Porque vemos tantos erros nas legendas?

Factores de percepção da qualidade – II Parte

Os tradutores não são responsáveis pelos títulos
Muitas vezes, as queixas relacionadas com a legendagem concentram-se na absurdidade da tradução de certos títulos. Não entrando na discussão da qualidade desses títulos, a verdade é que estes são escolhidos pelas produtoras e aprovados a nível governamental. O tradutor já recebe os títulos traduzidos. É isto importante ao analisar a percepção da qualidade da legendagem? Sim: muitos espectadores já estão de pé atrás no que toca à tradução porque não gostam do título. Assim, são muito mais severos na avaliação das legendas do que seriam de outra forma.

Desconhecemos os constrangimentos da tradução
Sim, tudo o que está acima, a começar pelo espaço e pelo tempo, é ignorado por quem avalia as legendagens — ou seja, todos nós. Não devia ser desculpa para erros graves, mas devia fazer parte da forma como analisamos a qualidade global das legendagens. Sim, cada tradutor deve ser exigente com o seu próprio trabalho — e todos nós devemos ser exigentes com a qualidade das nossas análises, que não devem ser feitas no vazio. Devemos ainda ter noção dos nossos próprios enviesamentos quando olhamos para o trabalho dos outros. Assim de repente, lembro-me dos seguintes…


O original está muito visível
Diz-se por vezes que as melhores traduções são as traduções que parecem textos originais. Talvez sim, talvez não. Mas uma coisa é certa: no caso das legendas, é impossível o espectador não reparar que está perante uma tradução.
No caso da tradução literária e da tradução empresarial, o original está escondido. Ou seja, o leitor pode ter acesso ao mesmo, mas só vai cotejar original e tradução se tiver algum interesse especial na tradução. Na realidade, é bem provável que mesmo os críticos literários que avaliam as traduções se esqueçam de consultar o original.
No caso da legendagem, o original não só está acessível como nos grita aos ouvidos. Nós, excelentes falantes da língua original, conseguimos descortinar de imediato todos os erros que o pobre tradutor não teve tempo nem saber para detectar, não é assim? Faríamos sempre um trabalho tão, mas tão melhor… Felizmente, somos muito exigentes com o trabalho de tradução. Dos outros.
Da mesma forma, os erros são também visíveis — e lidos por milhares e milhares de pessoas, o que não se pode dizer da grande maioria das traduções.

Temos pouca confiança nos tradutores
Por algum motivo, todos desconfiamos das traduções. Achamos sempre que faríamos um melhor trabalho. O tradutor pode ter investigado a fundo um determinado texto; não importa: nós sabemos sempre fazer bem melhor.
Por vezes, será verdade. Mas há aqui também uma certa psicologia de condutor: é sabido que 90% dos condutores se julga um condutor acima da média. Por isso, muitos só podem estar errados. Da mesma forma, todos — tradutores e não tradutores — nos julgamos tradutores acima da média (mesmo quem nunca traduziu!). Tenhamos em conta isto da próxima vez que sentirmos a tentação de desprezar uma tradução.


Somos vítimas de certos “mitos linguísticos”
Pior do que uma má tradução, é uma crítica mal fundamentada. Por exemplo, muitas pessoas estão convencidas que a frase “Porque disseste tal coisa?” está errada e o “porque” devia ser “por que”. Na realidade, as convenções ortográficas impõem o “por que” em frases como “Por que razão foste lá?” e o “porque” em frases como “Porque foste lá?”. O Ciberdúvidas explica esta confusão, que de qualquer forma não nos devia tomar muito tempo não fosse dar-se o caso de haver pessoas que apontam o dedo a legendas sem perceber que o erro está no dedo que aponta e não na legenda que é apontada. Este é um mero exemplo. Haverá por aí muitos outros “erros falsos”.

Estamos sujeitos ao “erro da confirmação”
Este é o erro de pensamento mais comum, responsável por imensos preconceitos, ideias erradas e tudo o mais. Como os psicólogos provaram há décadas, somos todos muito bons a chegar a conclusões antes de termos dados suficientes e a procurar tudo o que confirma essas pré-conclusões, ignorando inconscientemente tudo o que contradiga aquilo que pensamos. Se alguém está convencido que as legendas são muito más, irá encontrar imensos erros e irá ignorar olimpicamente todos os episódios e filmes em que não encontra erros graves (ou então inventa erros onde eles não estão). Não serve como desculpa para os maus tradutores (que aplicam um erro de confirmação contrário aos seus trabalhos, ignorando olimpicamente os erros), mas serve como incentivo a pensarmos melhor e a analisarmos esta questão com um pouco mais de objectividade.

Temos expectativas irrealistas
Muitos de nós, ao olhar para o trabalho dos outros, funcionamos em modo “8 ou 80″: está tudo bem até aparecer o primeiro erro, em que passa a estar tudo péssimo. Se o nosso critério for sempre a ausência absoluta de erros, estamos a pedir aos tradutores uma tarefa sobre-humana. A linguagem, principalmente quando estamos a falar de duas línguas, está muito longe da engenharia ou da ciência: é uma actividade complexíssima, demasiado humana, cheia de ratoeiras, sem critérios em que possamos todos concordar, em que todos temos tendências inatas para a desconfiança e para a crítica, para a exposição dos nossos egos e desprezos disfarçados de crítica objectiva, um mundo de ideias falsas ou verdadeiras por metade — e por tudo isto o erro nunca desaparecerá. O que podemos fazer é melhorar, pacientemente, todos os dias. Estou em crer que a maior parte dos tradutores audiovisuais fazem isto, sem reconhecimento.

“Quer dizer que devíamos perdoar os tradutores e ignorar os erros?”
Não se trata de perdoar, mas sim de analisar com todos os dados em cima da mesa. Parece haver uma crença generalizada na má qualidade das legendas, em contraste, talvez, com traduções doutras áreas. Ora, se não considerarmos tudo o que escrevi acima (e tudo o resto de que me esqueci), não podemos ter uma visão realista da questão e arriscamo-nos a impor emendas que são piores do que o famoso soneto.
As legendas são, provavelmente, o tipo de texto mais lido pelos portugueses. Estamos expostos à tradução de filmes e séries todos os dias. Assim, é normal que nos preocupemos com a qualidade destas traduções. Mas atacar de forma cega os tradutores sempre que vemos aquilo que achamos ser um erro é a melhor forma de deixar tudo como está. Mais vale perceber onde estão os problemas, onde estão as fragilidades do processo de tradução e legendagem e tentar resolver esses problemas sem estar constantemente a usar os erros de legendagem como forma muito divertida de apontar o dedo a todos os profissionais desta área.
Podemos, por exemplo, ser mais exigentes com os distribuidores, com as estações de televisão, exigindo melhores condições para os tradutores. Não será fácil. Podemos ainda pensar em formas inteligentes de corrigir alguns problemas acima descritos. Por exemplo, a revisão pode ser introduzida no processo se dividirmos sempre entre duas pessoas o processo de tradução e o processo de legendagem. Tal divisão terá várias desvantagens: quem trabalha no ramo sabe que cada tradutor tem “manias” que poderão confundir o legendador e, por isso, é mais fácil ser ele próprio a inserir as legendas. Terá, no entanto, esta vantagem que não é de deitar fora: haverá sempre duas pessoas a olhar para as legendas. Fica a ideia.
Em conclusão. Sim, há maus profissionais na legendagem, como os há em todas as profissões. Mas também há excelentes profissionais, que trabalham horas a fio para nos permitir ver filmes e séries na nossa língua, contribuindo para a literacia dos portugueses — e contribuindo também, de forma indirecta, para o conhecimento de línguas estrangeiras. Estão sujeitos à espada de Dâmocles dum qualquer erro grave, que conspurque para todo o sempre a sua reputação, ao contrário dos erros graves de outros tradutores e profissionais, que ficam escondidos nas discussões entre tradutor e cliente.
Assim, para terminar, gostava de deixar o meu muito obrigado aos tradutores audiovisuais. Merecem a nossa gratidão — muito mais do que se diz por aí.

Um agradecimento à Luísa Ferreira, uma excelente tradutora-legendadora, que, em conversa informal comigo e com os meus alunos de Prática da Tradução, me deu algumas boas ideias para este texto. As más ideias do texto são, claro, da minha inteira responsabilidade.

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

Parte I

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