Ana Maria Evans
Analista Geopolítica

Num mundo em rápida transformação tecnológica e geopolítica, Ana Evans sublinha que a Europa enfrenta um imperativo urgente: garantir autonomia nas matérias críticas e diversificar as suas parcerias estratégicas para contrariar a ascensão da China e a perda do tradicional eixo Atlântico. Para isso, destaca a necessidade de uma profunda revisão do modelo institucional e das políticas públicas, sobretudo no que toca à regulação, que se revela muitas vezes excessiva e desadequada perante a velocidade da inovação. A dimensão educativa como a pedra angular na luta contra a desinformação digital que afeta sobretudo as novas gerações, é outro dos temas destacados pela analista e geoestratega, que alerta para a importância de fomentar o pensamento crítico, a curiosidade intelectual e a capacidade de diálogo, essenciais para prevenir o radicalismo e assegurar uma cidadania informada e resiliente. Com uma experiência internacional vasta, que lhe conferiu uma visão plural e integradora, Ana Evans defende que só através da combinação entre inovação tecnológica, cooperação estratégica e educação rigorosa será possível preparar as sociedades para os desafios complexos do futuro.

A sua formação académica inclui uma licenciatura em Direito pela Universidade Católica Portuguesa, um mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de San Diego e um doutoramento em Government pela Universidade de Georgetown. Como é que esta combinação de estudos em diferentes áreas e contextos internacionais moldou a sua abordagem às Relações Internacionais?
Em primeiro lugar, tornei-me, em termos analíticos, uma pessoa muito holística e multifacetada, porque não é possível estudar áreas muito díspares sem, com isso, absorver diferentes metodologias, diferentes formas de analisar e diferentes modelos de pensamento. Portanto, acho que a primeira coisa que diria é que tenho um pensamento que complementa áreas distintas, que é muito multifacetado e que trata as ciências como modelos complementares. Não olho apenas para uma disciplina; olho para todas as disciplinas que estudei ao longo da minha vida.
Uma questão muito importante é que olho muito para as instituições, para o papel que estas têm em determinar a forma como os Estados se comportam e as decisões que tomam. Também olho muito para a cultura — como é que é possível culturas diferentes terem posturas tão distintas, que vão desde a sociedade, o vestuário, a forma de estar, os valores, as ideias, as ideologias, a religião. Tudo isto contribui para uma visão mais compreensiva daquilo que são decisões que refletem instituições e que refletem cultura. Por outro lado, o facto de ter estudado e vivido nos Estados Unidos durante uma década, e de ter contactado com diferentes culturas e diferentes nações, obriga-nos também a perceber que tudo é uma questão de perspetiva. Eu nunca consigo ver apenas um lado da questão internacional. Tenho sempre de tentar compreender os dois lados. Há também a questão de não ser possível pensar apenas de uma perspetiva teórica. Sou uma pessoa muito pragmática e penso sempre naquilo que são os grandes desafios das empresas, os grandes desafios dos setores, as grandes apostas que os empresários têm de fazer quando tomam decisões de investimento — e tudo isso traz uma forma de olhar que é um bocadinho diferente. Enquanto muitos analistas veem, por exemplo, o Presidente Trump como alguém focado em transações, eu vejo a sua administração como uma administração com uma estratégia sustentada em preocupações comerciais, económicas e industriais, e que, com isso, faz grandes apostas em termos comerciais, financeiros e também económicos.
Durante o seu percurso profissional, teve experiências tanto na academia como em funções executivas, como o cargo de Chief Innovation Officer na Qualify Just_IPS. De que forma estas experiências práticas complementaram a sua investigação académica, especialmente na área da governação e prestação de serviços públicos?
Foi uma experiência num cargo executivo numa empresa que opera a nível multinacional. Naquela altura, a empresa já tinha operação em mais de 50 países, e o CEO da empresa, Pedro das Neves, acreditou no meu currículo e decidiu investir em alguém que vinha da vida académica para um cargo de Direção de Inovação. Aprendi muitíssimo durante o percurso empresarial. Aprendi a pensar muito naquilo que são as grandes decisões empresariais — decisões que acontecem todos os dias, relativamente a objetivos muito concretos do quotidiano, mas que também têm de ter em conta o médio prazo da empresa e aquilo que são a missão e os objetivos estratégicos a mais longo prazo.
Como diretora de inovação, tinha de procurar novos mercados, expandir as atividades da empresa, saber em que nichos seria possível posicionar a empresa e, ao mesmo tempo, entender as políticas públicas relacionadas com o setor em que a empresa atua. Aprendi que, tal como estudamos na teoria académica, na vida prática temos de entender muito bem quais são os objetivos das políticas públicas do setor onde a empresa está a operar. No meu caso, tinha de compreender muito bem as expectativas em diferentes países, porque estávamos presentes em mais de 50 países e, portanto, tratava-se de perspetivas muito diversas. Tinha de entender os desafios de interoperabilidade entre sistemas, que são desafios cada vez maiores num contexto em que quase todos os setores são globalizados e implicam uma forte coordenação entre atores e entre diferentes países. Tinha também de me preocupar com as questões éticas relacionadas com a inteligência artificial e a sua utilização como suporte à decisão, e com a forma como nós, enquanto empresa, poderíamos lidar com estas questões e posicionar-nos num mercado cada vez mais digital, aplicando novas e inovadoras formas de aposta digital neste setor correcional. Tinha de olhar muito para além do óbvio. Portanto, tive a oportunidade de aprender muito.


Ao olhar hoje para a guerra na Ucrânia, como lê a evolução das posições europeias e ocidentais? Considera que a Europa continua a agir de forma reativa e pouco coesa ou já se vislumbra uma estratégia comum mais robusta?
Neste caso, há o papel que as instituições desempenham e há a influência que exercem sobre as decisões e sobre a própria capacidade de decisão. A União Europeia é um daqueles casos clássicos de um conjunto de países, culturas, organizações e instituições que se uniram, mas que ainda não conseguiram atingir aquilo que seria uma federação — uns “Estados Unidos da Europa”. Este problema de ainda não se ter alcançado uma verdadeira união de Estados, em termos setoriais, faz com que a política de defesa e segurança coletiva da União Europeia continue a ser uma questão subdesenvolvida. Trata-se de um setor que, institucionalmente, não dispõe dos mecanismos necessários para poder dar resposta e antecipar grandes questões de segurança. Portanto, a União Europeia terá sempre este handicap — esta incapacidade de desenvolver o tipo de infraestruturas de defesa que implicam uma enorme coordenação entre Estados. Estas exigem decisões muito complexas: que Estado investe em que tipo de equipamento, que Estado investe em recursos humanos, em forças armadas, que Estado investe em sistemas antibalísticos… Mesmo quando existe muito financiamento disponível, o problema é que não há uma estratégia coletiva — algo que, habitualmente, é promovido por instituições centralizadas. Conseguimos, ainda assim, avançar consideravelmente na velocidade da tomada de decisão precisamente sob a pressão da guerra na Ucrânia. A guerra obrigou a Europa a despertar. Mas uma coisa é ter capacidade de resposta e de criar consensos; outra, bem diferente, é dispor de uma instituição centralizada que tome decisões na área da Defesa. Há sempre uma grande inércia burocrática — mesmo nos Estados Unidos ela existe, inclusive ao nível do Congresso —, mas os nossos desafios são muito maiores porque não temos um Governo Federal único. Esta ausência de autoridade no setor da defesa coloca sempre muitos entraves e muitos desafios. No entanto, não deixa de ser admirável que se tenham conseguido muitos consensos e até com alguma rapidez.
Do ponto de vista militar e político, a Rússia tem demonstrado um esforço contínuo para sustentar a sua operação militar na Ucrânia, apesar das sanções e da pressão internacional. Considerando a atual situação no terreno e as dificuldades internas, qual é a margem de manobra que Putin ainda tem para manter este conflito em andamento? E que consequências podem advir de uma prolongada estagnação ou de um possível colapso militar?
A questão aqui, como sempre, gira em torno da China. Aliás, devo dizer que, quando lemos os documentos sobre a política externa americana durante a administração Trump, ou sobre as preocupações com a segurança nacional, tudo gira em torno da China. E, mais uma vez, é a China que tem as cartas naquilo que é o objetivo russo relativamente à Ucrânia, porque é a China que torna possível à Federação Russa manter este esforço e intervenção de guerra, apesar da diluição temporal. Já passaram mais de três anos em economia de guerra e, por exemplo, esta situação, num país democrático, seria catastrófica. No caso da Rússia, a administração do governo de Putin tem que se preocupar, acima de tudo, com aquilo que são os seus grandes pilares — e esses pilares estão nas chefias militares e nas chefias oligárquicas. Mas há um limite a partir do qual, mesmo num regime autoritário, a população e, em particular, a classe média têm que se manter com um nível de satisfação relativamente estável, porque, se a classe média, devido ao esforço da economia de guerra, perder aquilo que são as suas expectativas e o seu estatuto, isso pode representar um perigo, a médio ou longo prazo, para o regime.
Ora, o que está a acontecer? A China, por um lado, está a proporcionar à Rússia, no âmbito da indústria de guerra, os componentes de que esta necessita — ou seja, equipamentos ou peças que podem ser utilizados tanto na indústria civil como na indústria militar. Aliás, existem corredores de trânsito e transporte entre a China e a Rússia que continuam ativos nesta transferência de bens da China para a Rússia. Por outro lado, a China é o maior consumidor de combustíveis fósseis do mundo e, como tal, precisa desses combustíveis; a Rússia vende energia à China e, assim, consegue, do ponto de vista financeiro, encaixar os proveitos dessas vendas e, simultaneamente, receber da China — e também do Irão — equipamentos, peças e acessórios para a sua indústria militar e civil. O Irão, por exemplo, envia muita tecnologia, como drones, para a Rússia. Tudo isto permite que se continue a sustentar o esforço industrial de guerra e, até à data, não se nota que haja um grande protesto, quer ao nível da sociedade, quer ao nível dos pilares mais oligárquicos do regime.
O conflito israelo-palestiniano, particularmente com os desenvolvimentos recentes na Faixa de Gaza, tem gerado uma série de discussões sobre o papel das potências internacionais no processo de mediação. A política externa dos Estados Unidos, ao delegar uma maior responsabilidade para a resolução do conflito aos países árabes vizinhos, marca uma mudança significativa na dinâmica regional. Qual é a sua leitura dessa mudança e como acha que ela poderá afetar o processo de paz, a estabilidade na região e as dinâmicas de poder, sobretudo tendo em conta a crescente influência de potências como o Irão e a Arábia Saudita?
O Presidente Trump visitou a Arábia Saudita naquela que foi a sua primeira visita de Estado fora dos Estados Unidos. E o que observamos? Observamos que o Presidente Trump escolheu visitar os países Árabes do Golfo. Não visitou Israel; visitou os países Árabes do Golfo. E Israel não aparece em nenhum ponto da agenda oficial da viagem. Isto tem um significado muito relevante. Para mim, como analista, o significado é, mais uma vez, o de uma corrida entre as duas grandes potências atualmente presentes no Médio Oriente. Quando pensamos em anteriores presidentes americanos, vemos que esses estavam preocupados em demonstrar, no contexto do Médio Oriente, a sua capacidade diplomática para alcançar grandes consensos — como, por exemplo, os Acordos de Abraão, que procuravam normalizar as relações entre Israel e alguns Estados Árabes. Mas, para mim, enquanto analista, a questão central é a corrida entre os Estados Unidos e a China. A China, que é a grande preocupação transversal nos documentos de política externa e segurança norte-americana, tem vindo a reforçar significativamente a sua presença no Golfo e nos Estados Árabes. A China tem grandes investimentos nestes países e, como referi, sendo um consumidor ávido de combustíveis fósseis, compra petróleo tanto à Arábia Saudita como ao Irão. Se a China está presente no Médio Oriente, se é uma grande consumidora de combustíveis fósseis e se tem vastos investimentos na região, os Estados Unidos têm motivos sérios para se preocuparem. Têm necessidade de correr ao Médio Oriente para garantir o maior número possível de parcerias — tanto ao nível da segurança como ao nível do investimento. Trump também quer transmitir à sua audiência doméstica a mensagem: “Meus amigos, fui ao Médio Oriente e trouxe biliões em investimento.”
A rivalidade entre os Estados Unidos e a China tem sido um dos principais motores de mudança no cenário geopolítico global. Como avalia a forma como esta crescente tensão entre as duas potências está a reconfigurar as alianças tradicionais, como a NATO, e a redefinir as parcerias transatlânticas? Considerando a ascensão de potências não ocidentais, como a China, qual será o impacto desta nova dinâmica sobre a ordem internacional pós-Segunda Guerra Mundial, especialmente em termos de poder político, económico e institucional?
Estamos habituados, por vivermos na Europa, a ver o eixo do mapa-mundo centrado no Atlântico ou na Europa. Mas, nas relações internacionais — como em tantos outros domínios da vida — tudo depende da perspetiva. Esta nossa visão, herdada dos tempos áureos em que a Europa, ou o Oceano Atlântico, eram considerados o centro do mundo, deixou de fazer sentido. Já não somos, de forma alguma, o centro do mundo. Somos, sim, um mercado muito importante, com cerca de 450 milhões de consumidores, mas estamos longe de constituir um Estado-nação único. E isso significa que continuamos sem conseguir tomar decisões conjuntas — sejam elas industriais, tecnológicas, de segurança ou de defesa — devido à existência de demasiados interesses divergentes dentro da própria Europa.
Ora, a China, que possui uma capacidade demográfica de dimensão titânica, não enfrenta estes problemas. Muito pelo contrário: adota uma variante de capitalismo de Estado. E, sendo essa a sua realidade, qualquer investimento externo na China tem obrigatoriamente o apoio de empresas com algum grau de orientação ou participação estatal. Isso confere ao Estado chinês uma capacidade de manobra estratégica — até em termos empresariais — que não encontramos no Ocidente, nem sequer nos Estados Unidos, que estão longe de conseguir rivalizar com essa agilidade.
No contexto europeu, uma empresa é completamente livre nas suas decisões estratégicas — obviamente dentro das condicionantes regulatórias, dos padrões internacionais, das harmonizações comunitárias, das exigências de financiamento, entre outras. Ainda assim, no essencial, é livre. Já no modelo de capitalismo de Estado chinês, o Estado intervém ativamente na definição da estratégia empresarial. Curiosamente — ou ironicamente — nos primeiros 100 dias do seu mandato, o Presidente Trump tomou decisões, através da sua autoridade executiva, que quase colocaram os Estados Unidos numa trajetória semelhante ao capitalismo de Estado.
A sua administração foi, desde cedo, extremamente assertiva nas políticas económicas e fiscais, aproximando-se temporariamente de um modelo mais intervencionista do que aquele que tradicionalmente caracteriza o capitalismo liberal americano. No entanto, como vimos, esse tipo de intervenção estatal não é sustentável por muito tempo num país com uma tradição profundamente liberal.


O apagão eléctrico que afetou recentemente Portugal e outros países da Europa levanta questões sobre a vulnerabilidade das infraestruturas energéticas, em especial em tempos de crescentes ameaças digitais. Com a possibilidade de ciberataques como uma das causas deste incidente, como avalia a preparação de Portugal e da União Europeia para enfrentar e mitigar ameaças híbridas, que combinam riscos tecnológicos e geopolíticos? Que medidas concretas considera essenciais para garantir a segurança das infraestruturas críticas no futuro?
Como já referi anteriormente, tanto a energia como os materiais críticos são utilizados como armas de arremesso. Aliás, os fluxos energéticos estão, de alguma forma, ligados aos grandes conflitos das últimas décadas. Creio que o grande desafio que se coloca à Europa — e não só à Europa — é a necessidade de redefinir o próprio conceito de segurança. E essa redefinição não é apenas uma questão teórica. Reclassificar a energia e os materiais críticos como elementos de segurança nacional implica investimentos concretos por parte dos Estados. E sabemos que as políticas públicas operam sempre com orçamentos limitados. As Forças Armadas, por exemplo, são tradicionalmente consideradas um bem público — e todos nós, como contribuintes, pagamos para a sua existência através do Orçamento do Estado. O que se coloca agora é que o acesso à energia e a materiais críticos deve também ser encarado como um bem público. E isso exige uma redefinição profunda: quem paga, quem investe, de que forma e com que mecanismos, para assegurar que a sociedade tenha garantido, sem interrupções, o acesso a esses elementos críticos — sem os quais o funcionamento normal da vida coletiva deixa de ser possível.
A construção do túnel subaquático sob o rio Tejo, que ligará Algés a Trafaria, simboliza um passo importante para reforçar a conectividade estratégica de Portugal com o resto da Europa. Na sua opinião, que impacto poderá este e outros projectos de infraestrutura ter na posição geopolítica de Portugal dentro da União Europeia? E como vê a crescente integração do país nas redes de transporte e energia europeias, em termos de segurança energética, mobilidade transnacional e fortalecimento da sua capacidade geopolítica?
Para responder cabalmente a esta questão, seria necessário um estudo técnico profundo, porque estamos a falar de um tema absolutamente fundamental — e que, na minha opinião, ainda não foi suficientemente desenvolvido.
A verdade é que não estávamos preparados para um conceito de defesa e segurança nacional adequado à era da interoperabilidade digital, da hiperconectividade entre sistemas e dos grandes desafios logísticos no transporte de bens da Ásia para a Europa. Não estávamos habituados a integrar o acesso imediato a bens críticos no domínio da segurança nacional. Ou seja, as grandes empresas que atuam nestes sectores não têm ainda uma parceria suficientemente bem definida com o Estado, no sentido de clarificar o que é que compete ao Estado garantir enquanto bem público e o que deve caber às empresas na sua relação com os cidadãos enquanto consumidores.
Há aqui dois níveis distintos: por um lado, o objetivo final da indústria, que é económico; por outro, a responsabilidade do Estado em garantir a segurança nacional. É precisamente esta interseção entre o interesse público e o interesse privado que precisa de ser redesenhada, tendo em conta os novos modelos híbridos de funcionamento das nossas sociedades. No caso português, é essencial repensar o que é verdadeiramente crítico do ponto de vista da segurança nacional e da segurança digital. Temos de rever o que é ou não permitido ao nível da nossa regulamentação sobre dados, a nossa capacidade digital, e quais são os riscos de interoperabilidade entre sistemas da União Europeia — sejam eles sistemas digitais, policiais, judiciais ou de defesa. São questões que exigem reflexão urgente, porque a noção de segurança nacional mudou. Estamos, de facto, no meio de uma revolução — não apenas industrial, mas também ao nível da defesa e da segurança.
A desinformação tem-se tornado uma ferramenta poderosa utilizada por vários atores, estatais e não estatais, para manipular a opinião pública e influenciar os processos democráticos. Quais são, na sua opinião, os maiores desafios que as democracias enfrentam hoje devido à disseminação de desinformação? E o que considera serem as melhores estratégias que as democracias devem implementar para proteger a confiança nas instituições?
O grande desafio, sem qualquer dúvida, é o da educação, especialmente tendo em conta que os nossos jovens estão completamente imersos numa realidade fictícia – a realidade do mundo digital.
Aquilo que hoje me preocupa mais profundamente é algo muito concreto: vemos a juventude – crianças e jovens – influenciada por personalidades das redes sociais, os chamados influencers, e a viver numa realidade digital onde a informação circula sem qualquer garantia ou certificação de credibilidade. São esses mesmos jovens que já começaram a votar e que, em breve, ocuparão posições de decisão. Não podemos ignorar que o nosso sistema educativo carece, com urgência, de um conjunto de instrumentos – disciplinas, metodologias, espaços de reflexão – que capacitem os mais novos com ferramentas para distinguir entre informação credível e conteúdo fabricado, manipulado e amplamente disseminado sem qualquer critério.
Na minha perspetiva, enquanto analista e geoestratega, este é um dos temas críticos da sociedade ocidental atual. Não estamos a dedicar atenção suficiente aos grandes riscos da desinformação digital, que se alastra de forma silenciosa, mas profundamente corrosiva.
Como vê o papel da União Europeia na promoção de boas práticas de governação digital e justiça administrativa, especialmente num contexto global onde a inovação e a eficiência pública são cada vez mais necessárias? Tem a União Europeia conseguido afirmar-se globalmente nesta área ou ainda há desafios a superar, especialmente no que toca à aplicação destas boas práticas fora das suas fronteiras?
A União Europeia tem-se esforçado, há algum tempo, para ser uma referência global na regulamentação do mundo digital — seja na proteção da privacidade, na salvaguarda dos dados pessoais, ou na definição de regras e padrões que devem orientar até o trabalho digital. Em suma, abrange todos os setores relacionados com os novos modelos de análise e gestão da informação. Apesar destes esforços pioneiros, a União Europeia não dispõe de jurisdição global. Um dos grandes desafios que enfrentamos, sobretudo na área da segurança, é a capacidade de países como a China contornarem as regras e regulamentações que a UE procura implementar.
Assim, até ao momento, não parece que tenhamos conseguido resolver adequadamente os enormes desafios tecnológicos num mundo onde a inovação avança a uma velocidade muito superior à da regulação. Além disso, não é possível obrigar outros países a seguir as nossas regras, mesmo recorrendo a instituições multilaterais. Essas instituições, muitas vezes, não defendem necessariamente os interesses e princípios fundamentais comuns, pois os seus mecanismos de decisão são influenciados por Estados com peso significativo.
A questão da regulação é, por isso, uma faca de dois gumes. Precisamos de regras para nos proteger dos perigos tecnológicos, mas existe uma linha muito ténue entre a regulação necessária para garantir essa proteção e um excesso de procedimentos burocráticos e mudanças constantes, que acabam por criar instabilidade e complexidade para os investidores. Este ambiente pode levar as grandes empresas do setor digital a evitarem a Europa, porque, em bom português, “a Europa complica-lhes muito a vida”.
Num momento de crescente pressão internacional sobre as questões de responsabilidade e transparência política, qual a sua avaliação dos atuais esforços para responsabilizar líderes políticos por crimes internacionais, como aqueles cometidos na Ucrânia e em Gaza? As instituições de justiça internacional, como o Tribunal Penal Internacional, estão preparadas para lidar com os desafios colocados por estes conflitos?
Os Estados têm de ser signatários destas instituições. Muitas delas contam apenas com um conjunto limitado de Estados signatários, ficando de fora outros países importantes. Além disso, a capacidade de implementação é bastante limitada, não só porque nem todos os Estados participam, mas também porque os recursos disponíveis para concretizar de forma consistente os objetivos e a missão destas instituições são escassos e frequentemente insuficientes.
Mais uma vez, é necessário repensar que tipo de modelos institucionais precisamos, a nível internacional, para garantir a paz e a segurança em contextos pós-conflito — que são, frequentemente, alguns dos maiores desafios que emergem das guerras. Estamos no meio de uma grande revolução tecnológica e digital, com a crescente importância dos materiais críticos e a nova dimensão da guerra através de ataques cibernéticos. Existem formas inovadoras de “tirar o tapete” aos Estados e de limitar a sua capacidade de garantir defesa e segurança, usando mecanismos que, até há poucas décadas, nem sequer existiam. Por isso, é fundamental reformular o nosso modelo institucional, o sistema de tomada de decisão e a capacidade tecnológica, para que estejam alinhados com os novos desafios que esta inovação traz.
Face às recentes declarações de líderes europeus como Emmanuel Macron, que defendem uma maior autonomia estratégica da União Europeia, como vê o futuro das relações transatlânticas? A UE conseguirá estabelecer uma postura mais independente da NATO, ou as tensões com os EUA irão agravar-se?
O eixo do mundo deixou de estar centrado no Atlântico. Por isso, a Europa tem de perceber que a grande prioridade dos Estados Unidos é impedir que a China os ultrapasse como principal potência mundial. Como os Estados Unidos já perderam a corrida pelo acesso e exploração das terras raras e dos minérios críticos, terão de investir fortemente nesse domínio. Além disso, terão também de investir muito para travar a expansão militar chinesa no Indo-Pacífico.
Se a Europa se aproximar demasiado da China, será um erro geoestratégico grave. A Europa precisa da China para o comércio, isso é indiscutível, e deve manter relações de cooperação com aquele país. Mas tem de estar sempre consciente do seu posicionamento em termos de segurança coletiva e defesa. Uma dependência excessiva da China, do ponto de vista geoestratégico, seria um erro devastador. Nas Relações Internacionais, aprendemos que a dependência externa excessiva relativamente pilares críticos da defesa, segurança e funcionamento industrial e económico representa um risco geoestratégico insustentável. Por isso, a Europa terá de refletir cuidadosamente sobre o seu posicionamento.
Com base na sua experiência, quais são as principais tendências emergentes que deverão moldar o futuro das Relações Internacionais nas próximas décadas, especialmente em relação à ascensão de novas potências e o fortalecimento das alianças regionais?
A Europa tem de apostar fortemente nos materiais críticos, diversificar as suas fontes e estabelecer parcerias claras — económicas, infraestruturais e de investimento — que garantam o acesso diversificado a fontes energéticas, matérias críticas e terras raras. Isto, para mim, é indiscutível. Não pode ficar demasiado dependente da China.
Um dos motivos pelos quais a China ganhou esta corrida global pelas matérias críticas e infraestruturas foi não impor condições relacionadas com a democratização dos países autocráticos e cujos mecanismos de governança dificultam o desenvolvimento económico e sustentável. A China pensou sempre em primeiro lugar no seu interesse nacional e apostou no domínio global das cadeias de suprimento de materiais críticos para indústrias com componentes tecnológicos, desde o ponto de origem (i.e. infraestruturas e operações de extração) até à entrada dos bens nos países destino final. Neste contexto, o verdadeiro desafio para a Europa continua a ser a redefinição das estratégias de segurança nacional e europeia, garantindo investimento e financiamento direto para assegurar parcerias fundamentais com diversos países e agentes económicos, de modo a garantir o acesso contínuo a todas as matérias críticas de que necessitamos.


Se tivesse a oportunidade de conduzir um projeto de investigação nos próximos cinco anos, que área ou tema escolheria? Quais são, na sua opinião, as lacunas ainda não suficientemente exploradas nas Relações Internacionais contemporâneas, considerando o atual panorama global?
Sem dúvida, é fundamental perceber como vamos reformular o ecossistema industrial e as parcerias público-privadas, para definir claramente qual deve ser o papel do Estado na garantia de acesso contínuo, imediato e sem interrupções a todas as matérias críticas. Ao mesmo tempo, é necessário redefinir qual é o papel das empresas e dos empresários privados neste contexto.
Atualmente, existe uma vasta regulação da concorrência que impõe muitos limites aos incentivos estatais e ao estímulo à indústria e à exploração destas matérias críticas. Por isso, é precisamente esse tipo de regulação que precisa de ser repensado. É essencial criar uma estratégia que assegure a cooperação entre os diferentes Estados, alinhada com os objetivos comuns. Temos um problema de excesso de regulação. A legislação está em constante mudança e, com tanta turbulência legislativa, torna-se extremamente difícil para os investidores navegarem neste ambiente. O mesmo se aplica às regulações relacionadas com os setores digitais, as tecnologias e os grandes investimentos estatais. Os europeus, e em particular os portugueses, são conhecidos por serem demasiado reguladores, enquanto muitas empresas estão habituadas a modelos mais liberais e ágeis.


Finalmente, que conselho daria aos jovens que desejam seguir uma carreira em Relações Internacionais, considerando a complexidade e os desafios do cenário global atual e que competências considera indespensáveis?
Manter um espírito crítico é fundamental. Algo que considero muito importante para os jovens é a curiosidade. Lembro-me, quando tinha a idade dos meus alunos, era extremamente curiosa (e continuo a ser!).
Quando fui estudar para os Estados Unidos, em 1993, estava sempre a observar e a tentar aprender. Uma das experiências mais marcantes da minha vida foi que, naquela década em que vivi nos EUA, tinha contacto diário com pessoas que se tornaram muito famosas e receberam prémios Nobel, e reparei que estavam sempre a fazer perguntas – dirigidas até àqueles que eram muito jovens, como eu – e ouviam as respostas com muita atenção. Para os jovens de hoje, que passam demasiado tempo nas redes sociais, na internet, diria que é essencial saber ler, escrever, estruturar o pensamento, questionar diferentes perspetivas, estar abertos a novas informações, não aceitar nenhum tipo de fundamentalismo, e ter a capacidade de ouvir pessoas com experiências e opiniões diversas e aprender com todas elas. Para quem quer praticar relações internacionais, estas são competências absolutamente fundamentais. Se não formos capazes de ouvir a perspetiva do outro, nunca conseguiremos dialogar ou chegar a consensos.
Vivi onze anos seguidos fora de Portugal, e uma das coisas que me entristecia quando visitava o nosso país era verificar que ninguém me perguntava o que eu tinha aprendido sobre os lugares onde vivi, qual a minha análise sobre os temas que preocupavam as pessoas desses lugares. Sempre tive a curiosidade de entender como o outro pensa. Acho que essa curiosidade desenvolve uma mentalidade ecuménica e uma certa identidade comum com todos. Acabamos por ficar um pouco “fora da caixa”, sem ver o mundo em preto e branco, mas sim com uma perspetiva mais rica, plural, e agregadora, pela paz.
