Dalila Rodrigues
Ministra da Cultura

Dalila Rodrigues assumiu a liderança do Ministério da Cultura em abril de 2024, trazendo consigo uma vasta experiência adquirida à frente de instituições emblemáticas como o Museu Nacional de Arte Antiga e o Mosteiro dos Jerónimos. Reconhecida como uma das principais vozes na preservação e promoção do património cultural de Portugal, Dalila Rodrigues partilha, nesta entrevista exclusiva à Descendências Magazine, a sua visão para o futuro da cultura no país. Entre os temas abordados, destacam-se a reforma do modelo de apoio às artes, a descentralização cultural e a valorização da diversidade artística. A Ministra da Cultura reflete também sobre a estreita relação entre cultura e educação, o impacto da transformação digital e a necessidade de uma abordagem inclusiva para garantir o acesso à cultura em todas as regiões, especialmente nas mais periféricas.

Ao longo da sua carreira, sempre esteve profundamente ligada ao património, à museologia e à valorização da história da arte em Portugal. Foi diretora de museus como o Grão Vasco e o Nacional de Arte Antiga, professora universitária, curadora de exposições, investigadora e, mais recentemente, responsável pela direção do Mosteiro dos Jerónimos e da Torre de Belém, duas das maiores joias do nosso património. Mas, deixando por instantes as funções, os cargos e os reconhecimentos de lado — quem é, verdadeiramente, Dalila Rodrigues?
Determinada, rigorosa e intransigente na defesa dos direitos humanos e de princípios éticos. Valorizo o pensamento crítico e defendo a Cultura como recurso primordial e área de serviço público. Considero fundamental a expansão e a difusão do conhecimento, sobretudo através da investigação e da educação. Dedico-me de alma e coração, como se fosse uma vocação ou um imperativo, à preservação e valorização dos patrimónios naturais e históricos. Gosto de fazer bem e o bem, sobretudo por não aceitar a violência, a guerra e a falta de oportunidades no mundo em que vivemos. Inspira-me a visão, talvez utópica, de um mundo justo e em paz.
Que valores pessoais a movem, o que a inspira, e que aspetos da sua identidade considera fundamentais para compreender a sua forma de estar na vida e, agora, na política?
Penso que é justamente isso, de alguma forma: uma determinação em preservar patrimónios naturais e legados históricos. Uma determinação e um compromisso com a fruição dos bens culturais, com o acesso à cultura para todos. Devo dizer que o Programa do Governo, para o qual tive a honra de ser convidada, era, na altura em que tomei esta decisão, uma abordagem generosa do conceito de cultura, justamente porque os princípios da democratização e os princípios transformadores estão inscritos nesse programa. Foi isso que me motivou ao “sim” e à presença neste extraordinário coletivo que é o Governo atual.


A sua formação académica em História da Arte e a sua experiência como diretora de instituições emblemáticas como o Museu Nacional Grão Vasco e o Mosteiro dos Jerónimos moldaram a sua visão sobre a cultura em Portugal. De que forma essas experiências enriqueceram a sua abordagem à gestão cultural em Portugal?
A experiência enquanto profissional da cultura, em diversas instituições com diferentes missões, é fundamental. Posso dizer que tenho uma compreensão e uma empatia por aqueles que lutam perante a ausência de meios e de recursos. Sempre valorizei, nas minhas diversas experiências de direção de equipamentos culturais, mas também enquanto professora, as pessoas e as equipas. Nunca fazemos nada sozinhos; fazemos sempre trabalho em equipa. Mesmo que, em determinada altura, as decisões pareçam muito individuais, elas refletem sempre um trabalho de equipa.
Essa experiência de trabalho com diversas equipas e a luta por melhores e mais qualificados recursos humanos reforçam a importância de compreender que não é o número que determina a qualidade da equipa, mas sim a qualidade da formação a que essa equipa tem acesso. Muitas vezes, evidenciamos a fragilidade em números, mas essa fragilidade deve ser denunciada, fundamentalmente, porque o Estado não tem investido na formação dos seus quadros. E isso é uma lacuna que afeta o bom desempenho de praticamente todos os serviços. Refiro-me ao nível da cultura institucionalizada — das várias direções, institutos, equipamentos culturais —, mas é um problema transversal, que afeta profundamente o bom desempenho.
Ter esta experiência de uma luta permanente por recursos humanos adequados, em número e em competências, e por meios financeiros, que têm sido praticamente inexistentes, fez com que eu desenvolvesse, no exercício destas funções, ao longo deste ano, processos de solidariedade, de empatia e de compromisso. E, portanto, a minha luta por melhores recursos e mais meios tem sido permanente.
Tendo sido bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian e beneficiado de formações no estrangeiro, nomeadamente em Itália e Espanha, até que ponto considera que o contacto com modelos culturais europeus influenciou a sua perceção sobre o que deve ser uma política cultural contemporânea em Portugal, e quais desses modelos considera mais inspiradores para aplicar no contexto nacional?
Viajar para conhecer novas realidades e ter horizontes mais largos é essencial. Não sei se os equilíbrios ecossistémicos do planeta, que estão fragilizados em virtude dos circuitos internacionais do turismo, não nos vão obrigar, mais tarde ou mais cedo, a repensar esta afirmação de que viajar é fundamental. Também é verdade que, à medida que o planeta se fragiliza, se abrem novos recursos tecnológicos para que o conhecimento se possa expandir, ainda que, neste universo da arte e das práticas culturais, nada substitua a experiência presencial. Posso dizer que sim, fui bolseira de várias instituições e também fiz investigação na Índia, na América do Sul — percorri muitos continentes. Estive ligada a muitos projetos. O contacto com essas realidades leva-me a afirmar que o modelo de acesso gratuito aos meios culturais — fundamentalmente aos grandes museus, como é o caso da National Gallery ou do British Museum — reforça a minha defesa do modelo britânico. Pagam-se as exposições temporárias, mas o acesso dos cidadãos aos bens culturais, aos tesouros artísticos, deve ser partilhado.
O modelo britânico está na origem de medidas como, mais à frente falaremos, o Acesso 52 e o Teatro 50%, por exemplo. Sou uma defensora do acesso gratuito, do usufruto dos bens culturais e de uma oferta cultural qualificada, disseminada por todo o território. E, portanto, posso afirmar, sem hesitação, que o modelo de fruição e de gratuitidade britânico me agrada. Agrada-me também a diversidade das atividades culturais e artísticas que França promove. Há muitas formas de expressarmos a criação, a criatividade e o génio, e, tendencialmente, a cultura institucional valoriza mais determinadas formas de expressão. Sabemos que a música tem maior capacidade de mobilização e de atração do que, por exemplo, a dança contemporânea.
Por isso, é fundamental que o Estado equilibre, financie e tenha preocupação com a diversidade cultural. Todas as áreas de expressão e de criação têm de ser promovidas pelo Estado, sem exceções, porque o Estado não pode praticar políticas de gosto e deve estar atento a essa diversidade. Penso que, desse ponto de vista, Portugal tem muito a fazer, porque vive em denegação de muitas formas de expressão.
Assumiu a pasta da Cultura, em abril de 2024, num momento de transição política e em que as expectativas sobre o setor eram elevadas, tanto por parte dos agentes culturais como da sociedade civil. Como descreveria o seu processo de entrada no Governo: houve hesitações, condições que sentiu necessidade de impor, ou foi um desafio que aceitou de imediato por considerar que poderia, finalmente, fazer a diferença num setor que conhece profundamente?
Serei incapaz de calcular a dimensão da minha gratidão pela distinção e honra que o convite para o exercício deste cargo representa. Tive a hesitação natural que decorre da ponderação, da necessidade de medir forças, de perceber se os meus conhecimentos e as minhas competências estariam à altura das exigências do cargo. Mas devo dizer que não impus qualquer condição, nem precisei de o fazer. Tenho exercido as minhas funções com total liberdade, seja na definição de linhas estratégicas, seja na gestão diária dos temas. Devo dizer que o Governo atual — e digo-o sem qualquer bajulação, porque também não sou essa pessoa — é uma equipa que trabalha de forma cúmplice e em permanente sintonia. As nossas decisões são sempre tomadas de forma muito pacífica, muitas vezes com debate de ideias, o que é sempre de saudar. Mas também devo dizer que isso é possível graças à boa liderança do primeiro-ministro. Não tenho qualquer reparo a fazer; pelo contrário, só tenho gratidão pelo modo como me têm permitido exercer as minhas funções com total independência.
Uma das suas críticas mais consistentes à anterior política de património foi a centralização excessiva e a desarticulação com os territórios. Nessa linha, propôs a criação das Unidades Patrimoniais Territoriais (UPT). Pode explicar-nos, de forma concreta, como pretende implementar estas unidades, qual será a sua autonomia, e de que forma poderão mudar a lógica de funcionamento atual dos museus e monumentos sob alçada do Estado?
Quando iniciei funções governativas, estava determinada a reverter a reforma levada a cabo na área do património pelo Governo anterior, que teve efeitos a partir do dia 11 de janeiro de 2024. Iniciei funções em abril e fui vítima dessa reforma, enquanto diretora do Mosteiro dos Jerónimos e da Torre de Belém. Não concordei com a criação de uma entidade pública empresarial — uma empresa que detém a tutela direta de 37 museus, monumentos e palácios — por considerar que as coleções nacionais não devem estar sob a tutela de uma entidade empresarial. Não o fiz porque o cumprimento dos prazos do PRR, Plano de Recuperação e Resiliência, obriga a que as equipas tenham estabilidade e não estejam em processos de transição jurídico-administrativa.
A existência do PRR foi um grande incentivo para a aceitação deste cargo. São 319 milhões para o património — uma oportunidade única. Até por dever cívico, e enquanto profissional ligada à defesa do património, não podia recusar este convite. Foi um grande incentivo, razão pela qual veio comigo, fazendo equipa, a ex-secretária de Estado da Cultura, que é uma académica especializada em História da Arquitetura e que, depois de garantida a capacidade das nossas estruturas — cujas direções foram objeto de acerto, tanto no património cultural como nessa empresa — de cumprirem os prazos do PRR, retomou as suas funções enquanto Professora Catedrática da Universidade de Coimbra. Ela, Maria de Lurdes Craveiro, foi essencial no cumprimento deste desígnio.
A reforma levada a cabo pelo Governo anterior tem três aspetos que têm de ser repensados e reconvertidos noutras soluções. Em primeiro lugar, colocou o património nacional numa situação de profunda assimetria, ao entregar os 37 museus, monumentos e palácios à tutela direta de uma empresa e deixar o restante património — os castelos, as catedrais, os sítios arqueológicos, ou seja, o país — entregue ao Instituto Público Património Cultural, com sede no Porto, tendo simultaneamente extinguido as Direções Regionais de Cultura.


Temos, assim, uma empresa a tomar conta dos museus, monumentos e palácios com alguma capacidade de gerar receita, e, por outro lado, temos o país numa situação de abandono. E aqui falamos das catedrais, dos castelos, dos sítios arqueológicos, das fortificações, de todo o património dos legados resultantes de práticas ancestrais — o artesanato, o património imaterial, desde o cante alentejano à transumância das ovelhas em vários pontos do país, passando por atividades artesanais como a cerâmica, o vidro, a olaria, a cestaria, a serralharia, etc. Somos um país com uma diversidade regional geomorfológica enorme. Temos uma densidade patrimonial surpreendente — e esse país está abandonado.
As Unidades Patrimoniais do Território (UPT) correspondem, por isso, a uma medida, uma ação governativa da minha iniciativa, que tem o objetivo de colmatar o abandono em que se encontra o país. A Direção Nacional do Norte, do Centro e do Sul era uma estrutura que garantia a presença, representava o Ministério da Cultura, e tinha não apenas responsabilidades de diagnóstico e fiscalização, mas também de ação.
Agora, o património — e também a atividade artística contemporânea — ficou completamente ao abandono, centralizado no Ministério da Cultura e nas suas direções-gerais. A DG Artes, Direção-Geral das Artes, tem responsabilidades, mas baseadas numa visão muito limitada do território. As Unidades Patrimoniais do Território procuram precisamente, com estruturas do Ministério da Cultura sob tutela direta do Património Cultural e do Instituto Público, fazer um reforço com técnicos superiores, em áreas especializadas, que possam responder às realidades patrimoniais de um determinado território — e com meios técnicos também, para garantir não apenas o diagnóstico e a segurança, mas também uma ação imediata.
Por exemplo, com as chuvas intensas, inúmeras estruturas fortificadas, sobretudo na zona do Alentejo, ameaçam derrocadas e deslizamentos. É fundamental garantir uma ação imediata. As alterações climáticas constituem uma grande ameaça para a preservação patrimonial. E nós temos de estar no terreno. Não consigo — não posso — admitir que os carros de combate aos incêndios destruam as mamoas ou passem por sítios arqueológicos sem que as equipas tenham uma ação e uma presença imediata.
Por isso, o estado em que o país se encontra, do ponto de vista patrimonial, é uma situação de emergência, e tudo tenho feito, através do Património Cultural — que tem sido o meu maior aliado — para dar resposta a essa situação.
Assim, as Unidades Patrimoniais de Território são a expressão de uma preocupação com o país. São uma das consequências do meu princípio estruturante, que é “agir em todo o território”.
A sua proposta de revisão dos critérios de classificação, aquisição e circulação de obras de arte é particularmente relevante num país onde os processos administrativos nesta área são frequentemente burocráticos e morosos. Que princípios orientadores pretende introduzir nesta revisão e como será garantida a transparência e a representatividade regional e temática nas futuras aquisições do Estado?
A criação de uma entidade pública empresarial para dirigir os 37 museus, monumentos e palácios coloca limites à ação direta da responsável pela pasta da Cultura — neste caso, à minha pessoa. E eu não concordo com essas limitações.
Tem de haver políticas culturais públicas das quais decorra uma ação legislativa que garanta eficácia — não apenas ao nível das políticas de alargamento das coleções, nomeadamente através da aquisição de novas obras, mas também através de legislação que assegure que o Estado pode, e deve, fomentar as coleções privadas sem que daí decorra qualquer prejuízo. O que não pode acontecer é impedir a circulação dos bens, das obras de arte, sem qualquer contrapartida. Se o Estado impede a saída de uma obra de arte, deve fazê-lo de forma muito fundamentada e sem que tal se constitua como um impedimento à transação livre das obras enquanto bens de posse privada. É, por isso, necessário encontrar um equilíbrio entre a proteção e preservação dos bens culturais e os incentivos à constituição de coleções, bem como ao envolvimento dos privados nessa preservação e no estímulo ao colecionismo.
É igualmente importante sublinhar que os museus, monumentos e palácios devem ter políticas de aquisição alargadas, mas, acima de tudo, devem investir nos princípios da conservação e da conservação preventiva. Alargar coleções sem garantir as melhores condições ambientais e as melhores práticas conservativas não é uma boa política. Por outro lado, deve promover-se uma maior permuta e circulação dos bens do Estado que integram determinadas coleções e que, muitas vezes, se encontram em reserva, sem estarem acessíveis ao usufruto do público. Sempre fui uma grande defensora desta política de abertura, de intercâmbio, de troca e de valorização dos bens culturais em absoluto.
Num país historicamente marcado pela separação entre “alta” e “baixa” cultura, propõe um modelo cultural mais inclusivo, onde todas as expressões têm valor. Como está a operacionalizar essa ideia dentro das estruturas do Ministério da Cultura, nomeadamente no financiamento, programação e validação de projetos que nascem fora dos circuitos consagrados?
No Orçamento de Estado atual, tive a preocupação de garantir estabilidade a todas as estruturas — sejam institutos, direções-gerais ou as estruturas artísticas apoiadas pela Direção-Geral das Artes —, por uma questão de responsabilidade e de precaução.
Precisei de tempo — como todos precisamos — para tomar as melhores decisões. Por isso, o meu princípio foi o de garantir estabilidade, e não introduzi alterações significativas, nem ao nível da estrutura, nem na distribuição do financiamento, justamente para ganhar tempo até ao Orçamento de 2026. Ainda assim, introduzi algumas medidas pontuais que alteraram a estrutura do financiamento. Apesar dos magros recursos de que disponho para uma medida que desejo tornar estruturante nas políticas culturais públicas, considero essencial que o Ministério da Cultura estabeleça uma parceria sólida com todos os Municípios, através dos respetivos Executivos Municipais.
É preciso reforçar essa cooperação com os 308 Municípios — incluindo o continente e as regiões autónomas — e expandir o hábito de intervenção no domínio do Património Cultural. Excluindo os museus, monumentos e palácios, o Património Cultural é a entidade responsável por todo o restante património. Por isso, é necessário expandir a sua estrutura, reforçar o seu orçamento, criar novos departamentos e garantir essa articulação estratégica entre o Ministério da Cultura e os Municípios.
Desde que assumiu funções, tem manifestado preocupação com a democratização do acesso à cultura, sobretudo através de programas como o “Acesso 52”, que proporciona entrada gratuita em equipamentos culturais durante 52 dias por ano. Que indicadores têm sido usados para avaliar o impacto deste programa e como está a ser feita a recolha e análise de dados para garantir que a política pública está efetivamente a chegar a públicos mais diversos, nomeadamente fora dos grandes centros urbanos?
A medida incide sobre os 37 museus, monumentos e palácios que estão sob a tutela direta da Museus e Monumentos de Portugal, uma entidade pública empresarial.
Considero que esta medida deveria estar mais e melhor divulgada e aguardo que a Museus e Monumentos de Portugal me apresente os resultados.
O programa “Acesso Teatro 50%”, que oferece bilhetes a metade do preço, tem como objetivo estimular novos públicos para as artes de palco. Para além do incentivo económico, está a ser pensada alguma estratégia pedagógica ou de mediação cultural que acompanhe este programa, nomeadamente em articulação com escolas, universidades ou associações juvenis?
Sim, é a etapa seguinte. E devo dizer que os resultados são surpreendentes em termos de adesão. A medida está muito limitada, em virtude do encerramento dos Teatros Nacionais de D. Maria II e São Carlos, e também por ter sido aplicada apenas aos teatros nacionais. Tenho a expectativa de que, nas reuniões com as Comunidades Intermunicipais, e em função da parceria entre o Ministério da Cultura e os Municípios, seja possível o alargamento das medidas de gratuidade. Espero e desejo que as medidas de gratuidade e de acesso aos equipamentos culturais venham a ser alargadas. Em relação à vossa pergunta, de facto, se não está prevista uma articulação com escolas, universidades ou associações juvenis, é imperativo que passe a estar — essa é a fase seguinte.
As bibliotecas públicas são, muitas vezes, o único espaço cultural acessível em certas localidades. O programa “Estudos da Paisagem”, que valoriza o território através da leitura, é uma proposta inovadora nesse contexto. Pode partilhar a visão estratégica por detrás desta iniciativa e que resultados espera ver a médio prazo?
É uma medida pensada para que três Ministérios — Cultura, Agricultura e Ambiente — realizem estudos multi e transdisciplinares, tendo como ponto de partida o tema da paisagem, que é de uma complexidade e vastidão absolutas. Desde logo, porque existe uma enorme diversidade paisagística em Portugal Continental e nas Ilhas. O “Estudos da Paisagem” tem no horizonte as práticas artísticas e culturais ligadas à diversidade dos territórios. Tem, também, a preocupação de identificar a relação entre as manifestações culturais, por um lado, e os ciclos de cultivo ligados à terra, por outro. Fui à inauguração do Museu do Arroz, em Estarreja, e aquele museu fala-nos das manifestações culturais, das danças, das músicas e das indumentárias ligadas ao ciclo de cultivo do arroz. Trata-se de um museu de cultura. No entanto, nele também é possível divulgar um produto da região e adquiri-lo no próprio museu.
Considero que é necessário desenvolver projetos com uma abrangência significativa, mas que tenham uma presença muito determinada em cada um dos territórios que compõem a nossa riqueza paisagística e cultural.
Referiu em declarações recentes que é necessário “combater a cultura machista” dentro do próprio setor cultural. Esta afirmação revela não só sensibilidade para as desigualdades estruturais, como coragem política. Que ações concretas já implementou – ou pretende implementar – para promover a igualdade de género nos organismos tutelados pelo Ministério, nos concursos públicos e nas práticas institucionais da Cultura em Portugal?
Agradeço muito esta pergunta, que está muitíssimo bem elaborada e é muito oportuna.
Estou muito atenta às atitudes e comportamentos nas organizações que se estruturam nesta área governativa, que é o Ministério da Cultura. Estou particularmente atenta aos processos de convite para cargos não remunerados e às nomeações, que fazem parte das minhas competências, assim como aos critérios de abertura dos procedimentos concursais, no sentido de garantir a paridade de género. Não de forma forçada, mas com o cuidado e a atenção necessários para equilibrar as organizações, sobretudo ao nível do pessoal dirigente, porque é muito evidente a ausência de equilíbrio entre géneros, especialmente nos cargos de chefia.
Portugal é hoje um país culturalmente mais diverso do que há algumas décadas, com influências afrodescendentes, brasileiras, asiáticas e ciganas a marcar o nosso tecido artístico e social. De que forma pretende garantir que essa diversidade é reconhecida, promovida e integrada na programação e financiamento cultural promovido pelo Estado?
A partir das práticas culturais associadas às bibliotecas, que pretendo transformar em Unidades Culturais do Território (UCT), através de um processo de transformação e dinamização, precisamente no âmbito da parceria e dos compromissos a assumir entre o Ministério da Cultura e os Municípios. Nas três reuniões que tive o prazer de realizar com as Comunidades Intermunicipais, todos os presidentes de Câmara Municipal presentes, independentemente da sua afiliação partidária, foram unânimes em receber entusiasticamente a minha proposta de parceria. Portanto, o país aderiu e está expectante relativamente a este passo que o Ministério da Cultura deu, com o objetivo de agir em todo o país, através das UPTs e das UCTs. Assim, é por aqui que devemos trabalhar a integração. Quando falamos em 308 Municípios, não estamos a deixar nenhum território de fora e, por isso, onde essas comunidades existirem em maior número, certamente haverá programação especializada no sentido da sua inclusão.
As comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo têm um papel vital na promoção da cultura nacional e, ao mesmo tempo, vivem desafios próprios de preservação da identidade. O que está a ser feito para aproximar essas comunidades da política cultural nacional? Há planos para desenvolver uma diplomacia cultural mais estratégica, que envolva artistas, investigadores e instituições da diáspora de forma sistemática?
As comunidades portuguesas dispersas pelo mundo devem ser valorizadas através de uma conceção de cultura mais participada e sistemática, com uma programação contínua, permanente, e não episódica. Os Ministérios da Cultura, dos Negócios Estrangeiros e da Educação, Ciência e Inovação devem definir um plano de ação que transforme radicalmente a realidade atual. É urgente trabalhar novos princípios e novas práticas de internacionalização. É fundamental, na verdade, ter uma diplomacia cultural mais estratégica que coloque em diálogo e em interação essas diversas comunidades. E os princípios da internacionalização estão obsoletos. Já somos o resultado de uma revolução tecnológica, e é necessário, hoje, pensarmos de outra maneira e trabalharmos de forma ágil os resultados positivos do mundo digital e do que a revolução tecnológica nos permitiu.
A articulação entre cultura e educação é essencial para formar públicos atentos e cidadãos mais críticos. Existem planos para criar programas curriculares, extracurriculares ou interministeriais que promovam o acesso dos mais jovens à cultura, e que papel podem as escolas, universidades e centros educativos desempenhar nessa missão?
É essencial a relação, a articulação, entre a cultura e a educação. O Ministério da Educação e o Ministério da Cultura têm um recurso comum que é o Plano Nacional das Artes. Criado há cinco anos, é um projeto que se consolidou, se expandiu, e que deve ser reforçado. É uma excelente herança do passado, que eu prezo muito, porque está muito bem entregue. O Plano Nacional das Artes está focado no ensino artístico, mas ainda não tem a capacidade de chegar a todos os agrupamentos escolares. Ou seja, ainda não está suficientemente disseminado e, por isso, precisa ser reforçado em meios. Tenho uma longa experiência enquanto docente. Iniciei a minha trajetória em 1986 e, até 2001, fui apenas professora. Tenho uma vasta experiência de cruzamento de meios, perspectivas e de trabalho integrado entre a educação e a cultura. E, por isso, considero que esta articulação é fundamental, é matricial. Neste governo, estão criadas as condições, porque o ministro da Educação e os seus secretários são extremamente competentes e têm total abertura e empenho relativamente à cultura. Têm o mesmo entendimento que eu tenho. Partilhamos essa visão.
Os profissionais da cultura, desde técnicos de bastidores a artistas independentes, enfrentam uma grande precariedade. Que medidas estão a ser equacionadas para melhorar as condições laborais no setor, nomeadamente ao nível dos contratos, apoios sociais, proteção no desemprego e reconhecimento da carreira artística?
O combate à precariedade, nos aspectos que mencionou, faz-se, sem dúvida, através da revisão e melhoria do Estatuto dos Profissionais da Cultura, uma frente que temos vindo a trabalhar. No entanto, o combate decisivo à precariedade dos profissionais da cultura e a melhoria das condições laborais no setor dependem de uma alteração do modelo de apoio às artes. Este modelo deve partir de uma releitura e diagnóstico do sistema artístico, a partir do qual se possa desenhar uma política pública que garanta:
- A sustentabilidade das estruturas artísticas e a sua capacidade para contratarem e remunerarem devidamente as equipas necessárias ao exercício da sua atividade;
- O reconhecimento da relevância dos percursos profissionais nas diversas áreas da criação;
- O reconhecimento da diversidade das manifestações artísticas como fator determinante para a sustentação de um sistema artístico dinâmico, com capacidade para criar um mercado de trabalho atrativo;
- O reconhecimento da importância da preservação e promoção de repertórios diversificados;
- A consideração, absolutamente fundamental, de todos os territórios e da democratização do acesso das populações à fruição das produções teatrais, corrigindo assimetrias regionais e desigualdades sociais.
Os dispositivos de apoio não podem ser um fim em si mesmos. Para além dos concursos, o modelo de apoio às artes deve contemplar todos os dispositivos de apoio e formas de intervenção necessários, para que, da atuação do Estado, resulte a criação de um quadro de desenvolvimento para as artes e o cumprimento dos direitos constitucionais no que diz respeito à criação e fruição culturais.


A sustentabilidade financeira das estruturas culturais, particularmente as que operam fora dos grandes centros urbanos, é um dos maiores desafios do setor. Como pretende garantir a estabilidade dos apoios a médio e longo prazo, evitando a lógica de concursos anuais e imprevisibilidade que afeta tantas companhias e criadores?
Tem toda a razão na questão que coloca. Assumi um compromisso profundo com o país. Todas as medidas têm um critério geográfico: o trabalho de transformação das bibliotecas em Unidades Culturais de Território, as Unidades Patrimoniais de Território de que já falámos, as bolsas de criação literária, os ciclos comemorativos de Camões e Carlos Paredes, atualmente em curso, os contratos-programa com as Fundações para a criação e mediação artística. Não podemos continuar a falar de um país com assimetrias sem tomar medidas claras para as eliminar. No entanto, não podemos esquecer que o mandato deste Governo, e deste Ministério, foi interrompido.
Apesar disso, ficou previsto que no procedimento de renovação do Apoio Sustentado, na modalidade quadrienal da Direção-Geral das Artes, as comissões de acompanhamento deverão proceder à consulta dos Estabelecimentos de Ensino Superior (Universidades ou Politécnicos), solicitando a nomeação de docentes com pensamento crítico sobre as artes e com conhecimento das dinâmicas culturais dos territórios onde as entidades financiadas desenvolvem a sua atividade. Esta medida tem como objetivo reforçar o procedimento de renovação, garantindo uma maior sustentação técnica, associada ao conhecimento das dinâmicas culturais dos territórios.
Portugal investe menos em cultura, em percentagem do PIB, do que a média europeia. Gostaria de ver ser reforçada essa verba no próximo Orçamento de Estado? Que áreas seriam prioritárias nesse reforço – infraestrutura, programação, apoio a artistas, digitalização, internacionalização?
No programa do Governo atual, previa-se o aumento do Orçamento de Estado para a Cultura em 50% ao longo dos quatro anos da legislatura. Sim, é fundamental reforçar a verba para a Cultura, com uma distribuição nas três frentes essenciais – valorização dos legados, produção e criação, e usufruto dos bens e das atividades culturais. Sem um tecido cultural e artístico robusto e coeso ao nível dos profissionais, o sistema artístico será sempre frágil e vulnerável. É inadmissível ver artistas que tanto deram ao país, ao longo de décadas de trabalho mal remunerado ou até gratuito, fora dos apoios e do financiamento estatal. Não são apenas os montantes que precisam aumentar, são os critérios de atribuição do financiamento que devem ser revistos e ajustados.
A transformação digital do setor cultural é inevitável. Museus, arquivos, bibliotecas e espetáculos já vivem entre o físico e o digital. Qual é a sua visão para a digitalização da cultura em Portugal, nomeadamente no que diz respeito à criação de plataformas nacionais, à preservação digital do património e ao acesso remoto a conteúdos culturais de qualidade?
A transformação digital é inevitável e exige uma resposta integrada. A criação de plataformas nacionais, a preservação digital do património e o acesso remoto a conteúdos culturais são dimensões complementares deste processo e não precisam, necessariamente, ser pensadas exclusivamente pelo Estado. Contudo, o Estado deve assumir um papel dinâmico, promovendo a articulação entre os agentes culturais e criando as condições necessárias para garantir a sustentabilidade, coerência e acessibilidade das soluções desenvolvidas. A Inteligência Artificial, por exemplo, pode ampliar o acesso e a criação cultural, mas deve sempre respeitar os Direitos de Autor e Conexos, valorizando os criadores.
A digitalização pode ser uma ferramenta importante para democratizar o acesso e, sobretudo, para reforçar o conhecimento, alargando audiências sem fronteiras e contribuindo para a formação dos profissionais da cultura. O desafio reside em equilibrar inovação e proteção, garantindo que a cultura portuguesa se mantenha viva, relevante e acessível, com autenticidade e diversidade.
O setor cultural tem-se revelado, também, como um dos principais instrumentos de regeneração urbana, revitalização de centros históricos e dinamização do turismo cultural. Como vê a articulação entre cultura e outras áreas da governação, como o planeamento territorial, o turismo ou a sustentabilidade ambiental?
A cultura é, de facto, um meio fundamental, desempenhando um papel instrumental essencial na forma como pensamos e nos organizamos, na maneira como concebemos as cidades e ajustamos as nossas expetativas à ordem do mundo, que, inevitavelmente, é sempre económica. O turismo, que dinamiza as economias locais, deve ser sustentável, o que implica que a diversidade, a qualidade e a autenticidade dos lugares precisam ser preservadas e garantidas.


Ao olhar para o futuro da cultura em Portugal, que transformações gostaria de ver concretizadas a curto/médio prazo? E que indicadores considera fundamentais para medir o sucesso – ou fracasso – de uma política cultural pública?
A curto prazo, o meu objetivo é ver concretizado um dos princípios que considero estruturante – “agir em todo o país”, concretizado através da parceria entre o Ministério da Cultura e os 308 Municípios, que se traduziria em 308 bibliotecas públicas ativas, transformadas em centros culturais com uma programação diversificada e de grande qualidade. Gostaria de ver criadas, tão brevemente quanto possível, estruturas regionais, em articulação com as 22 Comunidades Intermunicipais, para a preservação dos nossos patrimónios históricos, tanto materiais como imateriais, ligados ao mundo rural e às práticas artesanais.
É essencial que o Ministério da Cultura reflita, na sua estrutura orgânica e territorial, um sistema das artes baseado em princípios de diversidade, equidade e justiça no acesso ao financiamento do Estado. Por fim, mas com a devida prioridade, é necessário avançar com uma nova lei do mecenato, que constitua um verdadeiro incentivo ao investimento privado, e promover práticas de sustentabilidade ambiental nas atividades culturais.
Depois de um ano no cargo, que balanço pessoal faz desta experiência como Ministra da Cultura? E que mensagem gostaria de deixar, em particular, aos profissionais da cultura que resistem diariamente com paixão, criatividade e, muitas vezes, com muito pouco apoio?
Faço um balanço muito positivo pelo modo entusiástico com que o meu pensamento crítico e a minha visão, as políticas públicas de cultura e as medidas que as concretizam foram recebidos no país, especialmente fora do eixo Lisboa-Porto.
O exercício do cargo é muito exigente e exige uma grande capacidade de resistência, pois, muitas vezes, somos confrontados, ainda que apenas no âmbito das agendas mediáticas, com acusações injustas, mentiras e até com afirmações ou juízos de valor que atentam contra o bom nome. É necessário, portanto, saber enfrentar a ingratidão e a injustiça praticadas por alguns órgãos de comunicação social. No entanto, o poder de transformar, garantir o acesso a bens culturais e dar retorno e meios aos profissionais da cultura, a todos aqueles que diariamente, como bem diz, resistem com paixão, compensa todas as privações, cansaço e injustiças. Transformar e lutar por um mundo melhor é, sem dúvida, um dever – essa é a minha mensagem.
