A propósito de urtigas
usanças, préstimos e crendices
Parte II

O povo do fantasmagórico monstro de Loch Ness
da primazia dos whisky’s single malt e daquela doidice absurda — o insensato empalho animalesco da «cerveja mais forte do mundo», elaborada numa cervejaria artesanal do porto de Fraserburgh a partir de uma cerveja belga e arrematada com um preparado de urtigas das Terras Altas escocesas e bagas de zimbro de algures — desde a época medieval que utiliza as folhas de urtigas jovens na sua culinária, em saladas à mistura com outras erveiras, fritadas de ovos batidos, sopas a que lhe juntam alho francês, brócolos e arroz, ou simplesmente cozidas para emparelhar alguns assados de borrego. Foram, ainda, por este povo de expressivas influências celtas, muito aproveitadas como ervas forrageiras para o gado bovino e ovino. E as fibras extraídas dos seus caules mais envelhecidos, como acontecia com as fibras de linho, eram arranjadas regularmente para o fabrico de roupas, principalmente das farpelas de marinheiros e pescadores, cordas e redes de pesca. Escreveu a este propósito tecedeiro, no início do séc. XIX, o poeta sentimentalista escocês Thomas Campbell:
“Na Escócia, comi urtigas, dormi em lençóis de urtigas, e jantei sobre uma toalha de urtigas. Quando ainda é nova e tenra, a urtiga é um legume excelente… e lembro-me que a minha mãe dizia que, na sua opinião, os fatos de urtiga eram bastante mais resistentes do que os de linho”.
Da terra dos anglos relembro-as no romance histórico Stonehenge de Bernard Cornwell, na matéria-prima que serviu para fazer as rédeas do cavalo do forasteiro [“A sela era um cobertor de lã dobrado e as rédeas eram cordas de fibra de urtiga trançadas…”] ou no surpreendente desafio de Camaban [“E, se algum o disputar, que venha lutar agora comigo; pico-lhe os olhos com urtigas…”]. E não esqueço o fabulado dos caldos de urtigas dos camponeses de Notthingham e do desenrasque nutritivo dos guerreiros samaritanos de Robin Hood ou a coroa macabra de “cicuta, agrião-bravo e urtiga” com que William Shakespeare resolveu enfeitar a cabeça enlouquecida do rei Lear. Assinalo as famosas derrabadas urticantes de Miss Theresa Berkley, a rainha do flagelo e do gozado vício inglês, no tão frequentado bordel londrino do séc. XIX, a providência necessária dos ilhéus britânicos durante a segunda guerra mundial para manter os níveis de vitaminas, além daquela bizarria apalermada do «campeonato mundial de comedores de urtigas» que decorre na localidade de Marshwood, perto de Bridport, onde dois lampantins já conseguiram embuchar, cada um deles, o equivalente a mais de vinte metros de folhas de urtigas cruas! (…) No Éire, terra também de ascendentes celtas, e até há bem pouco tempo, todos os anos, um grupo lafrauzado de rapazolas corria pelas ruas empunhando manhuços de urtigas, batendo impunemente com eles em toda a gentalha distraída que encontrassem pelo caminho, um pouco à moda (?) do que ainda acontece na joldra popular da noite do S. João portuense com as estopadas de alhos-porros e as cheiradas aos ramos de limonetes. Noutros tempos, durante o período negro da «Grande Fome de 1845-1849» e da «peste da batata», estes crendeiros vegetais chegaram mesmo a suprir as carências alimentares mais básicas dos pobres irlandeses-rurais e citadinos. Já no norte de França – Pays-de-la-Loire e Bourgogne – por aquela época, principalmente nos meios rurais, eram mais utilizadas na conservação das carnes, de qualquer tipo de carne, pelas suas propriedades anti-sépticas, do que nos usos mais vulgarizados. Pierre-Joseph Buc’hoz, naturalista francês do séc. XVIII/XIX e um dos seus estudiosos, relata-nos isso mesmo. Até na feitura das antigas notas bancárias francesas (!) Nos dias de hoje, pelo menos assim o creio, é o povo gaulês quem mais celebra as virtuosidades das urtigas e plantas afins, quer em festivais temáticos, quer em publicações editadas.

Victor Hugo, in «Les Misérables (V)», 1862, deixou-nos esta elucidativa descrição: […] Um dia, viu os habitantes de um lugar muito ocupados a arrancar urtigas; olhou, então, os caules das plantas arrancadas e já secos disse: – Já morreram. E isso seria tão útil se soubessem como fazer. Quando a urtiga é nova, a folha é um excelente legume; quando envelhece, tem filamentos e fibras como o cânhamo e o linho. Um tecido de urtiga vale tanto quanto um tecido de cânhamo. Picada, a urtiga é boa para as aves domésticas; moída, é boa para o gado vacum. A semente da urtiga, misturada à forragem dos animais, torna-lhe o pêlo brilhante; a raiz, misturada com sal, produz uma bela cor amarela. Além disso, é excelente feno que se pode segar duas vezes ao ano. E que cuidados requer a urtiga? Um pouco de terra e nada mais. O único ponto dificil de se resolver é que a semente cai à medida que amadurece, o que torna dificil colhê-la. Aí está. Com um pouquinho de trabalho, ela tornar-se-ia mais útil; desprezam-na, e ela torna-se nociva. Então, destroem-na. Quantos homens se assemelham à urtiga! – E acrescentou, depois de uma pausa: – Meus amigos, guardem bem isto; não existem homens maus ou ervas más. O que há é maus cultivadores. […] A este escritor e poeta é-lhe também atribuída a seguinte frase, própria da escola romântica francesa da época: “A vida é um campo de urtigas onde a única rosa é o amor”.
Ainda nos domínios da língua francófona, continua a fazer parte da tradição gastronómica uma sopa de urtigas com miolo de pão esfarelado, leite gordo de vaca, banha de porco para a fritura dos sanocos de pão e água da cozedura das carnes. Modesto e discreto, mas bem apetitoso aquele calducho meio ensebado! E bem perto de Arlon, em algumas casas de produtos tradicionais, ainda é possível adquirir cervejas e licores artesanais à base de urtigas. Propostas modernizadas de aganarem qualquer esmaleitado lazarento! Também na Valónia, mais propriamente na comuna de Juprelle, a norte de Liège, acrescento que nasceu e alberga-se a primeira irmandade dedicada a esta prestável, sensual, cruel, pragmática e caridosa planta – a Confraria da Urtiga. Não muito longe, em Frasnes-lez-Gosselies, entre Charleroi e Bruxelas, realiza-se anualmente a bem sucedida «Festa da Urtiga». Também, por cá, em terras beirãs, Fornos de Algodres, a 24 de Maio de 2009, nasceu a Confraria Gastronómica da Urtiga, apadrinhada pela Confraria dos Enófilos e Gastrónomos de Trás-os-Montes e Alto Douro, e a entronização dos seus primeiros treze confrades em traje de inspiração monástica, utilizando lã tingida com urtigas, que pretendem devolver à Urtica spp. a importância de que será merecedora na gastronomia nacional. (…) Na Alemanha do séc. XII, o visionário, escritor de textos botânicos e medicinais, Saint-Hildegard von Bingen, já prescrevia o uso de sementes de urtigas para os males de barriga. E, nos períodos de fome do tempo da guerra, nas regiões da denominada Baviera Antiga, Estíria e Tirol austríaco, uma das refeições habitual na época primaveril era à base de uma espécie de almôndegas e carolas de pão com urtigas cozidas. Porém, numa viagem de Salzburgo para Hamburgo, perto de Rosenhein, fui desafiado para um simulacro de peixinhos da horta de picado de urtigas em massa confeccionada com cerveja que diziam ter que ser muito aromática e bem forte – tipo hofbräu maibock – confortados pelo popular vinho Trollinger com aquele toque a amêndoa amarga que tanto me encanta. Enfim, grotescos, recreativos, e bem generosos aqueles palitados saloios. Afortunadamente… parece que os germanos ainda não se decidiram a abandonar as qualidades têxteis das fibras urtigueiras! Na Hungria danubiana, planície da Panônia, em Dunaújváros, escutei ao sabor de um gracioso tinto de Villány-Siklós e ao som de um divino goulash que, na véspera de Pentecostes, era costume dos aldeãos magiares sovar as vacas parideiras com uma manhuçada de urtigas velhas, não para as excitar mas para defendê-las da malvadez dos bruxedos malignos e ares de malagoiro. [Também a já emblemática “noite das bruxas”, tradição das sextas-feiras treze, em Montalegre, começa sempre com uma ceia – a «ceia das bruxas» – em que é servido um caldo de urtigas, entre outros pratos, para ajudar a escorraçá-las.]

Também na Rússia, europeia e asiática, se empregava a urtiga em múltiplas utilizações: na Sibéria, o principal destino era o fabrico de papel e a extracção de óleo e, na parte europeio-caucasiana, a sua sorte consagrava-se principalmente na confecção do histórico e popular chtchi. Entre outros escritores russos, Léon Tolstoi refere-o em Guerra e Paz, Anna Karennine, Crónicas de Sebastopol… e Fiódor Dostoïévski em Memórias da Casa dos Mortos… Pelos vistos, o chtchi de repolho azedo e carne mantém-se como um prato correntio no seio daqueles povos eslavos. Ali ao lado, na Ucrânia Karpaty, numa breve passagem por Uzhhorod, na fronteira com a Eslováquia e de trânsito para a cidade polaca de Rzeszów, dizia-nos a tagarela da nossa guia que estas deslaradas erveiras já serviram não para comer, nem para vergastar ou medicar quem quer que fosse, mas para averdongar os ovos açucarados da época pascal. Estranho! Invulgar! Mas bem possível pelas suas qualidades tintureiras.
Na crença dos primitivos povos escandinavos
as urtigas eram dedicadas essencialmente ao deus das forças da natureza — o deus Thor — e utilizadas, com alguma frequência, na indústria farrapeira. Esse interesse tecedeiro, também presente na Dinamarca peninsular, só se extinguiu no decorrer do séc. XIX durante a revolução industrial. O escritor dinamarquês de histórias infantis, Hans Christian Andersen, testemunha dessa prática, refere num dos seus contos de The wild swans que os mantos redentores do feitiço da malvada madrasta dos irmãos da princesa Elisa eram feitos de fibras de plantas urtigueiras [“Para libertares os teus irmãos do malefício de que são vítimas inocentes, tens que colher todas as urtigas que puderes, esmagá-las com os teus pés até que se desprendam fibras, com as quais deverás tecer onze túnicas…”]. Por sua vez, os seus vizinhos finlandeses, talvez pelas confusões crepusculares a que estão sujeitos, só se revêm nestas acatadas plantas através deste conhecido ditado popular: “o amor é um jardim florido e o casamento um campo de urtigas”. Aqui ao nosso lado, leoneses e castelhanos fazem por lhe reconhecer o papel de estrela da fitoterapia e denominam-na de “hierba de los ciegos”, porque entendem que é conhecida mesmo por quem a não veja. Em Ponferrada, por exemplo, além de já ter degustado uns revueltos urtigados, suficientemente enfadonhos, falaram-me de um pequeno restaurante rural que há muito faz um molho de mostarda com umas boas pitadas de brotos de urtigas para acompanhar carnes grelhadas… que dizem ser de um travo bem assanhado. Da Galiza memorizei: uma inesquecível passagem pelo «Festival Internacional de Música Celta» de Santa Marta de Ortigueira, terra já conhecida por Ortigaria ou Orticaria no séc. X; a tradição de um licor de urtigas lugués que tive a pouca sorte de provar num bar apinhado de estudantes na zona histórica de Santiago de Compostela; o recitado de umha pequena aportaçao poética do «Romance del Emplazado», Cancionero Gitano, Federico Garcia Lorca [“…Ya puedes cortar si quieres/Las adelfas de tu pátio/Porque cicutas y ortigas/Crecerán en tu costado”] pelo Afonso Ribas; a alusão à lenda da bela moura Zaira que Dom Ramiro II, Rei de Leão e da Galiza, tomou como esposa e baptizou de Ortega … e o arrojo do ourensano Pepe Posada na comercialização de ortigas, urtigas ou estrugas, al natural. Do Principado das Astúrias registo a curiosidade de ter assistido, pela primeira vez, à preparação de um insecticida biológico à base de urtigas [“um quilograma de folhas de urtigas maceradas em meio litro de água”] que uma conversável taberneira de uma pequena localidade a caminho do Parque Natural de Redes haveria de utilizar para combater a piolhagem do jardim e da pequena horta que acercavam a sua casa de pasto, além de lhe escutar este exemplar provérbio [“A terra que da á ortiga é pra mia filla/a que nún la cria è prá mia vecía”]. Relembro, também, a merenda ajantarada que nos proporcionaram em Cudillero com uns inesperados e extravagantes caracoles en salsa de ortigas, depois daquelas celestiais ostras al hinojo, os aguardados bigaritos cocidos e as abonadas zamburiñas a la plancha, tudo empurrado por umas consideráveis canecadas de sidra natural de Nava.
Nas regiões andinas de falas castelhanas
(e em muitos povos tribais da América do Sul), a diabrice destas ervas era mais aproveitada como chicote punidor de mulheres riceiras pouco dadas à fidelidade matrimonial que na necessidade do sustento quotidiano; enquanto a vizinha escravatura luso-brasileira dessa época — a época dos engenhos sacarinos dos séculos XVII/XIX — só via nos castigos tipo chinês os (de) méritos desta regalada mas desprezada e condenada planta. Até os longínquos aborígenes da Terra Australis descobriram a benevolência das urtigas, utilizando-as frescas num unguento para friccionar os entorses e, com as folhas fervidas, em cataplasmas para uma série de ferimentos exteriores. E os chineses fizeram de uma sua meia-irmã, o ramie [Boehmeria nívea (L.) Hook. e Am.] ou “erva da China”, que não é urticante, uma referência universal – têxtil, trapeira, papeleira e forrageira (…) Para os povos do Indus, a urtiga tornou-se o símbolo de Vasuki — uma gigantesca e maquiavélica serpente que derramou veneno sobre a pobre planta — conferindo-lhe a capacidade de infligir dor. Todavia, na Índia actual, continua a ser uma espécie medicinal muito popular e de boa casa, onde as suas decocções têm serventia no tratamento de problemas renais, estados febris e arrepios, menstruações abundantes e estancamento de múltiplas hemorragias. É, assim o aconselham os disciplinados iogues indianos, imprescindível como condimento culinário e em chás das dietas aiurvédicas, para indivíduos de constituição kapha.
No universo do esoterismo e da astrologia…
a urtiga é considerada o símbolo da luxúria! Quem diria? Pelos vistos, estas rapeiras colhidas quando a Lua está em Escorpião têm a virtude de conceder valentia, audácia e riqueza. E o que pode significar sonhar com urtigas? Para a mulher: ciúmes exagerados e maus momentos na vida conjugal; no caso do homem: cuidado com os falsos amigos e a crença na sua sorte.
O apetecido elogio à urtiga, por agora, espreita-lhe velhas sinas, novos talentos e renovados preceitos…
O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico