a esse ritmo. Talvez porque nunca tive espírito carreirista.
Além desses lugares, passei temporadas em Itália, Suécia, Finlândia, Japão, Vietname e outros países do Oriente e do Ocidente. Só me falta conhecer a Austrália. Mas mantenho um gosto enorme por continuar a calcorrear França – um país onde a cultura continua a ter um lugar de destaque e um público atento.

© Descendências/Tiago Ribeiro
© Descendências/Tiago Ribeiro

Ao longo da sua trajectória vimos uma permanente oscilação entre disciplinas – pintura, escultura, fotografia, cinema, design – como se houvesse uma única inquietação que se manifesta em diferentes linguagens. Pode descrever-nos qual é o núcleo conceptual que atravessa essas várias práticas e como decide, para cada peça ou série, qual o “meio” mais adequado para o seu pensamento artístico?

Sempre recorri aos meios que me pareceram mais adequados para cada circunstância. Houve momentos em que foi a pintura, outros em que foi a escultura, o cinema, a escrita – qualquer um desses caminhos, quando escolhido, era o meio ideal para expressar uma ideia ou para levar mais longe uma intuição que queria partilhar. Tudo começa, para mim, com uma ideia – uma pergunta, uma dúvida, uma inquietação – e a partir daí procuro descobrir qual o instrumento mais justo para a traduzir. Tenho um espírito muito racional, repleto de interrogações, e isso acaba por alimentar e enriquecer o próprio processo criativo.
Por vezes, uso várias disciplinas em simultâneo. Gosto, por exemplo, de escrever sobre as minhas próprias obras, de refletir por escrito sobre as ideias que lhes dão origem. São ideias que não se encerram em si mesmas: abrem-se, provocam novas questões, geram movimento, tanto em mim como em quem observa. Acredito que o espectador tem um papel ativo – as obras não se completam sem ele. É preciso que quem olha tenha “olhos de ver”, uma sensibilidade que lhe permita participar na construção de sentido. De algum modo, as obras são feitas também por quem as contempla.
Nos últimos anos, tenho trabalhado com um iPad, mas de uma forma muito diferente daquela que, por exemplo, David Hockney utiliza – vi a sua grande exposição na Fundação Vuitton, em Paris, e foi interessante perceber as distintas abordagens possíveis ao mesmo suporte. Algumas das obras que concebi digitalmente deram origem, em 2025, a uma exposição no Vietname, na antiga cidade imperial de Hué, no Centro Internacional de Cultura. Fui convidado pela Professora Kim Lan, uma mulher culta, que ensinou Kant durante muitos anos na Universidade de Munique e que hoje dirige esse centro. A exposição foi acompanhada por um filme sobre o meu trabalho, realizado por organismos culturais vietnamitas, que inclui uma longa entrevista comigo. Espero poder apresentar esse filme em Portugal – talvez na Gulbenkian, em Serralves ou na Cinemateca – quando tiver tempo para me dedicar a isso.

Existe em si uma espécie de arqueólogo da imagem, uma busca por rastros, por fragmentos do passado, por iconografias que persistem, por fotografias antigas ou objetos guardados. Quando revisita esse arquivo pessoal ou colectivo, o que procura: a reconstrução, a evocação, a crítica ou o reencontro pessoal?

Creio que todos concordamos que o passado é fundamental. Na arte, como na vida, é ele que estrutura o presente e projeta o futuro – porque, no fundo, o presente é já futuro. Sou muito “lyotardiano” nesse sentido: acredito que o presente praticamente não existe, é apenas uma passagem. O que existe, verdadeiramente, é o que está por vir.
A minha preocupação em revisitar as obras do passado sempre teve essa dimensão de diálogo, de abrangência. Não se trata de nostalgia, mas de reencontro e de reflexão. No meu trabalho – e escrevi-o na monografia Nem Antigo Nem Moderno – recorro frequentemente a uma forma mínima, que ao longo do tempo passou a ser designada como “ovóide”. Essa forma nasceu em 1968. É, em si mesma, vazia de conteúdo – um “nada” que pode ser “tudo”, capaz de acolher todos os sentidos possíveis numa reflexão plural.
Nos primeiros anos, o ovóide surgia inscrito em telas ou papéis com fundos brancos ou pretos. Essas composições organizavam-se em séries a que chamei Estruturas, onde uma certa lógica era sempre contrariada por pequenas rupturas. Noutras séries, que denominei Jogos, introduzi números para acentuar o diálogo entre o lógico e o ilógico, entre a ordem e o acaso.
Mais tarde, esses ovóides desprenderam-se dos suportes originais para “invadir” imagens de obras de outros autores que fazem parte da nossa herança cultural – sobretudo as que habitam os museus. Foi assim que, em 1975, o ovóide viajou pela primeira vez com esse propósito, e acabou por se instalar sobre a Gioconda de Leonardo da Vinci, numa espécie de abraço simbólico.
Recentemente, através do iPad, tenho revisitado essas obras e intervenções antigas, incluindo precisamente essa de 1975 sobre a Gioconda. A partir dessa imagem inicial, desenvolvi cerca de quarenta novas peças, todas diferentes, que reinterpretam e expandem aquele primeiro gesto. Creio que esta reflexão em torno da Gioconda mereceria, por si só, uma exposição autónoma.
Importa sublinhar que estas intervenções nunca foram nem são de natureza dadaísta. O ovóide funciona antes como uma espécie de ator abstrato que participa na história das imagens. Ele integra-se, ocupa o vazio, intervém silenciosamente sobre obras que já fazem parte do nosso imaginário coletivo. É, de certo modo, uma incógnita – um enigma que se oferece ao espectador, desafiando-o a encontrar a sua própria resolução.
O ovóide tem essa vocação de continuidade: no passado, no presente e no futuro, continuará a questionar e a repensar permanentemente a história da arte. Serve de instrumento para libertar o olhar de ideias feitas, conduzindo-nos a pensar de modo próprio e inovador. O meu trabalho com o iPad, iniciado há poucos anos, nasceu precisamente de conversas com o meu amigo e colega António Cerveira Pinto. Desde então, essa exploração digital tem-se revelado muito variada e fértil em resultados. É um novo território, mas que mantém a mesma inquietação de sempre – a procura de um sentido que una o tempo, a forma e o pensamento.

A formação visual e literária do seu pai teve inevitavelmente a sua marca. Em que medida essa proximidade marcou o modo como viveu o cinema, o som, a imagem – não apenas tecnicamente, mas filosoficamente – e, inversamente, como procurou (ou procura) afirmar uma voz completamente diferente, singular?

O Manoel de Oliveira e eu temos obras distintas, cada uma identificando personalidades e linguagens muito diferentes, embora aqui e ali possam surgir pontos de contacto ou afinidades subtis. Um exemplo curioso é o do rei D. Sebastião – tema que trabalhei cerca de dez anos antes de o meu pai realizar o filme O Quinto Império. Refiro-me à minha exposição Os Fantasmas do Rei D. Sebastião, apresentada no Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto, em 1988. Nessa mostra apresentei a segunda série de obras que desenvolvi em torno de uma reflexão profunda sobre a identidade de Portugal, inspirada nos símbolos presentes na própria bandeira nacional. A terceira série só viria a surgir muitos anos mais tarde – passaram cerca de vinte e cinco anos, com longos hiatos entre uma e outra, durante os quais me dediquei a outros trabalhos. Já a primeira série havia sido exibida anteriormente no Museu Nacional de Évora.
A propósito dessa primeira série, existe um pequeno filme de cerca de dez minutos, intitulado A Propósito da Bandeira Nacional Portuguesa, realizado em 1984 no Museu de Évora. Essa filmagem foi feita na ausência de Manoel de Oliveira, seguindo rigorosamente o guião que eu próprio concebi – com as ideias para os planos, as indicações musicais e os textos ditos por dois grandes actores. Mais tarde, foi o meu pai quem montou o filme, respeitando o guião original. Por razões práticas – sobretudo para facilitar o reembolso do custo de produção, que envolveu uma equipa profissional – o filme foi inicialmente registado com o seu nome como realizador. Assim foi possível vender duas cópias, uma à Fundação Calouste Gulbenkian e outra à Cinemateca.
A nossa intenção era, posteriormente, acrescentar o meu nome à realização, o que acabou por não acontecer. Na altura eu vivia em França, e o meu pai estava permanentemente envolvido nas filmagens dos seus próprios projectos. O filme ficou depositado durante muito tempo na Cinemateca.
Mais recentemente, quando surgiu a intenção de o exibir em Serralves, na Casa do Cinema Manoel de Oliveira, na versão que apresentava apenas o nome do meu pai, quando ele próprio fez questão de esclarecer formalmente que não se tratava de uma obra apenas sua. Nem ele nem eu alguma vez quisemos que um trabalho conjunto fosse confundido com autoria individual. O Manoel de Oliveira teve, aliás, o cuidado de deixar esse esclarecimento por escrito – tanto junto da Cinemateca como de outras instituições ligadas ao cinema – e pediu-me que o acompanhasse a um notário para registar oficialmente essa declaração.
Ainda não revi o filme desde então, mas, segundo o atual diretor da Cinemateca, a correção já foi efetuada: consta agora o meu nome na realização, mantendo-se também o do Manoel de Oliveira, como deve ser.

A sua pesquisa artística cruzou-se com pensadores e críticos como Jean-François Lyotard, Pierre Restany e Michel Butor. Que influência concreta tiveram esses diálogos no desenvolvimento das suas ideias sobre a imagem, o pós-moderno ou a narrativa visual? Há algum conceito emprestado desses encontros que ainda regule hoje a sua prática?

Entre as figuras que mais marcaram o meu percurso, destaco três nomes que considero fundamentais: o filósofo Jean-François Lyotard – um pensador extraordinário, autor do conceito de “pós-moderno” que viria a transformar o pensamento contemporâneo -; o escritor Michel Butor, um intelectual de formação filosófica, conhecido mundialmente como um dos fundadores do Nouveau Roman; e o crítico de arte Pierre Restany, de brilho raro e reconhecimento internacional em diversos continentes. Todos eles, entre outros, escreveram sobre o meu trabalho – cada um a partir de um olhar próprio, enriquecendo de forma notável a leitura das minhas obras.
Michel Butor é, de certa forma, um caso à parte. Foi um escritor de vastíssimo e enciclopédico saber, cuja obra atravessa a literatura, a música, a pintura e muitas outras áreas. Nos seus cinco volumes reunidos sob o título Répertoires, é possível compreender a amplitude e a curiosidade quase infinita da sua mente. Tal é uma obra variada e rica que Autor pretendeu fazer um doutoramento sobre a sua própria obra. Escreveu bastante sobre mim, em livros e catálogos, sempre com uma sensibilidade rara.
O curioso é que nunca procurei nenhum deles. Foram pessoas que, movidas por uma curiosidade genuína, se aproximaram do meu trabalho. Lembro-me de Michel Butor ter visto uma intervenção minha sobre a imagem de um postal que integrava uma exposição. Tão intrigado ficou, que se informou sobre onde eu vivia e, num gesto que hoje quase nos parece impensável, veio bater-me à porta para ver mais pinturas. Pergunto-me quantos intelectuais portugueses, mesmo reconhecidos, teriam a ousadia e a generosidade de fazer o mesmo perante um artista então praticamente desconhecido.
Esses encontros foram fundamentais na minha formação cultural. O convívio com Lyotard e Butor, em particular, alargou-me horizontes de forma profunda. É evidente que, sendo o meu entendimento sempre “casimiriano”, absorvi deles certas riquezas e modos de pensar, mas nunca no sentido de os reproduzir. Foram diálogos fecundos – trocas vivas – que me ajudaram a compreender melhor a arte, a filosofia e a vida.

Na sua pintura recente, nota-se frequentemente a sobreposição de camadas, aparições e apagamentos, zonas de penumbra e luz quase espectral, como se houvesse memórias submersas emergindo ou sendo recusadas. Pode detalhar o seu processo material – preparação das superfícies, impregnação de cor, rasgaduras, uso do espaço negativo – e como as decisões formais nascem da emoção, da intuição ou de uma necessidade conceptual concreta?

A sensibilidade está presente em toda a minha obra. Creio que é absolutamente fundamental num artista – mas o racional também. Sempre fui muito racional e estou inteiramente de acordo com a célebre afirmação de Leonardo da Vinci: “a pintura é uma coisa mental”. Eu apenas ampliaria essa ideia – diria que a arte, no seu todo, é uma coisa mental. Tudo o que fiz e continuo a fazer, seja na escrita, na pintura, na escultura ou, mais recentemente, no trabalho que desenvolvo no iPad, parte sempre de uma ideia – uma ideia acompanhada, inevitavelmente, pela sensibilidade que lhe dá corpo e vida.
No processo criativo, podem surgir alterações, desvios ou ajustes, porque há sempre um diálogo entre a razão e o mistério. Se há ruturas, dissonâncias ou aparentes incongruências nas obras, é porque foram necessárias naquele momento. E há também coisas que não se explicam – que talvez só mais tarde possam ser compreendidas. Muitas vezes descubro, anos depois, significados que não eram conscientes no momento da criação. Já me aconteceu olhar para obras feitas há cinquenta anos e perceber, só agora, o verdadeiro alcance do que nelas estava implícito. A arte é isso mesmo: uma descoberta contínua, tanto para quem cria como para quem observa.
Não considero essa imprevisibilidade uma fraqueza – antes pelo contrário, é nela que reside a riqueza da obra. Há coisas que pertencem ao domínio do mistério, e esse mistério prolonga-se no tempo, revelando-se pouco a pouco. A arte não deve ser algo fechado, definitivo ou plenamente explicável; não é uma receita de bolo. É um território em expansão, onde há sempre algo por acrescentar, por compreender, por reinventar.
Quem acompanha o meu percurso ao longo de tantos anos reconhece uma obra variada, rica em conceitos e ideias, que procura abrir novas perspetivas e horizontes aos que olham com verdadeira atenção – “com olhos de ver”, como gosto de dizer. As minhas obras não são ideias que se encerram nelas próprias: desafiam o espectador a participar, a dialogar, a construir. Nunca privilegiei um meio em detrimento de outro – pintura, fotografia, escultura, cinema, escrita – uso, em cada caso, o que me parece ser o instrumento mais adequado àquilo que quero expressar.
O que permanece, de forma constante, é uma forma nascida no início do meu percurso: o ovóide. Na sua repetição e nos diferentes contextos em que o inscrevo, revela-se sempre distinto, porque a repetição, longe de ser redundante, é uma maneira de evidenciar a diferença.

O olhar é, talvez, o seu instrumento mais constante – o que antecede o gesto, a cor, a forma. Depois de tantas décadas a olhar, fotografar, pintar e filmar, o que ainda o surpreende? Há algo que nunca deixou de o intrigar visualmente – uma luz, um gesto, uma textura?

Ultimamente, o que mais me tem perturbado é a violência do homem. A guerra é algo absolutamente inacreditável. O que se passa na Ucrânia, ou em Gaza, revela de forma brutal a crueldade humana – as piores facetas do homem expostas em imagens terríveis, que nos entram diariamente pela televisão. É uma realidade que nos confronta com a barbárie e a desumanização, e isso, inevitavelmente, mexe comigo.
Como pintor, sempre tive uma grande admiração por Goya, precisamente porque ele também enfrentou, com coragem e lucidez, essa dimensão sombria da condição humana. Já tinha trabalhado sobre os Caprichos de Goya – primeiro, num pequeno livro, numa fase em que as impressões ainda não tinham a definição ideal. Nessa altura fiz intervenções em vermelho vivo sobre as imagens, como se o sangue e a emoção nelas contidos ganhassem nova presença.
Anos mais tarde, voltei a refletir sobre esse trabalho. Comprei então um livro caríssimo, com fac-símiles de grande qualidade, e refiz toda a série dos Caprichos, reinterpretando-os com outra maturidade e profundidade. Esse conjunto foi depois apresentado numa exposição no antigo Museu Berardo, na Coleção Berardo, a convite de um curador francês. Dessa mostra resultou um livro muito bonito, que hoje integra juntamente com as 80 obras casimirianas dos Caprichos, o acervo da Biblioteca Nacional de França.

A fotografia, que ocupa um lugar fulcral na sua obra, tem-se expressado em séries que desafiam o desejável ou o confortável (erotismo, ruído visual, corpos que não se enquadram nos cânones). Quando decide entrar neste território mais íntimo ou controverso, quais são os riscos que sente – de mal-interpretação, de censura, de morbidez – e qual o desejo que o impulsiona? É confrontar, libertar, subverter ou simplesmente contemplar?

A fotografia ocupa, de facto, uma posição muito relevante no meu percurso. Tanto que a Isabel Lopes Gomes realizou um filme magnífico sobre uma parte da minha obra, centrado precisamente nessa dimensão visual. Depois dessa experiência, ela interessou-se ainda mais pela fotografia e convidou-me a realizar uma exposição com caráter retrospectivo, dedicada exclusivamente às obras em que a fotografia desempenha um papel central.
O objetivo foi mostrar imagens fotográficas que, no meu processo, funcionaram como utensílios de exploração – objetos para investigar ideias, memórias e presenças. Um exemplo é a série de autorretratos que fiz, nos quais inscrevia frases como “moi je n’existe pas” – “eu não existo”. Trata-se de um conjunto de fotografias, em que algumas imagens foram captadas até na casa de Manterlink, em Nice.
Essa série foi apresentada numa exposição que funcionou como uma retrospetiva do meu trabalho fotográfico, no Museu da Vieira da Silva, em Lisboa, permitindo ao público perceber melhor a dimensão experimental e reflexiva da fotografia no meu percurso artístico.

© Descendências/Tiago Ribeiro
© Descendências/Tiago Ribeiro

O design e a escultura nos seus ovóides ou peças tridimensionais assumem formas frequentemente orgânicas, envolventes, aparentemente memorizadas ou fossilizadas. Quando concebe uma escultura, como dialoga internamente entre forma e volume, entre vazio e presença, entre a matéria em si e o espaço que a circunda? E nesse diálogo, que papel há para o acaso ou para a “imperfeição”?

Ao contrário da arte em geral, os objetos de design são criados com uma função específica. Dentro dessa imposição, cabe a quem os concebe recorrer a toda a sua capacidade de invenção, imaginação, sensibilidade e gosto. Os objetos que produzi foram elaborados sempre atentos à funcionalidade de cada um, sem nunca esquecer a forma ovóide, que permanece como assinatura do meu trabalho.
A minha mulher tem uma casa de chá, e nesse contexto concebi diversos modelos de chávenas de chá e de café em porcelana. Desenhei também açucareiros e colheres, concretizados em prata, incluindo as colheres para utilizar nas chávenas. Os açucareiros assumem a forma de verdadeiros ovóides, enquanto as colheres apresentam formas ondulantes, inspiradas em espermatozoides, com a concha igualmente ovóide.
Para além destes objetos, projetei um decantador para vinho do Porto velho, obedecendo a todas as normas técnicas exigidas. O funil tem a forma de meio ovóide e sugere uma flor com o seu caule, combinando funcionalidade e estética de maneira harmoniosa.

Num mundo cada vez mais saturado de imagens – redes sociais, consumo visual em massa – que significado atribui à materialidade da obra artística, à textura da pintura, ao gesto manual, ao objecto singular? Acredita que o esforço pela lentidão, pela hapticalidade, pela experiência física da obra continua a ter um poder transformador no espectador contemporâneo?

Naquilo que fazemos, o mais importante é a sinceridade. Sinceridade é, para mim, absolutamente fundamental.
O esforço físico ou técnico necessário para realizar uma pintura – por intenso que seja – não é o que define a dificuldade ou a profundidade de uma obra. Por exemplo, quando trabalho no iPad, não existe esse esforço corporal; existe, sim, um esforço mental, de reflexão e decisão. Mas, independentemente das condições ou da facilidade com que a obra é executada, o essencial é aquilo que conseguimos expressar.
O que realmente importa é a expressão que a obra transmite – seja ela produzida com mais ou menos dificuldade. O tempo investido ou o esforço físico envolvido não são o elemento central. O que se percebe e se sente, sobretudo por quem tem experiência e atenção ao olhar, é a sinceridade e a genuinidade que a obra comunica. É essa honestidade artística que confere valor e sentido a qualquer criação.

Como avalia hoje a capacidade do sistema artístico português de acolher não só o novo, mas também práticas que desafiem classificações disciplinares (entre pintura, escultura, fotografia, instalação)? E que mudanças institucionais consideraria urgentes para que essa abertura seja verdadeira e sustentada?

Quando me pede para falar sobre a capacidade artística em Portugal, não me parece que possa ser muito elogioso. Há uma grande dificuldade em aceitar algo que contrarie o estabelecido ou que seja verdadeiramente inovador. As instituições seguem, na sua maioria, um gosto importado do estrangeiro e, frequentemente, não têm capacidade para levar exposições de artistas nacionais para fora do país. Assim, os nossos artistas inovadores – que, de facto, não são muitos – ou conseguem o reconhecimento internacional por si próprios, ou dificilmente se afirmam em Portugal.
O mercado interno também se encontra gravemente fragilizado. Desde logo, as leiloeiras nacionais demonstram pouco ou nenhum conhecimento de arte moderna e contemporânea, revelando-se indiferentes a este universo. Isso contribui para que não consigam valorizar o que é verdadeiramente importante. Como consequência, praticam-se valores falseados, muitas vezes suportados pela ignorância da história da arte de grande parte dos colecionadores nacionais. Ao contrário do que acontece em outros países, há uma enorme discrepância entre os valores praticados pelos museus e os visíveis nas leiloeiras. O mercado português de arte moderna e contemporânea é praticamente inexistente; é insignificante. Todos procuram pechinchas, e com pechinchas não se constroem cotações reais nem sustentáveis.
Um exemplo eloquente é o do pintor Sousa Cardoso, figura fundamental, não só, na história da pintura portuguesa. Olhemos para os valores das suas obras: como se explica que o seu amigo e colega, Modigliani – com quem conviveu em Paris – atinja preços incomparavelmente superiores? Isto revela a fragilidade e, de certa forma, o ridículo do nosso mercado.
Também é prejudicial existir um grupo restrito de influência, que limita significativamente os artistas que não estão protegidos por esse “guarda-chuva”. Se um artista não consegue vender as suas obras e não existe qualquer apoio estatal, como acontece noutros países, acaba por ser empurrado para outra profissão.
Pessoalmente, ainda bem que cedo me ausentei do país. Se tivesse permanecido, dificilmente seria quem sou hoje; provavelmente teria tido pouco crédito e seria apenas visto como “o filho de Manoel de Oliveira”. Mesmo assim, reconheço que dificilmente serei a pessoa mais estimada por cá.
Um exemplo recente que ilustra esta realidade é a “Saison France Portugal”, evento em que fui convidado pela França para inaugurar. A organizadora portuguesa, Dr.ª Manuela Júdice, não aprovou a iniciativa e, de forma bastante autoritária, ignorou completamente a exposição, tratando-a como se não existisse. Essa atitude chocou os franceses, que lhe escreveram pedindo que todas as exposições fossem divulgadas. Em França, ninguém procede desta maneira.
Além disso, esta exposição encontrou outras contrariedades: desejávamos mostrar oitenta obras dos Caprichos Casimirianos que, em 2017, integraram as coleções da Biblioteca Nacional de França, em Paris. As exigências para retirar essas obras tornaram a operação praticamente impossível. Foi assim que, no espaço de três meses, voltei a intervir nas imagens dos Caprichos de Goya. Felizmente, tudo acabou por correr bem.

A globalização cultural, o turismo, as economias criativas trazem visibilidade mas também padronização, dogmas estéticos internacionais, pressões de mercado. Que obstáculos vê para a autonomia do artista no panorama atual português e europeu? E como resiste – nas suas escolhas, nos seus exibires, nos seus materiais – a estas pressões para manter uma identidade própria?

Acredito que sempre tive uma identidade própria. O reconhecimento dos meus trabalhos é imediato; qualquer pessoa familiarizada com a minha obra consegue identificá-los.
Hoje, porém, há uma influência enorme resultante do acesso massivo e imediato à informação através da internet e das redes sociais. É natural que artistas com menos determinação se deixem influenciar pelos movimentos externos, amplamente propagandeados. Se um artista não possui uma personalidade consolidada, acaba facilmente por se deixar levar pelo que vem de fora. Além disso, as próprias instituições portuguesas são muito influenciadas por estas tendências internacionais, e isso é prejudicial, pois muitas vezes não sabem aproveitar o que de bom temos em Portugal.
Dou o exemplo do meu pai, Manoel de Oliveira, cujo trabalho é verdadeiramente ímpar no cinema mundial. Ele antecipou o filme de Visconti, Sessione, que inaugurou o Neorrealismo Italiano, um ano antes, com Aniki Bóbó. A sua obra tem características únicas e continua a ser muito valorizada internacionalmente: os seus filmes são frequentemente requisitados em festivais de cinema de prestígio, como Cannes, exibidos no Lincoln Center, integrados no Festival de Filmes de Nova Iorque. O que é curioso – e triste – é que estes acontecimentos quase nunca recebem atenção em Portugal. Quando se fala do seu trabalho, é de forma mínima, quase imperceptível nos jornais e nos media. Portugal tem, infelizmente, o feitio de um caixão: quando alguém morre, o assunto é encerrado de forma definitiva. Apenas se houver alguma ligação política ou interesse particular é que o nome volta a ser mencionado; caso contrário, é como se não tivesse existido.
Não vejo esta mentalidade em países como França, Inglaterra ou Alemanha. Nesses lugares, há um verdadeiro respeito e valorização pela cultura própria, uma apreciação consistente da riqueza artística do país e dos seus criadores.

Se olhar para o quadro cronológico da sua carreira – desde as primeiras exposições em 1968 até às antológicas de hoje – que rupturas, na sua opinião, são as mais significativas? Poderíamos apontar uma viragem estética ou conceptual clara em determinado ano, ou considera que o seu trabalho seguiu uma evolução mais dialogante e gradual?

O meu trabalho começou por ter importância desde o início, porque criei uma base sólida com os primeiros ovoides. Pinto desde miúdo – nunca deixei de pintar -, mas o meu verdadeiro interesse pela pintura surgiu no momento em que comecei a raciocinar de forma consciente e pensei: “Agora sim, vamos fazer a coisa como deve ser.” Foi então que nasceu o ovóide.
Desde aí, são já muitas as obras, movimentos e caminhos que percorri. Um dos meus trabalhos mais recentes está profundamente ligado à cultura milenar da China. Quando recebi o convite para expor lá, mergulhei na leitura sobre a pintura chinesa e descobri algo fascinante: desde os primórdios, os pintores chineses se dedicaram quase exclusivamente à paisagem – e continuam a fazê-lo até hoje.
Inicialmente, pensei que fossem paisagens reais, copiadas da natureza. Mas não – são paisagens inventadas, construídas pela imaginação. Quando percebi isso, senti vontade de fazer o mesmo: paisagens que não existem. Comecei por pintá-las em pequenos retângulos dentro das telas e dos papéis; depois, essas paisagens foram-se expandindo, ocupando todo o espaço do suporte. E a partir daí, como sempre, fui experimentando, reinventando, e fazendo muitas outras coisas.

Se pudesse projetar uma grande retrospectiva sua que ainda não foi feita – que selecção de obras incluiria para mostrar não só a evolução formal mas os seus dilemas éticos, as zonas de sombra, as hesitações – quais seriam as peças-chave, as obras que considera nucleares para compreender Manuel Casimiro?

Desde logo, tinha que apresentar algumas obras do início – é como contar uma história: começa-se sempre pelo princípio. Há, sem dúvida, elementos que ajudam a compreender melhor o meu percurso. Destaco, por exemplo, a reflexão em torno da bandeira nacional e da nossa identidade, um trabalho que considero marcante. Fiz a primeira série no Museu Nacional de Évora, a segunda – Os Fantasmas dos Reis do Sebastião – no Museu Nacional Soares dos Reis, e a terceira num centro de arte em Matosinhos.
Outro momento importante é a fase das montanhas, profundamente simbólica. A subida à montanha representa o esforço humano, a procura de superação, o desejo de alcançar um ponto mais alto de entendimento. Quanto mais subimos, mais ampla é a vista, maior é o conhecimento, mais profunda é a compreensão – já dizia Nietzsche, “Vós olhais para cima, quando ansiais por elevação”. Estar próximo da natureza é, também, aproximar-nos de nós próprios; é compreender melhor o que somos, e libertar-nos de certas aspirações demagógicas que em nada enobrecem o homem.
Em 1996, Serralves organizou a primeira grande retrospetiva da minha obra, a convite de Fernando Pernes e comissariada por Jean-Hubert Martin, então ex-diretor do Centro Pompidou. Dessa exposição resultou um volumoso catálogo com mais de vinte textos, de autores portugueses e estrangeiros, entre os quais Lyotard, Butor e Restany.
Desde então, surgiram muitas novas obras e perspetivas que gostaria de poder dar a conhecer a um público mais alargado. Nunca segui modas nem tendências; sempre trilhei o meu próprio caminho, movido pela vontade de inovar – algo que, sobretudo fora do país, despertou o interesse e a curiosidade de muitas figuras de prestígio internacional. Creio ser um dos autores portugueses com mais textos críticos e analíticos escritos sobre o seu trabalho.
Curiosamente, nunca fui convidado para representar oficialmente Portugal. Já representei a França – uma vez em Berlim e outra em São Paulo – mas isso nunca me inquietou. Não sou carreirista. O que me interessa é continuar a concretizar os meus projetos, que felizmente têm sido muitos.
Vivemos hoje um tempo de equívocos, em que a visibilidade se sobrepõe ao valor real das coisas, e onde o mediatismo muitas vezes promove o que é menos importante. Está-se muito longe do tempo do extraordinário galerista Daniel-Henry Kahnweiler, que dizia querer enriquecer – mas não de qualquer maneira. Foi ele quem ajudou a projetar Picasso e outros grandes nomes da história da arte. Enriqueceu antes da guerra, perdeu tudo durante ela e voltou a enriquecer depois – sempre com integridade e verdadeira paixão pela arte. Era um homem culto, movido pelo gosto e pela sensibilidade, e não pelo dinheiro. Hoje, infelizmente, já não se vê muito disso.

Como artista que atravessou décadas de transformações culturais, políticas e tecnológicas, que significado tem a ideia de progresso na arte? Acredita que existe um horizonte ético, estético ou civilizatório que a arte de hoje deva perseguir, ou acha que vivemos uma época de múltiplos horizontes que se colidem, improváveis de reconciliar?

Acho que vivemos uma época terrível de violência. Há cada vez mais guerras, mais discórdia, mais desentendimento entre os países. É uma instabilidade imensa, que também se reflete na forma como muitos políticos agem – dizem uma coisa hoje, e amanhã afirmam o contrário. Tudo isto cria um clima de incerteza e perturbação que, inevitavelmente, pode acabar por se refletir também no trabalho de um artista.

Pensando no futuro imediato, que tipos de projetos ou desafios ainda o atraem? Há ambições curatoriais, editoriais ou pedagógicas que ainda não concretizou e que gostaria de anunciar?

Acho que nunca fui convidado de forma significativa, embora tivesse gostado de o ser. Tenho muitos projetos, especialmente ligados aos livros – ideias e propostas que gostaria de ter concretizado, mas que nunca avançaram. Apesar de já ter várias publicações, gostava de ter tido mais oportunidades de participar e de editar.

O problema é que, em Portugal, as editoras não demonstram grande interesse. Partem do princípio de que a arte interessa a muito poucos. Ao contrário de outros países, onde há curiosos, leitores atentos e um verdadeiro mercado editorial ligado à arte, aqui quase não existe esse público estruturado. Há quatro ou cinco pessoas que compram livros de arte, e fica-se por aí.

Naturalmente, gostava também de fazer uma grande exposição neste momento. Tenho vindo a pensar nisso – sobretudo numa exposição centrada nas minhas obras digitais, que representam um novo desafio e uma nova etapa no meu percurso. Foi o António Cerveira Pinto quem me incentivou a explorar este caminho, e tinha razão. Descobri um meio riquíssimo, cheio de possibilidades. Hoje tenho já muitas obras digitais que gostaria de mostrar, mas ainda não encontrei em Portugal uma galeria com a qual me identifique.

Lembro-me de Daniel-Henry Kahnweiler, um dos grandes galeristas da história da arte, que foi um dos pilares no lançamento da obra de Picasso. Era um homem que dizia gostar de ganhar dinheiro – e ganhou muito -, mas acrescentava sempre: “não quero ganhar dinheiro de qualquer maneira”. Tornou-se milionário, perdeu tudo durante a guerra e voltou a enriquecer, porque era um verdadeiro conhecedor, sensível, um amante da arte.                                                                                                                            

Hoje, pelo contrário, quase ninguém fala das obras. O argumento mais usado é puramente especulativo – “compre isto, que vai valer muito”. Mas não se explica porquê. Não se fala da essência, do valor artístico, do significado. É um mercado cheio de vícios, de superficialidade e de interesses, que precisava urgentemente de ser reformulado.

Talvez por isso eu não tenha galeria nenhuma neste momento. Ainda não encontrei quem tenha uma perceção e um entendimento verdadeiros em relação à minha obra.

Finalmente, como gostaria de ser lido pelas gerações futuras? Que legado espera deixar – em termos de perguntas colocadas à arte, de modos de ver, de práticas disciplinares híbridas – e que conselhos deixaria a um jovem artista português que se debate hoje entre a tradição e a necessidade de inovação radical?

A arte está em permanente mobilidade. As obras têm uma vida própria, uma capacidade de se atualizarem com o tempo. As obras verdadeiramente importantes são aquelas que mantêm essa força de renovação, que continuam a falar ao presente, mesmo tendo sido criadas há décadas ou séculos.
Também o espectador mudou.
O público que hoje observa uma pintura não é o mesmo dos séculos XVII, XVIII ou XIX. Cada época tem o seu olhar, a sua sensibilidade, o seu entendimento das coisas – e a arte acompanha essas transformações. É por isso que o passado se projeta no futuro. Essa atualização constante é o que o filósofo Jean-François Lyotard identificava como o sentido do pós-moderno: um diálogo contínuo entre o que foi e o que está por vir. Um passado que não se projeta no futuro, que não renasce sob novas leituras, acaba por perder o seu sentido.
Quanto ao entendimento das minhas obras pelas gerações futuras, não sei o que esperar. Só o tempo o dirá. Não é fácil prever o futuro, sobretudo num momento em que parece que o ser humano insiste em autodestruir-se através da guerra e da violência. Vejo o mundo com alguma apreensão – não me parece haver uma perspetiva muito cor-de-rosa.

© Descendências/Tiago Ribeiro

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