A saga do emigrante

Conselho das Comunidades Portuguesas

Memórias da imigração portuguesa no Brasil

Três fatores impulsionaram o fluxo de portugueses para o Brasil no fim do século XIX, todos vinculados de modo menos ou mais direto a mudanças legislativas em um país ou outro: a crise vinícola do norte de Portugal, com o aumento da proletarização pela fragmentação da terra por força da nova lei sucessória; a abolição da escravidão no Brasil, cujas maiores cidades ofereciam salários superiores aos de Portugal; e a nova política da República instaurada em 1889. Os critérios para os emigrantes elegerem o Brasil como destino principal, quase exclusivo, incluíam desde caraterísticas comuns como o idioma e a religião, a aspectos como a situação da saúde, melhor por aqui, apesar de epidemias como as de febre amarela e varíola.
O Governo português não inibiu a emigração com cotas ou restrições absolutas, mas, por temor de despovoamento, tentou desencorajar a saída ao Brasil ordenando a leitura nas igrejas dos nomes de emigrantes falecidos, como alerta dos riscos da emigração; e jornais publicavam essas listas e notificavam as epidemias na ex-colônia. Na virada do século, os imigrantes no Brasil eram quase sempre homens solteiros e casados desacompanhados, saídos, sobretudo, de áreas rurais do norte (Braga, Porto e Viseu) rumo ao eixo São Paulo–Rio de Janeiro; a então capital federal era o maior polo comercial, bancário e das nascentes indústrias. No seu país, eram expropriados; no Brasil, viam a sua força de trabalho permitir poupar e acumular. O predomínio masculino entre os portugueses no Brasil foi absoluto até a segunda metade do século XIX, quando a proporção feminina começa a crescer gradualmente até atingir 31% na década de 1950. Tal mudança refletiria a perda de espaço da emigração individual em favor da familiar no século XX.
O perfil da emigração de portugueses ao Brasil acompanhou a política local de recrutamento de mão de obra: na segunda metade do século XIX, agentes passaram a recrutar europeus para substituírem os escravos africanos. A Província de São Paulo criou programa de imigração em 1887, divulgando facilidades como transporte ferroviário, hospedagem, alimentação e tratamento médico gratuito. Pretendentes às passagens subsidiadas – oferecidas até os anos 1920 – deviam satisfazer critérios como idade, sexo, estrutura familiar e ocupação; não eram financiados imigrantes solteiros.
Os portugueses que emigraram ao Brasil antes do primeiro quarto do século XX eram agricultores e operários agrícolas, depois vinham os trabalhadores e proprietários do setor terciário (comércio, alfaiates, barbeiros etc.) e, em volume menor, do setor secundário, especialmente operários (profissionais liberais e artistas eram raros). O grosso de tal emigração é constituído por indivíduos populares de condição humilde e incultos – analfabetos na sua maioria. O perfil do migrante mudava, pois subsídios atraíram as famílias.
A República em 1910 e a tentativa frustrada de restaurar a Monarquia, impulsionaram a emigração de monarquistas. A aliança com os britânicos levaria à perda de soldados portugueses na I Guerra Mundial e contribuiu, junto com lutas internas, para um estado praticamente insuportável para os cidadãos; no campo, os agricultores tinham despesas superiores aos rendimentos. A emigração teve até a propaganda de entidades públicas e particulares que, com exagero e inverdades, vendiam uma imagem do Brasil como novo eldorado, com oportunidades de fácil e rápido enriquecimento.

O alto custo da viagem transatlântica, que incluía gastos administrativos (passaporte e fiança militar) além de passagens de navio nunca subsidiadas pelo governo de Portugal, altera o perfil dos portugueses, agora com capital ou crédito. Tal perfil é corroborado pelo teor das “cartas de chamada”, correspondências pelas quais garantia-se auxilio a parentes e amigos que se juntariam aos signatários que se responsabilizavam pelo sustento de novos imigrantes. Tem consonância ainda com a participação em negócios no Brasil das primeiras décadas do século XX, quando os lusos se destacavam com bancos, comércio atacadista e varejista e indústrias como fábricas de tecidos e artigos de armarinho. A tabaqueira Souza Cruz foi fundada por um português em 1903 com recursos de quase duas décadas de trabalho. A renda dos imigrantes fazia diferença no Brasil e em Portugal, com as remessas para a terra natal, recursos decisivos ao desenvolvimento de diversas regiões.
Por mais que a emigração fosse favorecida em Portugal por fatores econômicos como a falta de acesso dos proprietários rurais ao crédito e a pouca atratividade das cidades em industrialização, esse processo foi dificultado pela depressão mundial após 1929, pela II Guerra Mundial (havia riscos na travessia e ganhos lusos na economia) e, no caso do Brasil, pela política antiemigratória do governo Vargas. Por isso, o fluxo migratório recuou no inicio dos Estados Novos, português e brasileiro. Na segunda metade do século XX, os emigrantes portugueses diversificaram mais seus destinos e o perfil maioritário era de homens até 39 anos que não queriam ser militares nas guerras em África; assim, mesmo em menor número que antes, os portugueses seguiam desembarcando nos portos – e aeroportos – brasileiros.
Quando chegou a Santos após nove dias a bordo do Frederico C, Manuel Alves fez parte da última leva de portugueses vindos mediante carta e chamada feita. Natural de Ponte de Lima, tinha 17 anos e via o Brasil como local que permitia a seus conterrâneos acumular o bastante para exibirem relógios e roupas novas ao visitarem Portugal. Seu pai João tinha tentado a sorte em São Paulo, mas voltara a Portugal, onde criou família e cultivou uva, azeitona, milho etc. Manuel chegou com planos de estudar, mas a rotina de trabalho – no bar do irmão e, depois, na padaria Fernandes, no Ipiranga – o desviou dos planos. Trabalhou duro, não raro acordando na mesma madrugada em que adormecera, e passou por todas as funções: balconista, padeiro, confeiteiro… O pouco sono, saciado até no fundo do bar onde essa lida começou, não abalava seu apreço pela terra “maravilhosa” por ter de tudo, e por seu povo, logo tido por ele como alegre. O funcionário polivalente não demorou muito e se tornou sócio da padaria Fernandes e depois de alguns anos adquiriu outras casas comerciais na cidade de São Pulo.
Muitas outras histórias de imigrantes poderíamos contar, porém não conseguiríamos relatar todas mesmo que separássemos as mais curiosas e interessantes. Todas as histórias dos imigrantes vindos para o Brasil e para outros países são iguais. Saindo de Portugal que não oferecia empregos nem condições de vida, emigravam para dar condições melhores à sua família. Sujeitavam-se a dormir no próprio emprego (nos fundos das padarias e armazéns), para economizar, pois precisavam pagar a passagem a quem a financiou e depois disso acumular recursos para se estabelecer.

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