A espuma dos dias

A expressão é usada, mas descreve na perfeição tudo aquilo que se perde por não ter essência, por não ter nervo, ou estrutura. O mar perde-se na espuma, ao invadir a areia das praias. O espumante perde-se na mousse, nas bolhas delicadas e elegantes que conquistam a boca ao atacar o palato. E a maior parte do tempo que investimos no trabalho, nas relações, nos pensamentos, dissipa-se também sem fazer perdurar uma marca, um rasto que fique na memória. A espuma dos dias é tudo aquilo que parece fazer evaporar o tempo – o nosso tempo.
Numa época de vertigem, de processos rápidos e decisões impensadas, não deixa de ser metafórico que o ano termine invariavelmente ao som de bolhas a invadir os flutes, junto de amigos e família, num balanço que junta um pouco do passado e um mar de perspectivas e de esperança sobre o futuro. Se por um lado somos incapazes de suster a evaporação dos dias, por outro não desistimos nunca de tentar compreender, melhorar, evoluir. Essa é a essência do Homem – que tantas vezes brinda a humanidade com actos heroicos e descobertas improváveis. Foi assim com a criação do espumante.
Reza a história que foi Dom Pérignon a descobrir, por mero acaso, o vinho espumante; seria difícil controlar a segunda fermentação do vinho, que criava bolhas e fazia explodir os recipientes. A História é mais do que o mito e Dom Pérignon terá contribuído voluntariamente para a criação de lotes (com vinhos de várias regiões circundantes, para melhorar o resultado final) e do método, em tudo semelhante ao que é usado hoje.
Hoje, o processo inicia-se com a colocação de vinho tranquilo, o vinho base, numa garrafa. A esse vinho são adicionadas leveduras, que consomem o açúcar residual, não transformado em álcool durante a primeira fermentação.

A garrafa, deitada, fechada com uma cápsula, fica em descanso por um ano (Reserva), por dois anos (Super Reserva) ou por mais de três anos (Velha Reserva). Nesse período as leveduras entram em decomposição, libertando aromas e provocando uma fermentação controlada, que proporciona o gás – a nossa espuma. As células mortas das leveduras formam depósito, junto às paredes da garrafa. A retirada dessas células inertes é iniciada com o processo da remoagem, que consiste num conjunto de movimentos que vão inclinando a garrafa para empurrar as leveduras até à capsula. Findo esse processo, que pode ser manual ou automático, as garrafas são depositadas na vertical, com o gargalo para baixo, num circuito de congelação. Num novo processo, o dégorgement, as leveduras, junto ao gargalo, são congeladas em conjunto com uma pequena porção do vinho já espumantizado. Essa porção de gelo é retirada e é adicionado o licor de expedição, que pode conter vinho e açúcar (consoante pretendamos um espumante bruto, seco, meio seco ou doce). A garrafa é rolhada e fica finalmente preparada para ser capsulada, rotulada e expedida. E depois degustada, em momentos de celebração ou apenas de sublime prazer.
Como se vê, uma simples garrafa de espumante produzida através do Método Tradicional é submetida a um processo longo, trabalhoso e dispendioso. O que nos deixa uma boa mensagem para o ano que vem: há sempre muito a investir para podermos ter o privilégio de dedicar tempo à espuma dos dias.
Bom ano!

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