A sexualidade dos vinhos
afectos, instintos e sensibilidades
«(…) O meu amigo António Monteiro qualificóu numha cata transfronteiriça, aos nossos vinhos como “femininos”, em comparaçom e contraposiçom aos seus do Douro, que eram fortes, vinosos, corpados e carregados, ou seja, “machos”. A cousa dá para reflexionar (…) Por isso, amigo António, o vinho galego, afortunadamente pode ser feminino, e isto é um elogioso qualificativo que che agradecemos os que acreditamos na paridade, igualdade e gloriosa complementariedade dos sexos, aplicavel ao noso vinho. Vinho que recolhe todo o amor feminino da Nossa Terra Nai, mas nom feminoide ou afeminado. E todos gostamos dele, e mais sabendo que está feito polas mans amorosas de muitas mulheres que o acarinharom no seu parto, infância e cuidado enológico para que chegue a nos, como um maravilhoso leite de mulher, com recendo de flores, fruitas e aroma materno (…)»
Vem este cibo de conversa a propósito desta [conversada] carta que me enviou o tão devoto defensor da Nai Galiza, José Posada González [1940-2013] — gastrónomo e enófilo exigente, escritor de prazeres, viajante da metafísica e dos cinco continentes, industrial ourensano, ex-deputado ao Parlamento Europeu, maestro fabricante de marrons glacés… e Secretário Perpétuo da Irmandade dos Vinhos Galegos; carta subscrita por todos os Irmandinhos, assim o julgo. Não recordo a data, o local e a origem das beberagens, incluindo a coloração dos vinhos da dita “cata”. Nem isso me apoquenta. Apenas memorizei o fartote de sortes de lampreia que com eles partilhei — e a continuada cortesia dos nossos Irmandinhos para com aquele alambazado naipe de intrusos transmontanos. Mas… se daquela forma me dirigi aos vinhos galegos, em prova, tintos ou brancos, verdes ou maduros, disse e facilitei o que a minha alma enófila me confessou. Disso estou crente! Porém, apegando-me agora ao meu coração de duriense, imagino o dilema que devo ter inculcado nos pensamentos de tão afidalgada grei masculina (…) Sempre entendi que não valeria a pena dar-me a explicações abonatórias da feminilidade de alguns vinhos galegos e da masculinidade de muitos dos vinhos do nosso Douro; mas aqueles estimados galegos — direi quase minhotos, meio-transmontanos e algo durienses — merecem-no. Merecem-no mesmo! Até porque ainda tenho vestígios memoriados de duas visitas bem recentes por aquelas bandas: uma à Adega Algueira, integrada numa magnífica viagem às profundezas galaico-asturianas, outra, ao Bierzo, para dinamizar uma prova de «Azeites de Trás-os-Montes», em Santa María del Páramo, León, onde a sedução foi totalitária por parte de alguns vinhos, principalmente os obtidos da casta mencía — uma casta tinta muito aromática e de uma macieza bem intimidante, típica do noroeste peninsular galego, asturiano e leonês, introduzida em Portugal na segunda metade do século dezanove, pelos peregrinos dos Caminhos de Santiago da região da Beira Interior, com a denominação de jaen ou jaen galego.
Da região de Bierzo já algum tempo que me chegavam notícias dos milagres do homem do priorat, com os seus Pétalos de Bierzo, Corullón, San Martin, elaborados exclusivamente com aquela casta tinta em regime de agricultura biodinâmica. Pareceram-me, ao primeiro embate, ser vinhos leves e frescos com um potencial de envelhecimento surpreendente para vinhos de terras altas e friorentas. Após uma segunda e terceira prova, direi que se trata de vinhos tintos a exibir aromas de vinho branco, principalmente os dois primeiros, às vezes de delicadeza demasiado exagerada e com ligeiros indícios cítricos (…) Das Terras de Lemos, dos vinhedos avarandados para os precipícios do sinuoso rio Sil, assinalo a conversa fácil com o empresário Fernando Riveiro e com a frágil e inesperada graça do seu Crianza Algueira, lembrando-me a beleza esquiva da morena quíchua, Carmen Mallou, uma das nossas companheiras de provas, a suavidade anisada e o acentuado a frutos vermelhos de um outro Mencía Algueira, mais próximo de uma danza ritual da eclética Uxía Senlle do que de um achégate a min da luarenta Rosa Cedrón, além do matizado de aromas de frutas verdes e feno acabadinho de cortar do monovarietal godello que muito me surpreendeu. Gosto de boas surpresas e estas foram bem interessantes.
Depois destas apologias de pressuposição, vamos à conversa e aos factos (…) pernoitar no cénico, sirénico, no tranquilizante Monastero-Parador de Santo Estevo de Ribas de Sil, bem nas entranhas da Ribeira Sacra, aí a uns vinte e poucos quilómetros de Ourense, para estimular, num excelente «Magosto» de irmandade galaico-transmontano-duriense, durante duas esticadas noites de sufocos vínicos, a discussão e a polémica acerca deste devaneio de enófilos de patacoada pronta – a sexualidade dos vinhos… Todos, ou quase todos, procurávamos vinhos galegos, femininos, diga-se, com a sabedoria de uma Marta Crawford e o encanto animalesco de uma Soraia Chaves ou com a segurança dramática de uma Blanca Portillo e o regalo sensual de uma Blanca Romero. Achegar-lhe, descobri-los, catá-los, seria a milagreira do evento em tão sacro retiro!
A cousa ajeitava-se. A causa prometia.
E este repousado espaço apelava insistentemente à meditação e ao avinhado das sensualidades. A resposta, a contraditória, o desafio e a natura acalmia já eram inevitáveis e convidativas. Assim, e para que não haja confusões aguisadas, mal entendidos, nem barafundas desnecessárias, permitam-me afirmar, desde já, que não existem vinhos para mulheres femininas ou arrapazadas, vinhos para o público gay, assim como não existem espumantes para streeper’s e call girl’s, licores para a beatice pantomineira, sumos alaranjados para virgens escusadas e guaranás revigorantes para sonsinhos a precisarem de espevitar o desejo… shots para jovens destravados e bagaçadas para borracholas taberneiros, favaios para provicianos rústicos e martinis para engatatões citadinos… E por aí adiante. O que eu entendo é que todos deveriamos querer, reclamar, exigir, tão só, bebidas de boa qualidade que sejam representativas das melhores tradições e traduzam muito da história do seu local de origem.
“Um bom vinho é muito mais do que uma bebida especial, mais do que uma obra de arte líquida, tem que ser uma excelente companhia“. (Anónimo)
Vamos, então, ao âmago da tal cata…
Poeticamente, e porque me agrada a fartura de poesia que está em redor da produção vitivinícola, gosto, gosto-mesmo, de falar em vinhos com um traço mais feminino e outros de expressão mais masculina. Arquitectar-lhe [a] tal sexualidade dá-me prazer e incentiva-me à sociabilidade desse mesmo prazer. Associar um vinho a um rodopio sensual, erótico, amoroso… à mais simples corte namoradeira… é o acto mais recompensador aos ideólogos da arte de fazer vinhos. Apraz-me, por isso, esta possível toponímia para com a sensualidadedos vinhos. Contudo, esta e outras estilizações que lhe queiram incutir não vão depender — somente — da vontade do enólogo ou do enófilo, seja ele homem ou mulher, feminina ou masculina, masculino ou feminino; sejam elas mais perfeccionistas, austeras e pacientes, e eles mais racionais, bruscos e impetuosos. Dependem, essencialmente, da interacção afectiva, libertina ou sarilhenta, das vinhas com as gratas e ingratas diversidades microclimáticas. Ou seja: o potencial das castas — das tourigas às malvasias, das mencías às treixaduras, das misteriosas bastardas às amorangadas tempranillo — a experiência e a sabedoria acumuladas, o trabalho vitivinícola e o domínio ambiental envolvente são os grandes responsáveis pela presumida “sexualidade” dos vinhos — brancos ou tintos — naturalmente bem mais do que a influência do sexo de quem os faz, enamora, bebe, ou de quem os comenta.
O vinho requer eternidades de paciência, a fazer e a beber.
Na minha opinião, o saber do enólogo não deverá evidenciar-se na continuada manipulação dos vinhos; por exemplo: forjar-lhe o sexo com cirurgias químico-reconstrutivas, curar-lhe maleitas crónicas ou descuidadas, como vem acontecendo, mas, sim, revelar a autenticidade e a identidade dos seus locais de proveniência. Porém, quem melhor do que uma enóloga, uma boa e criativa enóloga, escolhida e privilegiada pela mãe-natureza com os dons da fertilidade, para entender o nascimento e desenvolvimento de um vinho? Quem? Branco ou tinto, rosé ou espumante, verde ou moscatel, licoroso ou fortificado, extra-bruto ou meio-doce! (…) Quem!? É-me indiferente! Que distintos e soberbos vinhos elas têm sabido parir! É preciso, simplesmente, ter amor-próprio, paixão, entusiasmo e sensibilidade para se saber trabalhar com a harmonia da natureza e entender a raiva do seu potencial. E a mulher feminina, com essa graça maternal de doação procriadora e sentimento sofrido, tem aquele condão tão exclusivo para melhor se relacionar com as pessoas, os granjeios e os locais… as uvas e os vinhos! (Agora, prezados Irmandinhos, imaginem a cândida Penélope Cruz como enóloga de uma das vossas adegas. Imaginem, só! As cousas que terían que contar! Até o albariño galego se confundia e acasalava com um rabigato duriense! Ou, então, permitiria que um branco do Ribeiro godelhasse com uma códega de Trás-os-Montes. Talvez… talvez… conseguisse dar a robustez necessária à melindrosa beleza dos vinhos mencía da Ribeira Sacra e, porque não, recuperasse junto da doçura feminina o mítico e musculado vinho galego “Tostado do Ribeiro”!)
Destinos e ilusões, cada um que se amanhe… e desenrasque.
Quanto à enofilia — a arte de saber amar e apreciar vinhos … — pessoas de ambos os sexos, independentemente da orientação que lhe destinarem, podem ser excelentes provadoras. É um curso intensivo para se ir arrumando ao longo de uma vida, tal como numa sexualidade gratificante e de qualidade. E não terão as mulheres uma relação mais natural e mais insinuante com o acto de degustar ou, simplesmente, com o acto de sentir e respirar fragrâncias? Não sei se estes qualificativos femininos estão cientificamente provados, (bastava testemunhados), mas é uma crença minha. Estão habituadas, treinadas e acostumadas, desde muito cedo, a identificar aromas, em perfumes, cremes e flores. São autênticas máquinas da arte odorífica. Contudo, contrapondo com o distúrbio do colorido das unhas e lábios pintados e da trapalhada da panóplia de aromas perfumistas com que vão empestando cada vez mais as nossas mesas, há quem pense o contrário. Querelas adiadas, por enquanto, insisto em afirmar que nós — os homens — somos mais primatas, farisaicos, poligâmicos, obstinados, insensíveis, não passamos além do caudilhado dos cinco sentidos e poupamo-nos demasiado nas emoções. Por sua vez, as mulheres — pelo menos as nossas mulheres — irradiam olfactos apuradíssimos, abrigam paladares de imperiais soberanas que protegem a corte familiar quando é feita e servida a refeição, administram um sexto sentido que, na falta de algo mais habilitado, foi desenvolvido tendo por base o amor, os afectos, o aconchego, a preocupação e o senso de responsabilidade para com a gestão caseira. E valem-se de um sétimo com o qual regulam os instintos e os desejos, as tentações e os jogos de sedução.
Elas, as nossas e as outras, nada ingénuas, pouco ou nada inocentes
— mais focadas no prazer que o vinho proporciona — atrevem-se a dizer exactamente o que lhes vai na alma, excitam-se facilmente na presença de algo atractivo, revelando maturidade; eles… agora nós… não gostam de errar, hesitam e exageram nos momentos de reflexão, preferindo ser um pouco mais convencionais e tirânicos no paladar. Elas fazem-me lembrar o monte de curvas e decotes que é a calórica jornalista, cozinheira e crítica gastronómica, Nigella Lawson. Relembram-me, e porque não (?), a filósofa britânica emprestada ao relaxe da metafísica dos vinhos, Jancis Robinson, paladina no olfacto, que teve a ousadia de elogiar a legião de sabores do “Fojo 1996” [Para mim, um dos melhores vinhos de sempre made in Portugal, com que a Celeste Marques nos presenteou em «Terras de Magalhães»no ano do seu lançamento.] com uma notação que poucos críticos da velha praça se atreveram a confirmar. Eles —que não nós — sugerem-me o americano Robert Parker, educado na cultura do hambúrguer e do acachorrado, do frango frito e da coca-cola, agora imperador teimoso da crítica vinária e francófilo assumido.
Bom! Com este fraseado longo, certamente confuso…
apenas vos quero transmitir uma ideia entretida e ziguezaguear um pouco pelas funções não-alimentares do vinho… e não um enófilo impingindo retóricas que a outros cabem apregoar. Também não quero atribuir faculdades aos vinhos como que fazendo as coelhinhas da playboy parecerem moçoilas de colégio de freiras ou os teores etílicos da voz de Amy Winehouse encarnarem no delírio corporal de uma qualquer Juliana Paes… ou de uma Sonia Ferrer. E não falo de enologia porque não sei nem tenho a intenção de me preocupar em saber, mas posso sugerir-vos os créditos da enosofia – a sabedoria da prova e do conhecimento dos vinhos. Recordá-la nos vinhos de Barolo Gigi Rosso que, já lá vão alguns anos, numa visita organizada pela Universidade de Torino à região de Cuneo me foram dados a degustar…, para vos relembrar que o criador deste conceito vino-filosófico foi o jovem Maurizio Rosso dessa ilustre casa vitivinícola italiana; refrescá-la no repouso daqueles olhos verdes cor de prado e daquele sorriso safado, tipo Ornella Muti, da nossa guia Franca Morelli, a evocarem um vinho de estilo arrasador… memoriá-la na companhia da extática gastronomia della lumaca, arreada de fatias de polenta e de sabores mentolados, num rissotto al Barolo de Vinho do Porto e naquela massa tajarin al ragù di piccione… comemorá-la com esses ditos vinhos de masculinidade persistente, no entanto, de uma elegância feminina perfumada numa complexidade de aromas tão felinos e tão florais (…) Não é, sinceramente, uma provocação a galaico-durienses… sustentar esta falácia com a enogastronomia italiana, porque no que diz respeito a volúpias sensualidades, os italianos são exímios, ou não fosse a Itália a Enotria e o lugar onde se filharam as mais belas mulheres do mundo!
Não há muito tempo, uns colegas da etrusca Perugia diziam-me que elas — as suas mulheres — são sensuais, etéreas, olímpicas,mas… sempre deste terráqueo mundo como os seus vinhos. Como se fossem acessíveis, frágeis, verídicas, inteligentes, universais, possíveis, apenas com um simples desabotoar de blusa ou recorte dela mais ousado, um mero sorriso labial, e sempre de presença inapagável na nossa memória ou nas nossas fantasias. Como se fossem vinhos polémicos, ensarilhados, de final de boca longo e guloso, de excelente impacto aromático a raiar sabores de muita fruta madura à mistura de jovens especiarias. Ainda sobre as suas mulheres, acrescentavam: “le nostre donne são mulheres de sonho feitas realidade, ao contrário das (…) francesas, inglesas, americanas, que são mulheres reais feitas sonho, tal com os seus vinhos”.
Aceito-lhes esta perspectiva! Desde que, pelo menos de França, excluam um La Moulinedo reino da Merlot, o lendário Petrus, o perfeito equilíbrio entre força e elegância de um Château Cheval Blanc (…) aquele Clos de Vougeot que Babette Harsant escolheu para acasalar com as tão estuporantes cailles en sarcophage à la sauce perigourdine… a mais vilã das bond girl, Sophie Marceau, “esse obscuro objecto do desejo” que foi Carole Bouquet, o glamour espontâneo de Emmanuelle Béart e a beleza indecente de Eva Green… e por aí fora… Bastará, então, degustar um Orvieto da Umbria, a maioria dos Brunello di Montalcino, um Passito di Pantelleria, até um simples Marsala, que tanto impõem a sua particular beleza à custa do seu enorme talento como com o seu talento fazem esquecer a sua absoluta falta de beleza, recordando-me a enigmática sensualidade de Anna Magnani e o talento dramático de Giulietta Masina, a impertinente feminilidade de Gelsomina e a forte personalidade de Rose Tattoo… a beleza fulgurante da malizia de Laura Antonelli, a ingenuidade inflamável de la liceale Gloria Guida ou a sedução explícita da malèna Mónica Bellucci.
Poderia ainda convocar e acrescentar outros exemplos merecedores destes chamamentos à descoberta da sexualidade vinária, imperceptível, ou da falta dela, como sejam: o machismo notório de muitos vinhos tintos e brancos crescidos ao longo do Douro, com excepção dos vinhos próximos da foz e da nascente que não podem ser uma coisa nem outra; os rosés de uvas tintas, de cores rosadas e frutados aveludados, tradicionalmente femininos, que os franceses insistem em mesclar de uvas brancas; os espumantes que já foram amarelos, quando muito um nadinha rosados, assentando bem em qualquer matrona, angélica messalina ou eterna solteirona, agora abertos à masculinidade das tintoreras, como aquele pedante lambrusco que me pespegaram para acompanhar a ousadia de uma imaculada macarronada bolonhesa; os riesling eiswein que, na sua pacatez alcoólica e no seu colorido aromático, até não vão nada mal com fumeiro intenso e queijos fortes; aqueles apalermados cocktail’s de tudo e mais alguma coisa que aborrecem qualquer alegria de beber e disfarçam os prazeres de quem os bebe… E, o que dizer do nosso generoso Vinho do Porto? Cada vez mais arredado do nariz dos jovens e mais relembrado pela garganteia de homens e mulheres envelhecidas!
Ah! Como eu gostaria de ter como embaixatriz do nosso generoso a vossa sevilhana Paz Vega em vez do taciturno madrileno José Maria Aznar… ou que a carraspana que deu mote à hilariante Cameron Diaz para «Jogos de Amor em Las Vegas» tivesse resultado de um simples excesso de Porto LBV!
(…) Foi, orgulhosamente, a nossa centenária casa Ramos Pinto a primeira marca a associar aos seus Portos a sensualidade e a sedução, num arrojo estético e moral para a época. Refiro-me, entre outros exemplos, ao místico rótulo idealizado por Henry Vicent, em 1929, com a imagem de um jovem casal preparando-se para um beijo, tentados por um Cupido bonacheirão que lhes oferece um cálice de Vinho do Porto. Faz-nos querer que a beijoqueira nasceu por causa do vinho. É bem possível!
Consta-se que os romanos da antiguidade beijavam suavemente as suas mulheres nos lábios sempre que chegavam a casa, para descobrirem, pelo seu hálito, se haviam sucumbido à terrível tentação de beber vinho. Acreditavam que o “maldito” vinho, (certamente um vinho de Trallosmontes), com os seus poderes mágicos, podia levá-las à perdição e aos braços de outros homens. Pelos vistos, era hábito entre amantes dar de beber vinho um ao outro usando a boca… Como sabemos, pelos ensinamentos de Freud, que “a boca é a primeira parte do corpo que usamos para descobrir o mundo e saciar as necessidades”, terá nascido assim a prática da beijoquice com contornos eróticos!
Depois d’estes enfados em argumentos pouco sustentáveis
apenas meus e a decorrerem ao sabor de um vinho suficientemente possante, alguém ainda duvida que as beberagens, de emoções femininas ou de alvoroços masculinos, afectam o comportamento de quem não as exclui? Tal como o sexo e as sexualidades!? O problema das bebidas — tintas ou brancas, sociáveis ou manhosas, sôfregas ou libertárias, masculinas ou femininas, com ou sem euforias — não é uma questão dietética mas sim apolínea e conflituosa, entre a ilusão e a racionalidade… a força e o desequilíbrio. A escolha da bebida é inequivocamente uma escolha existencial.
Afinal, existirá um vinho feminino e um vinho masculino?
E porque não? Quando falo em vinhos «femininos» (não feminóides ou afeminados que excluo da minha roda de prazeres) refiro-me a vinhos meigos e delicados, com subtileza no álcool e clareza na cor, nada cruéis na boca, suficientemente extravagantes e vaidosos, redondos e macios na descida, vinhos cosmopolitas, apetitosos, fáceis de beber e que tenham como prerrogativa não apresentarem nenhum tipo de dificuldade à abordagem. São vinhos que espontaneamente apelam a uma degustação afectuosa, não excessivamente perfeitos porque é preciso algumas imperfeições para que o encanto atraia os olhares menos distraídos. Terão que ser vinhos frescos e elegantes, por isso mesmo, engenhos de prazer, transpirando sensualidade, pecaminosos, algo sofisticados, sensíveis, razoáveis na acidez, doces e frágeis — características intimamente ligadas à feminilidade das mulheres. São vinhos essencialmente brancos, maduros, verdes ou espumantes, raramente tintos, em que a madeira e a idade não lhe tenham criado embaraços. À semelhança das mulheres femininas — morenas, ruivas, sardentas, negras, mulatas, pardacentas, louras… — de corpo curvilíneo ou de gelo escaldante, estes vinhos terão que ser naturalmente como elas: “encantadoras nuances aromáticas ou detalhes de fina renda bordada”.
Uma das bebidas mais populares e célebres do mundo, o champagne, seria a paixão de Jeanne-Antoinette Poisson, Madame de Pompadour, a lendária amante de Luís XV. E terão sido os seus seios, certamente de formato maneirinho, que serviram de molde à respectiva taça de degustação. Consta-se! (…) Conta-se que a moda caiu nas maliciosas bocas do povo. Por essas razões [!?] durante anos e anos essa taça sensual foi adoptada como o copo universal dos vinhos espumantes, até ser substituído por aquela coisa meia fálica – o flûte. Dou preferência a uma bela taça…
E… o que poderá ser um vinho masculino?
Neste caso, o teor alcoólico é o primeiro factor que governa o arrumar desta minha orientação sexual do vinho; a robustez da cor, a pujança no nariz, a teimosia na boca e a mania da perfeição, são outras características que podem influenciar esta possível alegoria. Serão, assim: vinhos atléticos, de taninos musculados, corpulentos na garganta, de puxa palavra demasiado fácil, às vezes rústicos e feudais, tradicionalistas, muito mais longevos que os seus pares e que, quando bons, só tontos os beberão ainda jovens. São vinhos burocratas para mastigar lentamente. E isto ocorre, principalmente, nos vinhos tintos maduros, raramente nos rosés e muito dificilmente nos brancos. Quanto a outras comparações, abstenho-me de as fazer! Porque os homens — poderão pensar alguns — gostam de beber vinhos femininos enquanto o olhar acostumado de uma mulher feminina aprecia muito mais a persistência na boca de um vinho tinto masculino. Pois que o seja! Não é a minha perspectiva… É claro que a indefinição e as vestimentas trocadas também são uma realidade, tanto para homens e mulheres como para os vinhos, não influenciando em nada o aspecto qualitativo de qualquer um. São opções e gostos personalizados. Nada mais! E tanto me dá que alguns homens prefiram os vinhos femininos, certas mulheres elogiem os vinhos mais masculinos, e vice-versa, que um queijo de massa mole e de cabra jovem vá bem com um branco seco aromático ou que uma posta mirandesa apele a um tinto de bom corpo. Perguntem ao calor vulcânico de uma ilustre amiga mogadourense e ela vos dirá, ao jeito do reformador Martinho Lutero, que “quem não ama o vinho, as mulheres e as canções, será um estúpido toda a vida“.
A diferença entre vinhos femininos e masculinos poderá ser
como a diferença entre linho e veludo, seda ou burel… Como o esbanjar de beleza de Halle Barry e o culturismo aborrecido de Sylvester Stallone, um (des) cruzar de pernas canibalesco de Sharon Stone e o entretenimento escapista de Steven Spielberg, a sensualidade do improviso de Eva Mendes e o inesquecível Segredo de Brokeback Moutain… a vida insípida do advogado William Hurt e a irresistibilidade da incendiada Kathleen Turner naquelas “noites escaldantes”! Enfim, desvarios cinéfilos e confusões lascivas à parte, talvez por culpa dos açoites do vinho, o linho e o burel — tecidos mais ásperos, ríspidos, bruscos e possantes — serão como os vinhos masculinos; já o veludo e a seda, mais débeis e mais agradáveis de se sentir a sua maciez, serão mais para as mulheres como os vinhos são femininos para os homens (…) Sobre este assunto que já vai um pouco assexuado, bastante pomossexual, ainda razoavelmente epicurista, e como epílogo final, aproveito uma frase bem esclarecedora de L.F. Veríssimo que tento reproduzir de memória: “já se disse mais disparates sobre vinhos do que sobre qualquer outro assunto, com a possível excepção do orgasmo feminino e da vida eterna”. E fico-me por aqui, porque não pretendo nem quero engordar a intelectualidade dessas já enormes fileiras.
Por último, agora noutra prespectiva…
Nestas questões vinárias, femininas ou masculinas, são várias as vezes que me colocam a pergunta: «que vinho me recomenda?». Por norma não respondo, disfarço uma pequena surdez, uma ligeira distracção, um olhar mais sisudo, ou contraponho através de três factores que para mim poderão identificar um possível “bom vinho”: 1º) o que melhor se adapta ao gosto pessoal – posso até ser fiel a uma marca mas nunca serei bebedor de rótulos nem de modas fáceis; 2º) o que melhor se apropria ao bolso de cada um – as capacidades financeiras são cada vez mais castradoras do gosto e dos prazeres; 3º) o que melhor se ajusta ao ambiente e à ocasião requerida – temperatura, estação do ano, companhia, comida, estado de espírito, etc. Poderei ainda arrumar e organizar a escolha de um vinho, quanto ao contexto do seu consumo, como: vinhos de entrada e acolhimento – vinhos de espevitar o palato e fazer a boca a um naco de qualquer coisa; vinhos de pretexto – vinhos de visita e de pura diversão, evasivos, dispensando a reputação e outras pretensões que não sejam a vontade de beber, como a maioria dos actuais vinhos entalados em «bag-in-box» ou de prateleira de hipermercado; vinhos de confraternização – vinhos gregários e com a facilidade de fazer soltar a língua a qualquer incauto…
Diz-se que Deus só criou o homem porque estava a beber sozinho e o vinho requer companhia!
vinhos de sonho, celebração, sedução, poéticos – vinhos notáveis, ícones do festejo e da celebração mais intimista, vinhos de despertar paixões e ódios com o mesmo ar de candura e inocência, vinhos que transformam quase todas as mulheres em verdadeiras estrelas de cinema aos olhos de quem os bebe; vinhos disto e daqueloutro …; vinhos de meditação – vinhos “conventuais” que pedem silêncio, recolhimento, reflexão e concentração, uma epifania para ser beber de joelhos em suprema companhia, como muitos Porto Vintage ou esta virilidade vínica temperada de poesia torguiana que me tem feito um celestial e tranquilo acompanhamento ao longo da escrita desta conversa.
Porém… não dêem atenção aos bebedores de letreiros
à irracionalidades das paixões, nem à sabedoria misteriosa daqueles que pensam que “quem não bebe daquilo que eu digo ou é ignorante ou o diabo que o leve”, e deixem que o vinho — feminino ou não, tinto, rosé, branco, tranquilo, fortificado… galego ou duriense — cumpra as suas mais nobres missões (…) Ilustres Irmandinhos, façam como um dos nossos amigos comuns quando insiste na elegância e masculinidade do seu Callabriga — vinho que reflecte bem a versatilidade e a actualidade apaixonante dos vinhos do nosso Douro —ou quando reitera os afectos, instintos e sensibilidades de cada um perante uma vida de contínuo prazer… «(…) não dispenso olhar uma bela mulher, assim como não dispenso uma boa refeição com um grande vinho; há vinhos, tintos ou brancos, que têm mais e melhor corpo, as mulheres também; outros são suaves, aveludados, harmoniosos, como a pele delas… outros são sensuais, convidando aos sentidos da imaginação, tal como as mulheres… outros impõem respeito, disciplina, e criam as mais fantásticas expectativas…» E mais não acrescento a esta alongada conversa, porque “um bom vinho deve ser tratado como uma bela amante” (ditado francês). Nem este agrupado de caracteres, palavras, parágrafos, citações… pretende ser uma resposta desculpável, ou de futuro debate, a quem quer que seja. Da minha parte, trata-se apenas de um convite à leitura da magnífica obra do Jose Posada – «Metafisica del Vino» – e de um brinde ao mérito e à excelência de outro amigo e cúmplice, Roger Fernando Teixeira Lopes [†]. Aos dois a quem dediquei esta conversa… termino, citando o poeta persa do séc. XI/XII, Omar Khayyam:«(…) Alguns amigos me dizem: Não bebas mais Khayyam. Respondo: Quando bebo, ouço o que me dizem as rosas, as tulipas, os jasmins; ouço até o que não me diz a minha amada.»
O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico