As regras de português nascem nos livros?

Estas peças fundamentais da língua sofrem um grande desbaste sonoro – mudam muito! Mas, no seu uso gramatical, mantêm aspectos já perdidos noutras classes de palavras. Por exemplo, se no latim cada nome mudava de acordo com o caso, ou seja, com a função sintáctica (a velhinha «rosa, rosae», etc.), em português mudam apenas entre o singular e o plural e o masculino e feminino (e ainda no grau, mas já só em situações muito particulares, como veremos). No entanto, os pronomes, que são uma classe fechada fundamental para o funcionamento da língua, embora sejam hoje muito diferentes dos pronomes latinos e, aliás, dos pronomes das outras línguas latinas (a sua forma sofreu um grande desbaste ao longo dos séculos), mantêm ainda os tais casos que perdemos no resto da gramática. O pronome da primeira pessoa tem o caso nominal («eu»), acusativo («me»), dativo («mim»).
A nossa gramática é mais sintética nos pronomes e mais analítica nos nomes… Nestes últimos, o português perdeu os casos, mas não a marca do plural ou do género. Podia não ser assim. No cabo-verdiano, esta tendência para a análise deu mais um passo: o número é indicado apenas no artigo e não no nome. Já o japonês indica o plural através de outras palavras, e não no próprio nome.
Quanto ao género, há línguas onde este não existe ou existe apenas como vestígio, um pouco à semelhança dos casos, que ainda sobrevivem, mas apenas nos pronomes (como exemplo de língua onde o género resiste apenas nalguns casos particulares temos o inglês). Se repararmos nos adjectivos, vemos esta variedade entre análise e síntese na diferença entre a forma analítica e sintética de cada adjectivo no grau aumentativo: «muito forte» / «fortíssimo»
Entre a forma e a ordem das palavras que usamos, temos, assim sendo, uma série de regras – agora, a palavra «regra» pode ser enganadora. Aliás, é tão enganadora que muitas das discussões sobre a língua e sobre o que é erro e não é radicam numa incompreensão do que significa «regra de português».
A ideia que perpassa em muitos debates é a de que as regras de português nascem dos livros, pensadas e repensadas por quem percebe disto… Os falantes limitam-se a tentar reproduzi-las o melhor possível – mas, quase sempre, falham. Esta ideia nem sempre aparece assim, preto no branco, mas é o que se percebe de muitas declarações bombásticas sobre a língua.
O mito do nascimento livresco das regras está relacionado com outra ideia muito em voga: a de que a gramática decorre directa e obviamente da lógica… Sim, é verdade: a gramática permite expressar um pensamento mais ou menos lógico – e conhecê-la, da maneira como de facto funciona, ajuda a sermos claros e lógicos quando queremos ser claros e lógicos. Mas a gramática não nasce da lógica – e nem sequer é muito lógica, no sentido de eficiente. É um mecanismo complexo, muito mais complexo do que estritamente necessário, uma máquina que foi sendo construída através da junção de mais peças, da avaria de outras, sendo que ninguém sabe muito bem como tudo funciona lá por dentro. Se a gramática das línguas decorresse da lógica, tenderia a ser igual em todas as línguas. Ora, isso não acontece. Se somarmos a isto o facto conhecido de que não há línguas mais lógicas do que outras, percebemos que a gramática permite expressar o pensamento lógico, mas não funciona de forma estritamente lógica.
O certo é que funciona… E se uma peça cai, logo outra (ou outras) aparece – por exemplo, o sistema de casos do latim caiu, mas os falantes, porque precisavam ou lhes apeteceu, juntaram preposições e outras peças. No caso dos pronomes, as peças ficaram agarradas, como restos do que estava ali e já não está – a gramática é qualquer coisa de extraordinário, uma floresta feita de árvores antigas, outras mais recentes, tudo bem misturado e intrincado, de uma beleza brava que não se dá muito bem com jardinagens.
O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico