A música e o vinho

Escrito enquanto ouvia a Sinfonia nº 3 de Beethoven; pode ser lido nas mesmas circunstâncias, com um tinto do Douro ou do Alentejo

A história confunde-se com os mitos. E a realidade perde-se com estórias, que vão conquistando novos floreados e versões incongruentes, combinando factos que ocorreram em momentos distintos. Mas diz a lenda que Ludwig van Beethoven tinha no Príncipe Karl Lichnowsky um dos seus grandes amigos e promotores da sua arte (facto assumido, aliás, em carta). A amizade (mais tarde afectada por um paternalismo que o músico qualificou como opressor) não revogou, no entanto, um momento insólito. Karl Lichnowsky recebera forçadamente oficiais de Napoleão no seu castelo e, de acordo com os bons costumes de uma certa fleuma aristocrática, terá pedido a Beethoven para oferecer a sua música aos ocupantes. Beethoven recusa-se, inicia-se uma contenda e o compositor abandona o castelo, a pé. Logo que chega a uma cidade próxima envia um bilhete a Lichnowsky: “Príncipe, o que és, és acidentalmente por nascimento; o que eu sou, sou por mim mesmo. Príncipes existem e existirão aos milhares, mas Beethoven há apenas um”.
A irreverência temperamental de Beethoven está plasmada nas suas sinfonias, que em segundos nos transportam velozmente dos vales da melancolia para os picos do heroísmo. Mozart – outro génio – ficou na história sobretudo pelas melodias admiravelmente harmoniosas, quase afeminadas. Desde a utilização do cravo às composições mais famosas, Mozart, apesar do brilhantismo, era quase sempre reflexo de um conjunto de regras que enformavam o resultado final.
Acredita-se que Mozart e Beethoven se conheceram em Viena. Mas eram de gerações distintas. Mozart viveu num tempo de absolutismo, de reverência aos Reis e aos Imperadores; num tempo de poder tirano, exercido sem controlo pelos funcionários régios. Na sua época, os homens usavam cabeleiras postiças, rouge, sinais postiços, folhos e meias de seda. Eram eunucos, homens sem liberdade para expressar a sua diferença. Beethoven viveu na transição para o liberalismo. Os homens vestiam jaquetões pretos e camisas brancas; assumiam uma postura mais austera, sem floreados nem subterfúgios. E afirmavam-se em liberdade. É impossível escolher entre os dois génios. Foram ambos únicos. Um mais contido e harmonioso. Outro mais livre e temperamental. Mas o que seria da humanidade sem a sua inspiração?

Nos últimos anos iniciámos uma nova era, a que podemos apelidar de experiencial. Apostámos na investigação da envolvente humana e muito se tem concluído sobre como conjugar os cinco sentidos para criar novas experiências sensoriais, que nos transportem para emoções e sensações únicas – como as sinfonias dos grandes compositores.
O sector dos vinhos não é alheio a essas tendências e, recentemente, diversos estudos concluíram que a música afecta a forma como sentimos os vinhos. Os próprios vinhos têm perfis diferentes: uns mais equilibrados, suaves e harmoniosos, como Mozart; outros mais impetuosos e temperamentais, como Beethoven. Uns seguem as pulsões da música repetitiva, que deu os primeiros passos na América dos anos 20 e que encontrou, na música electrónica dos anos 80 e 90, o reconhecimento de um novo estilo. Aliás, acredita-se que a música repetitiva tem por base a teoria das pulsões de Freud. E a metáfora pode abranger o sector vitivinícola: há vinhos repetitivos que salientam uma espécie de tânato e parecem representar a pulsão da morte; e outros que, embora repetitivos, possuem um equilíbrio que parece representar o Eros, uma pulsão criativa e criadora de vida. No mercado encontramos também vinhos que são Satie ou Débussy, românticos, pioneiros da música ambiente.
Quanto à música de hoje, deparamo-nos com variados estilos muito interessantes. Mas um estudo, em 2017, revela que foi criado um algoritmo capaz de demonstrar que a música pop está cada vez mais repetitiva. A metáfora é inevitável: será que o mesmo tem sucedido com os vinhos que temos vindo a produzir recentemente, um pouco por todo o mundo?
Já aqui escrevi sobre as harmonizações gastronómicas. Com base em estudos internacionais, aqui ficam alguns conselhos para conciliar vinhos e música. Os vinhos tintos proporcionam sensações mais fortes quando acompanhados por músicas sentimentais; um pinot noir exige músicas românticas, com piano; e um cabernet sauvignon pede músicas intrépidas, para aliviar e enquadrar os taninos. Os vinhos doces parecem pedir músicas repetitivas e ritmadas. Os vinhos mais frescos podem ser conjugados com melodias rápidas e instrumentos metálicos. Não acreditam? É uma questão de experimentar.

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