Bayingyis, os lusodescendentes de Myanmar

Esquecidos estavam, esquecidos continuam – I Parte

Enquanto a guerra na Ucrânia domina as atenções dos media e das organizações internacionais, prossegue impune a repressão da Junta Militar do Myanmar sobre todos os que se opõem ao seu tirânico regime. Entre eles estão os membros de uma comunidade lusodescendente com quase 450 anos de existência, gente rural, conhecidos localmente como bayingyis. Várias das suas aldeias foram já inteiramente queimadas, os seus bens destruídos e houve até quem fosse assassinado a sangue frio. Aterrorizados pela acção da soldadesca e dos tiros da artilharia, os aldeões fugiram e encontram-se agora refugiados nas instalações da diocese em Mandalay, a segunda cidade do país. Desabafo de um dos seus residentes, chamemos-lhe Paulo: “temos imenso orgulho das nossas raízes portuguesas, mas Portugal não quer saber de nós!”. Diz isto, pois desde o final do ano passado tem estado em contacto comigo fornecendo-me provas das atrocidades cometidas, provas essas que em vão tentei chegar aos orgãos de comunicação social. Não demonstraram qualquer interesse pela matéria até há umas semanas, quando lhes fiz chegar a mensagem que recebera do Paulo logo pela manhã: “Ontem, um contingente militar de 150 soldados entrou em Chan-thar-ywa, uma grande aldeia bayingyi na região de Sagaing, disparando mais de 3 tiros de artilharia. Às 15 horas começaram a queimar a aldeia. A minha casa e muitas outras foram incendiadas… O pároco, as religiosas e os aldeões estão agora em fuga, deixando para trás todos as seus bens. Avistamos muito fumo do local onde nos escondemos”. Dias depois, já na capital Yangon, Paulo informava-me que a Junta Militar cortara a internet e as comunicações de rede móvel na região onde se situam as aldeias dos lusodescendentes. Ou seja, a partir de então essa gente ficou ainda mais isolada. As imagens que o Paulo me fez chegar mexeram comigo, tocaram-me no fundo da alma, entristeceram-me profundamente. Conheci bem aquelas aldeias, dormi naquelas casa de teca e recebi da gente que as habitava toda a hospitalidade do mundo e arredores. Eu representava o Portugal mítico que durante séculos os bayingyis transportaram (e transportam ainda) consigo, apesar da maior parte deles ser incapaz de indicar num mapa onde fica Portugal. O Paulo era miúdo ainda quando pela primeira vez visitei essas aldeias, em 1993…

Mais tarde, teve oportunidade de viajar e numa passagem por Macau veio à minha procura. “Lembro-me bem de si. Era criança ainda”, disse ele quando nos sentamos para beber um café e evocar recordações antigas. Na verdade, ando desde meados da década de 1990 a falar da comunidade bayingyi, a mais reputada das comunidades luso-descendentes do Myanmar. Dei a conhecer a sua existência e os seus anseios com artigos nos jornais e revistas, exposições fotográficas, dois livros, um documentário, depoimentos nas rádios e televisões e nas inúmeras conversas com amigos e desconhecidos. Em Macau, Portugal e onde foi possível chegar no mundo. Mesmo assim, ainda há quem teime em ignorar a sua existência e as suas justas reivindicações históricas. É o caso da maioria dos media (sobretudo as televisões) e das nossas autoridades, ao mais alto nível, todas elas ao corrente da situação. Presidência, MNE, Assembleia da República: um ensurdecedor silêncio; prova provada de que Portugal abdicou da sua política externa. Depois de registar o meu testemunho sobre o processo em curso, que visa, no mínimo, a desagregação e desenraizamento dessa comunidade orgulhosamente distinta das restantes (ou até, porventura, a sua aniquilação completa), uma jornalista da Lusa foi ouvir o que tinha a dizer o nosso MNE: “Questionado pela agência Lusa, o Ministério dos Negócios Estrangeiros recordou que, desde o primeiro instante, Portugal condenou o golpe militar de 1 de Fevereiro de 2021, praticado pelas autoridades militares do Myanmar, uma violação flagrante da vontade da população, expressa nas eleições gerais de 8 de Novembro de 2020”. E prossegue a nota do Palácio das Necessidades: “A violência por motivos étnico-religiosos ou a violação da liberdade religiosa é injustificável e inaceitável, em todas as suas formas. Myanmar está no topo da agenda da União Europeia e Portugal continuará a participar activamente no esforço colectivo da comunidade internacional para pôr termo a este conflito e auxiliar as populações vulneráveis”.
Ou seja, sobre a comunidade bayingyi – que mantém a chama da portugalidade há mais de 400 anos e que agora perdeu tudo o que tinha (casas, bens, animais, colheitas e, alguns, familiares também) – nem uma palavra! E tudo indica que razão desse silêncio se deve a rumores que nas Necessidades disseminaram a disparatada ideia de que a assumida origem lusitana dos bayingyis não tinha razão de ser e que tudo não passava de uma invenção de “um grupo de macaístas de interesses oportunistas” (!?), daí que os nossos governantes optassem por não individualizar a questão, preferindo diluí-la no protesto comum da União Europeia pela continuada repressão às minorias éticas. Face a este delírio, só me ocorre dizer o seguinte: ou estamos perante alguém com uma enorme má fé (inclino-me para esta hipótese) ou então perante um verdadeiro atrasado mental. É sabido que a gente mesquinha e torpe, por norma não lê, não estuda, não conhece, e tem raiva de quem lê, estuda e conhece. Daí a sua tendência para a má língua e a difamação. Pois bem, a origem portuguesa dos bayingyis (e de outras comunidades lusodescendentes do Myanmar, nomeadamente a de Arracão, que também conheço bem) está mais do que comprovada. Basta ler, por exemplo, alguns dos capítulos da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto ou a nossa contemporânea investigadora Maria Ana Marques Guedes, especialista da relação histórica entre Portugal e a Birmânia. Está lá tudo explicadinho.
Entretanto, e para os mais preguiçosos, deixo aqui, em jeito de intróito histórico, uma breve resenha que, espero, ajudará a contextualizar.
Mas quem são exactamente os bayingyis? Como surgiram?

© Joaquim Magalhães de Castro

A ILHA DOS PORTUGUESES
– Se vai ao meu país, não se esqueça de visitar a ilha dos portugueses. – Foi com estas palavras que se despediu de mim o jovem secretário da embaixada de Myanmar em Pequim quando, no início da década de 1990, aí fui solicitar um visto de turista. Dessa vez, não chegaria a utilizá-lo, mas aquilo da “ilha dos portugueses” ficou-me na ideia durante algum tempo. Quando, poucos anos depois, visitei pela primeira vez essa nação que já se chamou Birmânia e que um punhado de generais teimava em considerar feudo seu, levava a lição minimamente estudada, graças à informação que em Macau me fora fornecida por um amigo entusiasta dessas coisas das miscigenações.
Quem primeiro nos relata o pioneirismo dos portugueses na Birmânia é o cronista Duarte Barbosa, que em 1501 ruma à Índia com uma frota de várias dezenas de navios, só regressando a Portugal quinze anos depois. No decorrer da sua viagem pelo subcontinente e pelo Sudeste asiático refere-se, por diversas ocasiões, ao reino da Birmânia, com “os seus habitantes de pele escura que andam nus da cintura para cima”, e aos «mouros e pagãos» (entre estes últimos estavam incluídos os chineses), os grandes comerciantes da época, rivais dos portugueses. Barbosa é, provavelmente, o primeiro europeu a mencionar a existência da Birmânia, na altura, o nome dado ao principado de Tangu, que, juntamente com Ava, Pegu e Arracão, era um dos mais importantes reinos da região que hoje constitui o estado de Myanmar.
Em 1511, os mon (uma das muitas etnias da região) estabeleceriam um tratado comercial e de amizade com Afonso de Albuquerque, que lhes enviou um mensageiro chamado Rui Nunes, procurando com isso o apoio dos gentios contra o inimigo comum: os muçulmanos. Pegu, reino budista, era um aliado precioso.
Em Agosto de 1512, Pêro Pais e Jorge Álvares rumam ao Pegu a bordo do junco São João. Estava assim iniciada uma prática corrente de compra de juncos para Malaca, que daria origem a uma rota de duas semanas com escala, para carregamento de pimenta, no porto de Pacém, ilha de Samatra. Passaram a ser construídas em Martavão, a partir de então, inúmeras dessas embarcações que seriam escoadas para Malaca, de maneira que esta pudesse responder de forma eficiente às intensas relações marítimas que mantinha com vários portos da Ásia e da Insulíndia. Por vezes, eram os malaqueiros que rumavam a Pegu em busca de juncos; outras, eram os pegus que se dirigiam para Malaca, onde os vendiam depois de saldado o trato.
Na sua Peregrinação, Fernão Mendes Pinto refere-nos as riquezas da Birmânia, chamariz para mercadores portugueses, que ali demandavam a partir de Malaca, em busca das afamadas madeiras, cereais, laca e pedras preciosas, como os rubis ou as safiras, entre tantos outros produtos, e visitavam no processo o arquipélago de Mergui, as cidades de Tavoy, Sirião, Cosmim, Akyab, tornando-se aliados do rei de Pegu. Chegaram acompanhados pelos respectivos capelões, e assim se foi instalando o cristianismo na região.
Estabelecido em Martavão, o feitor português Duarte Peçanha de Alenquer acabaria por bater em retirada, após escaramuças com a população local e os portugueses aí residentes. Eram as primeiras manifestações do poder dos lançados ou homiziados, que em toda aquela região comerciavam por conta própria e que desde sempre ofereceram resistência à tentativa monopolizadora do Estado da Índia. Fossem eles mercadores ou soldados, teriam um papel fundamental na formação política da Birmânia, nomeadamente na conquista de Pegu, em 1598, pelas forças aliadas birmanesas dos reinos de Tangu e de Arracão.

Em 1519, na sequência de um novo tratado de paz e comércio, assinado por António Correia, representante do rei português, e o soberano de Pegu, as trocas intensificar-se-iam ainda mais. De acordo com os relatos de Faria de Sousa, na sua Ásia Portuguesa, as relações comerciais entre Portugal e os reinos de Ava e Pegu expandiram-se de tal maneira que, por volta de 1556, se encontravam já «ao serviço do rei Bayinnaung mais de um milhar de soldados e marinheiros portugueses sob as ordens de António Ferreira de Braganza». Em alguns dos capítulos da Peregrinação, Mendes Pinto relata-nos vários episódios envolvendo estes mercenários e cita até o nome de muitos deles. Ele próprio exercia na altura a função de mercenário e, ao chegar ao porto de Cosmim, após uma atribulada travessia do país, deparou com uma pequena colónia de católicos, precisamente o resultado dos casamentos inter-raciais entretanto efectuados pelos soldados e mercadores portugueses ali estabelecidos.
Curiosamente, o primeiro religioso a pregar entre os birmaneses era um franciscano francês, Pierre Bonfer, capelão dos marinheiros e comerciantes lusos, de 1554 a 1557, em Sirião, à época, o principal porto da região. Escusado será dizer que as pioneiras tentativas de missionação caíram em saco roto.
Esse porto, na embocadura do rio Irrauadi, frente a Yangon, ficaria para sempre ligado ao nome de Portugal e dos portugueses, graças ao controverso desempenho de um aventureiro chamado Filipe de Brito, que, de 1600 a 1613, fez o que muito bem lhe apeteceu em Sirião e na vizinha zona costeira. Brito tinha absoluto poder sobre a região e seus habitantes, tendo sido sob a sua protecção e auspícios que os capelões jesuítas puderam dar início ao processo de “evangelização entre os gentios”, como se dizia então.
Filipe de Brito não foi o único, mas tratou-se seguramente do mais famoso dos lusos aventureiros que pululavam naquela e noutras regiões da Ásia.
Os descendentes desses soldados portugueses, que na época de seiscentos lutaram ao lado dos soberanos de Ava e do Pegu, ou que faziam parte do pequeno exército de Filipe de Brito, ou do seu companheiro de armas, Salvador Ribeiro de Sousa, senhores feudais em terras do Oriente, ambos empossados com o título de «rei do Pegu», são hoje conhecidos em Myanmar como bayingyis.

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

II Parte

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