A propósito de urtigas
usanças, préstimos e crendices
Parte I

E por cá? O que fez o nosso povo destas ervas acirradas e tão boas zavaneiras?
«(…) No tempo da guerra, muita sapeira devem ter aliviado!»
No Vale do Douro Superior, alguns registos de boca a boca atestavam para o consumo regular dos seus rebentos depois de lavados e escaldados: quer num milagroso esparregado, porque tido como anti-anémico pelos mais ressabidos, sempre engrossado com um bom cibo de farinha aleitada ou num atiço salteado em azeite e alho para safanar almas debilitadas e corpos mais releixados, quer num aconchegante caldo de primavera que a ricalhada achincalhava de malgueiro dos vileiros pobres, temperado de renovos de chupa-mel, folhas tenras de diabelha e ramilhos de outras erveiras que houvesse, avultado se possível de uma boa nabada ou de umas maranhonas bem esmagadas… para enxotar o incómodo das gripes primaveris e o desconsolo dos suores nocturnos. Na minha terra, certamente como em tantas outras, também foram muito prestadas, embora de forma pouco ou nada aconselhável, contudo algo inesquecível, à fustigação dos rabinhos da miudalha como modo de evitar que esta se descuidasse na cama. E aquelas vergastadas de ramos de urtigas velhas que sempre escutei serem remédio santo para aliviar as dores reumáticas dos mais idosos?… e assanhar o ranhiço de tantas sonsinhas? E os tampões de algodão, embebidos numa infusão de qualquer tipo de folhas, que as mezinheiras enfiavam nas narinas assangradas da garotada? Ou aquela fervura apressada de um picado de raízes, em vinagre de vinho branco, para esfregar a catrunha dos mais casparrentos, a seguir chapuçada de borras de azeite! E as bochechadas matinais de chá amornado dos primeiros renovos para afugentarem o mau hálito dos mais rabosanos? Dizia-se, também, que uma cházada das folhas mais crescidas dos galhos cimeiros, adoçada com mel dos arçanhos, era o melhor curativo para a maleita dos espirros do feno e uma boa ajuda para a criançada com sangue pobre e mães que amamentassem garotos odreiros. Outras mulheres de virtude também asseguravam que um pequeno ramo dos brotos em flor, colocado debaixo da cama, fazia com que um entravado recuperasse mais depressa (…)
Ainda hoje, a maioria das nossas camponesas sabe que para uma rápida engorda de perus nada melhor do que fartá-los com umas fareladas de urtigas esfarrapadas… ainda hoje acreditam que “urtigas no galinheiro, ovos no cesto!” Caso para se pensar quais as verdadeiras intenções de quem nos manda “ir às urtigas”!
Súmula histórica
Os antigos egípcios e os nossos antepassados celtas…
pelos vistos, já extraíam o óleo das suas sementes para o misturar em comeres tidos como fortificantes. Consta-se que os monges medievais, pelo menos os mais desvairados com as tentações terrenhas, abusavam delas no pagamento de muitas penitências. Dizem-me que alguns alquimistas do tempo do astrólogo Paracelso e do heliocentrista Copérnico as julgavam excelentes antídotos para certos envenenamentos. Sabe-se que o boticário John Parkisson aconselhava os seus pacientes reumáticos a esfregarem as partes afectadas com uma boa manhuçada dos rebentos mais jovens… Já no século XX, o filósofo esoterista, pedagogo da autoeducação, artista da euritmia, Rudolf Steiner — o fundador da agricultura biodinâmica e da medicina antroposófica — ter-lhe-á chamado “corações do mundo” (…) Na infernal guerra das trincheiras, os azarados soldados da Tríplice Entente usaram-nas muitas vezes para pintalgar de verde herbáceo as camuflagens do disfarce e do encobrimento; o reputado nutricionista Lelord Kordell, conselheiro dietista da exótica Raquel Welch e Eva Gabor — aquela loira destravada da delirante série televisiva «Viver no campo» — disse que “a picada de urtiga não é nada comparada com a cura”; Pierre Lieutaghi, etnobotânico francês, autor do notável e enciclopédico Livre des Bonnes Herbes, acha que “as urtigas perseguem literalmente o homem por todo o lado, sem nunca lhe perderem o rasto”…; Ary dos Santos, poeta livre de tantas desfolhadas e declamador das ruas da saudade lisboeta, escreveu, assim, naquele belíssimo texto litúrgico da contra-capa do vinil Cantigas de Amigo:
«(…) Era uma vez um livro muito bonito, que cheirava muito bem. Umas vezes a flores, outras vezes a urtigas. Mas a urtigas sadias. Tinha sido feito pela Natália Correia que o desenterrara de alfarrábios muito, muito velhos, com mãos de chama e de poeta (…)».
E os curandeiros, bruxos, mezinheiros, alveitares, transmontanos e não só, ainda recomendam lançar ramadas de urtigas secas ao fogo para afastar o tranglomango, maus-olhados e espíritos malignos; ainda sugerem o esfregaço de urtigas frescas como anestésico local; ainda aconselham uma maceração de folhas de hortelã para serenar as urtigadas mais ríspidas… Até, num dos primeiros Congressos de Medicina Popular-Vilar de Perdizes, uma fantasmagórica e empolgada mexorofeira me tentou inculcar os benefícios de uma chazada de brotos urtigueiros (sei lá porquê) para a prevenção da doença dos facanitos – os diabetes. Até um jovem enólogo bordelais, a trabalhar vinhos na região da Dordonha, quase me convenceu que o seu Sauvignon Blanc tinha um “bouquet de frutas brancas verdes, leves notas florais, sofisticados toques herbáceos e uma ponta final a saber a rebentos de urtigas” (!) Coisas dos céus — do céu-da-boca!

Coisas da botânica
Como agrónomo que sou, recomeço este enguiço de conversa pelas coisas mais simples dos saberes da botânica… O nome científico da urtiga – urtica – deriva do verbo latino urere que significa arder, abrasar, numa clara alusão ao efeito da sua pelugem urticante causadora de uma coceira deveras irritante quando em contacto com a nossa pele. Esses pêlos minúsculos, desavessos às meiguices e horripilantes nos trejeitos ocasionados, ariscos e de palavrão mais do que certo, perfuram a pele e libertam uma arrepiante hormona tecidual [histamina] que provoca reacções alérgicas, razoavelmente doridas, e acetilcolina — um atrevido neurotransmissor habitualmente encontrado nos nervos — que intensifica a sensação de dor.
A Urtica dioica L.
[o urtigão, a urtigoa, urtigona, urtigaça, urtiga-de-cauda, urtiga-maior, urtiga-alta, urtiga-mansa, urtiga-vulgar, urtiga-vivaz, ortiga ou estruja para alguns transmontanos e galegos raianos…]
e a Urtica urens L. [a urtiga-menor ou urtiga-brava]
da malfadada família das Urticaceae, género Urtica que compreende cerca de oitenta espécies herbáceas distribuídas por esse mundo fora, concentradas principalmente em ambientes temperados do hemisfério norte, são duas das espécies mais vulgares do continente português, aparecendo um pouco por toda a parte, sobretudo em habitats ruderais, húmidos, sombrios ou mais arejados, em qualquer entulho orgânico, principalmente a urtigona. Quanto às respectivas propriedades medicinais, elas são muito idênticas, mas é conveniente saber distingui-las, quer para uso alimentar, quer para fins industriais. Assim, na arte dos botânicos, agrónomos e demais…
a urtiga mais vulgar – a dita maior – é uma espécie dioica; ou seja: é uma planta de flores masculinas e femininas em pés distintos, tal como a maior parte dos vertebrados em que a mecânica sexual se distribuiu por indivíduos diferentes. Por sua vez, a outra – a menor – é monoica; isto é: cada pé tem flores femininas e masculinas como na maioria dos vegetais, mais ou menos como as hermafroditas minhocas e os bissexuais caracóis terrestres, em que cada indivíduo se apresenta com os dois tipos de sexo… tudo a funcionar na mesma casa (oikos), como diriam os gregos de outrora (…) A vulgar é uma planta vivaz, relativamente avantajada, podendo chegar a atingir mais de metro e meio de altura, com folhas ovais, grandes e acuminadas, de margem dentado-serrada, verde-escuras, e flores agrupadas em cachos ramificados bem mais compridos do que o pecíolo das folhas; a brava, bem mais pequenota, raramente alcança meio metro, é anual, com folhas verde-claras, pequenas, ovais e incisivamente dentadas, e flores agrupadas em cachos simples mais curtos do que o pecíolo. Em alguns locais poderão ainda aparecer: a urtiga de cauda ou ortigão alto [Urtica dubia Forssk.], as popularmente designadas de urtigas-mortas [Mercurialis annua L., da família das Euphorbiaceae, com cheiro repugnante e sabor amargo-salgado] e as urtigas-brancas [Lamium album L., da família das Lamiaceae, ligeiramente aveludadas e de odor algo desagradável], também com algum interesse medicinal, que se distinguem das verdadeiras urtigas por não terem os tais pêlos vesicantes.

Enredos de outrora – memórias recentes
De prenúncio a esta prosma, ateimo agora em perguntar:
como poderão as urtigas — esses espécimes matreiros, esconjurados, grabulhentos, laparotos e mal-amados — ter inspirado tanta confiança, tanta familiaridade, aos nossos antepassados? Como? Tal como uma azeitona madura colhida directamente da árvore, tão intragável e tão medonhamente amarga! E aguento sempre a mesma resposta: segredos tão simples que nunca saberemos desvendar. Será?
Nativas das regiões temperadas da Europa, África Austral, Ásia, Andes e Austrália, são, talvez, das plantas que mais cedo começaram a ser utilizadas pelo Homem; pois, desde a Idade do Bronze que as suas fibras se empregam no fabrico de vestuário, trapios, beldrejos, estropalhas, farrapadas e, mais tarde, em plena Era Cristã, igualmente no fabrico de papel, a par das fibras de cânhamo, caules cerealíferos, papiro, bambu, cascas de árvores… Quanto ao conhecimento das suas propriedades medicinais, nas civilizações ocidentais já remonta à sabedoria do druidismo celta para quem a natureza se afirmava na expressão máxima da Deusa Mãe, e à Grécia e Roma Antigas, onde era admirada e utilizada para atenuar os sintomas das alergias sazonais e no alívio de dores associadas a várias inflamações, nomeadamente das articulações afectadas pelo reumatismo. E… porquê? As folhas, ainda jovens ou mais avelhentadas, acabadinhas de colher, em aplicações externas e localizadas, têm um efeito rubefaciente bem mais irritante do que o da mostarda-branca [Sinapis alba L. subsp. mairei (H. Lindb.) Maire], daí o seu continuado aproveitamento para açoitar suavemente a pele, produzindo-se, desta forma, um efeito revulsivo, atraindo o sangue para os sítios fustigados. Com duas ou três vergastadas fazem passar uma inflamação de um ponto para outro, contribuindo para descongestionar os tecidos internos afectados pelo processo inflamatório. [E] Hipócrates, tido como o progenitor da medicina, à popularidade desta serventia, acrescentava-lhe o cozimento das sementes secas para uso anticoncepcional (…) Bem depois deste asclepíade e intelectual ateniense, o orador Plínio “O Jovem” gabava-se de ser um grande apreciador de urtigas, comendo-as cozinhadas como se fossem os mais saborosos legumes; ao contrário, o seu tio-avô adoptivo, o naturalista Plínio “O Velho”, odiava-as da mesma maneira que a maioria dos actuais comensais. No entanto, os desafortunados soldados romanos dessa época cesariana estacionados nas regiões setentrionais do império, onde o frio invernal engaranhava bem mais e a fim de melhor o suportarem, cultivavam-nas para depois se esfregarem com elas. Dizia-se, há mesmo quem o afirme e bata o pé, inclusive alguns dos mais credenciados agrónomos de outrora e de agora, que o raio da planta resiste a temperaturas bastante negativas, até -45ºC! (…) Ovídio, grande poeta latino, boémio e libertino, banido de Roma pelo imperador Octávio Augusto por causa da imoralidade dos seus poemas em Ars Amatoria, relata-nos, nessa ousada «celebração do amor extraconjugal», uma misteriosa receita de um “filtro de amor” à qual não dispensou uma boa pitada de sementes de urtiga. Por sua vez, Caio Petrónio, escritor romano do tempo do enigmático Nero e autor do mundano Satyricon que Federico Fellini tão bem adaptou ao cinema, refere que as sacerdotisas do culto priápico — as meretrizes sagradas — flagelavam com um ramo de urtigas, «na zona do umbigo, sobre os rins e nos lomedros», os homens enfezados que tivessem essa dita parte «mais fria do que a neve» e quisessem aumentar a sua virilidade, tal como se praticava nos cultos da fertilidade da Idade Média e, até há bem pouco tempo, por terras freixenistas e mogadourenses, quer em homens precisados, laroteiros e acanhados, quer em animais menos bons cobridores. Dioscórides, autor greco-romano nascido em terras da actual Turquia e considerado o precursor da farmacognosia, na obra De materia medica — a principal fonte de informação sobre drogas medicinais desde o séc. I até ao séc. XVII — louvava-lhe a eficácia contra a expectoração de sangue originário do trato respiratório, através da mistura das suas sementes com mel, sangramentos vaginais anormais que não se devessem à menstruação, sangraduras do nariz e tantas outras hemorragias, tratadas com sumo ou decocções de folhas. À semelhança do satirista Petronius, seu ilustre contemporâneo, também as glorificava como um potente afrodisíaco, desde que acompanhadas por umas boas copaças de vinho! Um século mais tarde, Cláudio Galeno — médico-chefe da escola de gladiadores de Pérgamo e do imperador Marco Aurélio a quem terá curado o salafardo do filho Commodus que Ridley Scott tão bem desancou no filme O Gladiador — confirmava o poder de todas estas aplicações e acrescentava as cataplasmas contra gangrenas, úlceras e supurações (…) Na Itália dos nossos dias, com maior incidência nas regiões ladino-dolomitas, alpinas e piemontesas, sei que continua a ser frequente o seu uso. Agora, não na prática médico-curandeira mas em alguns pratos tradicionais e num harmonioso conúbio com as actuais tendências culinárias. Recordo, ainda de palato afiado e de grata saudade, uma suculenta massa “taglietelle all’ortica con asparagi e funghi” e uma virtuosa tortilha “tortino di punte d’ortica con salsa al peperone” com que nos presentearam numa sebastiana refeição em casa de uma amável família de agricultores dos arredores de Boves. Já noutra altura, em Cremona, me tinha surpreendido uma fantástica “frittata alle erbe” que incluía um picado salteado de urtigas e, em Bolzano, terra do aromático speck, o seu efeito decorativo num gordurento “rissotto all’ortica” com queijo parmesão e vinho branco da região de Alto-Adige.
O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico