A Praça-Forte Portuguesa de Ormuz

Uma fortaleza estratégica

Apesar de geograficamente próxima dos acessíveis Estados árabes do Golfo Pérsico, não era nada fácil chegar à ilha de Ormuz, antiga praça-forte portuguesa. Comecei por ser obrigado a voar do Bharein para o Kuwait, e, em trânsito, apanhar um avião da Iran Air para Shiraz, um dos aeroportos internacionais do Irão. A partir daí foi uma longa viagem por terra, de autocarro, até Bandar Abbas, cidade costeira frente a Ormuz, à qual os portugueses do século XVI chamavam Comorão. É claro que teria sido tudo muito mais simples se pudesse ter voado directamente para o aeroporto regional de Bandar Abbas (não faltavam ligações directas), mas para isso precisaria de ter obtido um visto de turista, através de uma agência, com itinerário pré-definido, voos de partida e chegada e hotéis reservados com alguma antecedência. Enfim, tarefa que não se coadunava com o espírito e calendário do meu périplo. 


A MEMÓRIA DE ALBUQUERQUE
O que importava é que estava na terra dos aiatolás beneficiando de um privilégio concedido apenas a alguns países ocidentais, onde se incluía Portugal, e que era: visto de duas semanas à chegada a um qualquer aeroporto internacional iraniano. Pouca gente sabia disso, e eu só o soubera porque um atencioso funcionário da embaixada iraniana em Lisboa tivera a amabilidade de me fornecer tão precioso informe.

Bastaram algumas horas para me deixar cativar pela simpatia e hospitalidade dos iranianos, que conheço desde os funestos anos de guerra com os vizinhos iraquianos. O povo, os filmes de Abbas Kirostami, as cidades históricas da Pérsia antiga e a excelência do pistácio (sempre me perguntei por que razão só se viam no mercado pistácios californianos quando os iranianos eram bem melhores e mais baratos), eis alguns motivos para voltar a visitar o Irão, agora com mais disponibilidade e tempo. Embora soubesse que os catorze dias, face a tão imensa geografia, ir-se-iam num instante.
A travessia de barco até Ormuz levou apenas vinte minutos, num mar povoado de golfinhos e infestado de tubarões. Avistavam-se ao longe embarcações sulcando as águas intensamente azuis rumo à península de Mussandão, essa parte do Omã que o emirado de Fujairah separa do resto do sultanato. Se nos abstivermos do factor clima, podemos considerar Mussandão uma espécie de Noruega do Próximo Oriente. Os seus fiordes rivalizam em beleza e grandiosidade com os do país escandinavo. Por Khasab, importante porto da península, (onde existe um forte português), transitavam produtos contrabandeados, entre os quais o tabaco, e certamente outros mais ilícitos (logo, mais proveitosos), apesar do rigor das leis árabes e persas.

Impressiona o mais bem preparado dos viajantes, a esterilidade da pequena ilha de Ormuz, onde nada cresce e praticamente tudo o que se consome e utiliza vem de fora. De cor avermelhada, o designado “castelo português” preservava ainda alguns dos seus canhões. Uma tabuleta estrategicamente posicionada informava-nos que fora mandado erguer pelo “português Albo Kurk”. Mas que forma original de apelidar o Terribel das barbas compridas e olhar feroz!
Saltava à vista a degradação da estrutura militar, ‘atenuada’ por um anunciado projecto de restauro suportado pela Fundação Calouste Gulbenkian. O jornal Tehran Times noticiara que um acordo fora assinado nesse sentido entre Portugal e o Irão, lembrando que também a fortaleza da ilha de Qeshm – ali próxima – poderia beneficiar de tão nobre iniciativa. 

Considerado o mais importante porto da região, Ormuz passou a integrar a lista das prioridades de Albuquerque, que em 1507 dele se apoderou, tendo mandado erguer fortaleza. Garantido ficou o acesso ao Golfo Pérsico, por onde escoava parte considerável dos géneros exóticos que, em caravanas, via Bassorá ou Alepo, entravam no Mediterrâneo e, daí, demandavam a Europa.
Transaccionavam-se em Ormuz os melhores cavalos da Arábia e da Pérsia, com destino ao Oriente, sobretudo Cambaia e Goa, na Índia

A CONSTRUÇÃO DA FORTALEZA
Ao contrário do que aconteceu em Baçaim, na Índia, os trabalhos de construção da fortaleza foram rápidos e implicaram o destacamento de navios para o transporte exclusivo da pedra, gesso e cal – materiais que solidificaram a sua estrutura. Com a mão na massa, dando o exemplo, estava o próprio Albuquerque, mas quem desenhou os planos foi o mestre-de-obras Tomás Fernandes, que ali deixou bem expresso o seu engenho e arte. Em apenas três meses a infra-estrutura do forte estava concluída. Sabemos de tudo isto porque Gaspar Correia, um dos cronistas presenciais dos feitos da Expansão, estava em Ormuz nessa altura. 

No recinto amuralhado foram erguidas várias igrejas (restam vestígios da igreja do convento da Nossa Senhora da Graça) e algumas preciosidades manuelinas – uma torre de menagem, ao estilo da torre de Belém, e uma cisterna, semelhante à de Mazagão. Torres de menagem e cisternas são, aliás, denominadores comuns em muitas das fortalezas erguidas pelos portugueses, como é o caso das de Mogador (actual Essaouira) e de Arzila, em Marrocos.

Albuquerque, “o mais consistente e determinado dos primeiros Governadores da Índia” – rezam os livros de História, era homem de grande visão estratégica. Obreiro da nossa consolidação no Oriente, foi também – apesar de todas as vicissitudes, mormente desentendimentos com os seus capitães, e as crueldades cometidas, ontem, como hoje, fruta da época – pioneiro no diálogo de culturas entre o Ocidente e o Oriente. Admirado por muitos e odiado por outros tantos, morreu, como o próprio dizia, “mal com os Homens por amor de El-Rei, e mal com El-Rei por amor dos Homens”. 

Albuquerque, misto de diplomata e guerreiro, apesar da sua mão-de-ferro, era muito considerado pelos autóctones e respeitado pelos seus inimigos, não podendo, portanto, ser comparado a um Pizarro ou a um Cortez. Havia nele uma preocupação humanista bem expressa quando ofereceu, em Goa, refúgio político a Meale Cão, príncipe de Bijapur, e à respectiva família. Esta preocupação humanista, faz parte desse «desígnio nacional» no qual acreditaram tantos dos vultos da nossa história, sendo Fernando Pessoa apenas um dos exemplos.
“A Portugal cabe a missão humanista de perpetuar o encontro de culturas, de concórdia e apaziguamento”, dissera-me meses antes, numa entrevista, Augusto Ataíde, descendente directo de Afonso de Albuquerque. Afirmava ainda que “diferentes povos do mundo beneficiaram com a acção dos portugueses que os puseram em contacto com realidade diversa, ocidentalizando-os sem que, no entanto, eles perdessem as suas identidades, que, como se pode constatar, ainda hoje continuam marcantes”.


As obras foram uma constante no historial de Ormuz, pois havia que modernizar e aperfeiçoar tão cobiçada praça-forte. Para a melhor proteger, construíram-se pequenas fortalezas nas ilhas vizinhas, verdadeiras atalaias que proporcionavam ao grosso da população tempo de resposta em caso de um ataque surpresa. Eram, por assim dizer, a primeira linha de defesa. Nos textos e mapas coevos surgem com os nomes Queixame, Lareca e Bandel de Comorão. Para além disso, havia ainda a feitoria fortificada de Bandar E-Kong, que resistiria até ao século XVIII.

Mas a insistência do inimigo era tal, que Ormuz acabaria por sobraçar, em 1622, face a uma força persa coadjuvada por ingleses – os nossos «aliados» ingleses! – que providenciaram seis naus, factor decisivo para a ocupação da cidade.
Existem duas representações de como era a cidade de Ormuz de Setecentos: a de Manuel Godinho de Erédia e a de Manuel Bocarro, sendo a primeira aceite como a mais correcta.
Hoje, como outrora, o canal de Ormuz constitui um ponto estratégico vital numa parte do mundo sempre presente na agenda internacional. Se o bloqueassem, cessaria o fornecimento de metade dos barris de crude que o mundo consome. Imagine-se o que isso representaria para a economia à escala planetária.
Os petroleiros que agora saem do Iraque, do Kuwait, do Qatar e quejandos com os tanques cheios vieram substituir as naus portuguesas que patrulhavam as águas do Golfo, certificando-se que as especiarias destinadas à Europa passavam obrigatoriamente pelo Cabo da Boa Esperança.

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

Acompanhe-me nesta magnífica viagem

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