Filipe Arnaut Moreira

Major General

©Tiago Araújo

Numa conversa descontraída com a nossa revista, o Major-General Filipe Arnaut Moreira partilhou a sua visão sobre os conflitos atuais, incluindo a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, a instabilidade no Médio Oriente, e sobre a resposta da NATO e da União Europeia a estas crises. Os desafios das novas tecnologias no campo de batalha, a importância das alianças militares para a manutenção da paz mundial, as ameaças emergentes à segurança global, foram também temas em debate na conversa que aprofundou ainda as dinâmicas de poder que moldam o nosso mundo.

©Tiago Araújo

Nasceu em Coimbra em 1959. É licenciado pela Academia Militar e pelo Instituto Superior Técnico e diplomado pelo Collège Interarmées de Défense, Paris. Oficial de Intelligence na NATO, em Madrid, subdiretor-geral de Política de Defesa Nacional, chefe do Gabinete do Ministro da Defesa Nacional, diretor de Comunicações e Sistemas de Informação do Exército, Professor de Geopolítica e Geoestratégia no Instituto de Altos Estudos Militares e na Universidade Nova, são alguns dos cargos que exerce ou exerceu ao longo da sua carreira profissional. Deixando agora as posições e ofícios de lado, quem é Filipe Arnaut Moreira?

Eu sou uma pessoa que podemos encontrar no metro, na fila do supermercado, na caixa multibanco, em todas as áreas em que posso contactar com as pessoas, eu estou lá. Mexo-me com muito à vontade, sou uma pessoa muito exposta e gosto desse contacto com as pessoas. Nada me faz mais feliz do que estar no meio de pessoas. É por isso que eu escrevo pouco, porque a escrita é um ato muito solitário. E eu sou uma pessoa muito social, que se sente bem no meio das pessoas, e é aí que eu procuro desenvolver a minha atividade. Gosto sempre de dizer que o melhor tempo que temos é o tempo que dispensamos aos outros. Esse é, de longe, o melhor tempo que nós temos.

Recentemente, lançou o livro “O Domínio do Poder”, que oferece uma visão organizada e integrada sobre os grandes desafios das democracias liberais e da Humanidade. Na sua opinião, quais são os desafios mais urgentes que as democracias liberais enfrentam hoje? E como podem os líderes mundiais usar o poder de forma responsável e eficaz para enfrentar estas ameaças e promover a paz e a estabilidade globais?

Eu caracterizaria, antes de chegar às democracias liberais, a atual dinâmica da geopolítica mundial segundo três traços que me parecem importantes.
O primeiro deriva da globalização. A globalização é um fenómeno antigo, os portugueses colaboraram nessa abertura do espaço económico global, mas foi um processo que foi entregue exclusivamente à esfera de natureza económica. Os grandes atores económicos tiveram a responsabilidade de desenvolver a globalização. Deixaram de lado e ultrapassaram a política e a política somos todos nós. É a nossa vontade expressa naquilo que são as instituições que nós elegemos. Ora, a globalização operou sem que a política sobre isso tivesse influência ou limitação.
As sociedades ocidentais sempre pensaram que o poder económico era, depois do final da Guerra Fria, o poder dominante, que nós podíamos formatar e condicionar a sociedade internacional através do poder económico que residia no Ocidente. Mas com a globalização nós transferimos este poder económico para a Ásia e, portanto, a Ásia utilizou o poder económico para desenvolver outras áreas de poder que nós sacrificámos.
Enquanto nós investimos no bem-estar social das populações, na distribuição de riqueza, alimentámos o sonho de uma paz justa e universal, as sociedades asiáticas investiram no instrumento de natureza militar, como um instrumento credível para impor o seu poder. Nós cedemos poder e quem recebeu esse poder transformou o poder económico em poder de natureza militar. Somos hoje confrontados exatamente com esta dificuldade de termos deixado cair o instrumento militar, que demora muito tempo a criar, mas que, para ser perdido basta meia dúzia de anos de falta de investimentos.
Por último, as sociedades digitais. Nós tínhamos antigamente, no nosso esquema de natureza mental, a ideia de que o cidadão expressava a sua vontade livremente e tinha, através dos seus representantes em instituições como os parlamentos, uma expressão da sua vontade. Era uma democracia de natureza representativa. As sociedades digitais vieram alterar isso porque trouxeram o poder para o cidadão, outra vez. Hoje em dia, um cidadão normal pode ser muito mais influente nas suas opiniões do que qualquer deputado eleito. Nesse sentido, um dos problemas das nossas democracias e da forma como nós visualizamos a organização das democracias liberais confronta-se com a retirada do poder das instituições representativas e a sua devolução a atores não controláveis que são as pessoas.
Este é outro dos grandes desafios, o empoderamento que as tecnologias digitais vieram dar a novos atores na cena internacional.

©Tiago Araújo
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“O Domínio do Poder” discute os velhos e novos atores na arena internacional. Como vê a evolução do papel de potências tradicionais como o Ocidente em comparação com os emergentes, como a Rússia e a China? Que estratégias as democracias liberais devem adotar para se manterem relevantes e influentes num cenário global em constante mudança?

O poder, como eu procuro explicar no meu livro, é aquilo a que eu chamo “o motor das relações internacionais”. Nós, na física, não conseguimos produzir trabalho sem gastar energia. E no sistema internacional, nós não conseguimos produzir mudança sem utilizar poder. O poder é a energia do sistema internacional. O poder tem muitas formas, reveste-se de muitas formas. A mais tradicional e conhecida é o poder de natureza militar, mas à medida que as sociedades foram evoluindo, foram construindo outras formas de poder. O poder económico, o poder diplomático, o poder político nas instituições multilaterais, há muitas formas hoje em dia de podermos exercer o poder e nem todas são iguais.
O que eu explico no “Domínio do Poder” é que nós vamo-nos dar muito mal nos próximos anos, por termos deixado cair o instrumento militar. O instrumento militar não são apenas os equipamentos, são também os meios humanos que é preciso recrutar e formar, é também a doutrina que é preciso desenvolver e é uma imensa lista de espera para os equipamentos militares sofisticados. Se eu hoje em dia decidir comprar um avião sofisticado, um F-35, por exemplo, eu vou entrar numa imensa lista de espera. Vai demorar muitos anos até que os primeiros aviões cheguem, e isto é uma crítica que eu faço muito direta e objetiva às elites políticas europeias. Deixar cair o instrumento militar vai fazer com que, quando ele for necessário, ele não exista.

A guerra entre Israel e o Hamas deu início a um dos tempos mais turbulentos da história recente do Médio Oriente, região que tem sido marcada por conflitos contínuos e complexos. Aliás, no seu livro “O Domínio do Poder” afirma que o Médio Oriente é uma coleção de tragédias sucessivas. Na sua análise, quais são os fatores históricos, culturais e políticos que explicam a persistência destes conflitos ao longo dos anos? Como é que as dinâmicas de poder entre os diferentes atores regionais influenciam a estabilidade da região?

Há uma característica muito própria do Médio Oriente, é que está sempre em conflito. Nunca se conseguiram estabelecer os equilíbrios dinâmicos de natureza de distribuição de poder no Médio Oriente, por forma a que esses poderes se anulassem. Aliás, a intervenção ocidental no Iraque veio destruir o regime de Saddam Hussein e libertar toda a energia do regime iraniano para fazer o que entendesse no Médio Oriente. Portanto, a questão do Médio Oriente é uma questão dos equilíbrios de poder que se conseguem gerar ali. Esses equilíbrios de poder têm dois atores principais e esses atores têm motivações de natureza religiosa por trás. Temos, por um lado, o sunismo, cujo principal intérprete é a Arábia Saudita e o xiismo, cujo principal intérprete é o Irão. E quer a Arábia Saudita, quer o Irão, têm entre si uma guerra surda que não vai acabar, porque não é possível ignorar a importância do fator religioso. A Europa conhece bem as guerras fraticidas que teve, por causa das guerras de natureza religiosa.
Eu posso ser luso-brasileiro, mas eu não consigo ser simultaneamente judeu e cristão, ou xiita e sunita. É um aspecto muito identificador que tem duas dinâmicas associadas. A primeira dinâmica tem a ver com a prática religiosa. Muitas destas religiões, das grandes religiões, são praticadas de forma coletiva. Não são como as religiões orientais, que são praticadas de forma individual por cada uma das pessoas, e isto transforma as sociedades, a partir do momento em que transfere para a rua e para a sociedade, todo o peso da manifestação de natureza religiosa. Isto é, não é possível conter na esfera privada as religiões.
A segunda questão tem a ver com os ódios seculares que se foram gerando pela história, porque a religião também foi utilizada pelo poder político para obter ganhos substantivos conjunturais.
No Médio Oriente, todos os territórios são sagrados, porque, em qualquer uma daquelas pedras, aconteceu qualquer coisa de natureza religiosa. E, portanto, é tudo sagrado. Eu não posso entregar um bocadinho de território, porque esse território tem lá um conjunto de recordações de natureza religiosa que o torna não negociável. Este é o drama do Médio Oriente.

A recente escalada de tensão entre Israel e Palestina voltou a chamar a atenção mundial. Quais são, na sua opinião, as principais consequências geopolíticas deste conflito? Como é que uma intervenção de potências estrangeiras altera a dinâmica do conflito e quais são os caminhos possíveis para a paz?

A paz é um conceito muito difícil de definir. O que significa que, primeiro, os conflitos são muito mais atrativos que a paz, do ponto de vista das discussões académicas, e, segundo, porque nós temos muita dificuldade em definir o que é paz. Naquilo que é a minha análise do Médio Oriente, temos atores externos, como o Ocidente, que procuram todas as formas de obtenção da paz, mas paz não interessa a nenhum dos atores do Médio Oriente. Não há nenhum deles que esteja empenhado verdadeiramente na paz. Porquê? Porque o Irão não se conforma com a existência do Estado de Israel. Tudo fará para boicotar todas as tentativas que o Ocidente procure para atingir a paz naquela região. E é por isso que o Irão, para não se envolver diretamente nos conflitos, utiliza o empoderamento de atores xiitas que não são sequer atores de natureza estatal para conduzirem uma guerra de procuração contra Israel.

O Irão tem desempenhado um papel central na geopolítica do Médio Oriente, muitas vezes em confronto com outros atores regionais e internacionais. A atenção prestada agora ao Médio Oriente abre caminho para que a Rússia acentue a sua ligação ao Irão, enquanto trava a guerra com a Ucrânia? Que desafios e oportunidades surgem da relação entre o Irão e potências como os Estados Unidos e a Rússia?

Temos eleições agora no Irão, com apenas um candidato que diríamos reformador, todos os outros são da linha dura e eu não tenho dúvidas de que a linha dura continuará predominante no Irão. Mas o Irão é um ator muito mais complexo do que aquilo que aparenta ser. O Irão tem imensas divisões de natureza religiosa no seu interior e de natureza étnica e, portanto, a própria unidade do Irão é um desafio para a sua liderança. A juventude iraniana, e sobretudo o castigo religioso imposto às mulheres no Irão, têm suscitado ondas de descontentamento entre a população que só têm sido contidos por uma aplicação desmesurada da violência contra estes elementos. E, portanto, o Irão é também em si um regime de natureza frágil. É importante chamar os temas da campanha eleitoral outra vez para percebermos o Irão. Há, digamos, três temas que são fundamentais nesta campanha eleitoral e que têm sido discutidos.
Os principais têm a ver com o desenvolvimento socioeconómico das populações. As populações atravessam um problema de uma grave crise económica, porque as sanções impostas ao Irão também acabaram por se traduzir em dificuldades para a vivência da respectiva população.
A segunda questão desta campanha eleitoral tem a ver com o programa nuclear iraniano. O Irão continua a enriquecer urânio, quer nós gostemos, quer nós não gostemos, porque o Irão sente que, em face daquilo que é a capacidade nuclear de Israel, só pode ser um país respeitado se tiver essa capacidade de natureza nuclear. Mas, para isso, tem que convencer o Ocidente de que os seus desenvolvimentos nucleares são exclusivamente para fins de natureza civil.
E a terceira questão do Irão tem a ver com a sua relação com a Federação Russa. A Federação Russa encontrou no Irão a fábrica de equipamento barato, tecnologicamente avançado, para substituir as capacidades da Federação Russa enquanto ela não desenvolve completamente toda a sua capacidade militar e industrial. O Irão, como a Coreia do Norte, preencheram este vazio de fornecer à Federação Russa o equipamento militar enquanto ela não consegue produzir este tipo de equipamento. E, portanto, o Irão também ganhou poder no sistema internacional. Como a Federação Russa está dependente da Coreia do Norte e do Irão para prosseguir a sua guerra contra a Ucrânia, deu relevo internacional a estes dois atores.

Vladimir Putin tem sido uma figura central na política russa e na condução desta guerra. Referiu recentemente que considera que o Donbass não é o verdadeiro objetivo de guerra russo. Dito isto, quais são, na sua opinião, os objetivos estratégicos de Putin com a invasão da Ucrânia?

Esta é uma pergunta que nos leva a muitas outras questões de natureza lateral, mas todas elas se encontram num modelo de desenvolvimento imperial da Federação Russa.
As palavras de Putin ao considerar que o fim da Guerra Fria e a dissolução da União Soviética foram o maior desastre geopolítico, do século XX, enquadram-se exatamente nesta perspetiva de que a Federação Russa saiu perdedora da Guerra Fria. A dissolução da União Soviética foi causada pela Federação Russa. Isto é, a iniciativa de dissolver a União Soviética não foi, como Putin pretende fazer passar, uma obra do Ocidente Maléfico. Foi uma iniciativa tomada pelo presidente russo da altura juntamente com os presidentes da Bielorrússia e da Ucrânia , numa reunião que decorreu na Bielorrússia e na qual declararam o fim da União Soviética.
Não há nada mais perigoso para o início de uma guerra do que começar a questionar outra vez fronteiras. Porque, como nós sabemos, as fronteiras foram, na maioria dos países, traçadas de acordo com os poderes vigentes à época. Como os poderes se alteram ao longo das épocas, se estamos sempre a rever fronteiras, estamos sempre em guerra. A Federação Russa entendeu que se conseguisse convencer a comunidade internacional de que a Ucrânia nunca existiu, que é apenas uma criação de natureza administrativa, que os ucranianos não existem enquanto povo, que não são mais do que russos que viviam naqueles territórios historicamente da Rússia, que isto poderia ser aceite pela comunidade internacional.
A Rússia está a sacrificar o seu futuro e a sua integração no sistema internacional através de uma ação de natureza militar que não terá sucesso. E como não terá sucesso não significa que, do ponto de vista militar, não consiga conquistar a Ucrânia. Significa que vai permanecer na Ucrânia como? Como força ocupante? Mobilizando todos os anos 500 mil homens para impor a ordem a 40 milhões de ucranianos? Isto é, qual é o futuro que nós vemos como sendo um sucesso para a Federação Russa? Não existe. E não existe também do ponto de vista económico.
É uma absoluta miragem para enganar a sociedade russa, mostrar que foi capaz de transferir tudo aquilo que eram as suas relações económicas do Ocidente para o Oriente. O Oriente compra a preços de saldo aquilo que é a energia da Federação Russa. A Europa, sim, era o grande cliente estratégico da Federação Russa. A Rússia perdeu o seu mercado e as suas relações com a Europa e não as vai ganhar no Médio Oriente, porque o Médio Oriente tem outras preocupações e nenhuma delas passa pela Federação Russa.

©Tiago Araújo
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Muito se tem especulado sobre os interesses da Rússia na plataforma marítima portuguesa. O que tem a dizer sobre este assunto? Estamos de facto perante uma ameaça iminente?

A Federação Russa tornou-se num dos grandes agentes internacionais de matérias-primas. Promoveu, nos últimos três anos, sete golpes de Estado em África. Nenhum desses golpes foi para o Ocidente, e todos esses golpes tiveram por origem a influência da Federação Russa através de organizações que criou como o Grupo Wagner ou através daquilo que são o controlo de muitas elites africanas pela Federação Russa, apostada numa guerra de recursos. As guerras de longo prazo começam em primeiro lugar nas frentes de batalha. Numa segunda fase passam para os depósitos, para o que existe em depósito. Numa terceira fase passam para os depósitos dos aliados. E numa quarta fase passam para a produção industrial. Mas para que essa produção industrial seja possível é preciso recursos e a Federação Russa está apostada em ser um gestor de recursos a nível mundial. E, portanto, quem tem recursos a proteger tem que estar atento.
É claro que uma ameaça direta da Federação Russa ao território nacional não me parece credível, pelo menos a curto prazo. Mas a guerra não se faz apenas por ameaças de natureza militar direta. Faz-se também de formas híbridas, condicionando aquilo que são as nossas liberdades de ação estratégica, os nossos acessos aos nossos recursos, o controle de setores críticos como os cabos submarinos transatlânticos. A guerra pode efetuar-se em múltiplas dimensões.
E, portanto, se não parece credível que haja uma ameaça direta da Federação Russa ao território nacional, certamente que aos nossos interesses, não perderá a oportunidade.

Em relação à invasão da Rússia na Ucrânia, a NATO e a União Europeia não estavam preparadas ou não acreditavam que essa invasão pudesse acontecer?

Bom, nós não estávamos preparados para isso. Nós, Ocidente, tínhamos de alguma maneira interiorizado que o futuro das guerras já não era um futuro de uma guerra de natureza convencional. Que aquilo que nós faríamos eram sobretudo ações de manutenção de paz. As ações de manutenção de paz precisam de forças muito ligeiras, com equipamento militar muito ligeiro, não precisam de artilharia. Nós não vamos para operações de manutenção de paz com sistemas de artilharia. Ou seja, a indústria foi condicionada por esta visão de que, afinal, a guerra convencional era uma coisa do passado, que se não tornaria a repetir, e que, portanto, o que era importante era transformar a indústria que antigamente produzia granadas de artilharia numa indústria que produzisse componentes eólicas, para a transformação verde, etc.
Na altura em que a NATO foi surpreendida por esta invasão da Federação Russa, ela não estava preparada, nem do ponto de vista militar para reagir, nem estava preparada do ponto de vista político para reagir. A NATO é uma organização de natureza político-militar. Tem uma componente militar, certamente credível, mas tem também, depois, um processo de decisão que é eminentemente político. A NATO só atua por consenso. Ora, à medida que a NATO se foi alargando do ponto de vista do número dos seus atores e da localização geográfica dos seus atores, também as divergências da perspetivação do futuro político, daquilo que deveria ser a Europa e a segurança da Europa, se foram tornando mais complexas.
Se a Federação Russa tiver uma vitória na Ucrânia, vai ter duas perceções.
Primeira, o Ocidente, afinal, é incapaz de se defender. E se não foi capaz de defender num monstro geográfico como é a Ucrânia, como é que o vai conseguir fazer nos minúsculos pontos geográficos dos países bálticos? Portanto, as perceções na NATO sobre aquilo que é a ameaça da Federação Russa variam de acordo com a posição geográfica dos vários países. E estão hoje em dia mais divididas, porque existem na NATO aliados que mudaram de campo.
A NATO não tem mecanismos para expulsar um país. Porquê? Porque na altura em que foi construída, este problema foi levantado, este problema chamava-se na altura Itália. E, quando o Tratado de Washington foi assinado, havia uma perspetiva de uma possibilidade de os comunistas chegarem ao poder em Itália. Porque se os comunistas ganharem em Itália, vão certamente afastar-se da NATO por iniciativa própria. Ora, este pensamento que foi válido quando foi da construção da NATO, já não é válido hoje em dia. Por exemplo, a Hungria está claramente apostada numa vitória da Federação Russa na Ucrânia. E porquê? Porque a Hungria é também um império em reconstrução. E o exemplo de Putin é um bom exemplo pela Viktor Orbán. Quando houve a dissolução do Império Austro-Húngaro, houve muitas populações de natureza húngara que ficaram naquilo que é o território atual da Ucrânia. Uma derrota da Ucrânia, com o apoio de Orbán a Vladimir Putin, terá uma recompensa, que será receberem aquele território ucraniano e assim satisfazer o seu desejo imperial.

A NATO tem capacidade militar para enfrentar a Federação Russa? Seria possível defender a população de um país pertencente à NATO e expulsar essa invasão russa?

Nós não podemos comparar o poder convencional da Federação Russa com o poder convencional da NATO. O poder convencional da NATO é um poder enorme quando comparado com o poder da Federação Russa. A Federação Russa tem hoje em dia um exército decrépito, porque perdeu aquilo que eram os seus melhores quadros, que foram mortos na guerra, perdeu os seus equipamentos sofisticados e teve que ir aos depósitos buscar equipamento muito antigo e o seu poder aéreo não se pode comparar ao poder aéreo da NATO. Isto é, do ponto de vista de uma guerra convencional, a Federação Russa não tem hipótese nenhuma de vencer a NATO. Exceto se a NATO entrar em território russo. Se a NATO invadir o território da Federação Russa as dificuldades serão imensas. Mas se a Federação Russa enfrentar fora do seu território a NATO, as dificuldades e o poder da Federação Russa, do ponto de vista de uma guerra convencional, são muito limitadas.

A Ucrânia garante que não vai ceder qualquer parte do território numa negociação com a Rússia. Considerando o estado atual do conflito, quais são os possíveis cenários de resolução a curto e médio prazo? Existe alguma janela de oportunidade para negociações de paz que possam ser exploradas, e que papel a diplomacia internacional deve desempenhar neste processo?

Há 4 formas de terminar qualquer guerra. Primeiro, uma guerra é feita com objetivos de natureza política. Não são objetivos de natureza militar. O militar é apenas o instrumental para se obterem resultados de natureza política.
A segunda forma de terminar uma guerra é através de uma vitória de natureza militar. Neste momento, parece muito improvável que as forças consigam gerar potencial militar suficiente para desequilibrar a curto prazo aquilo que são os enfrentamentos. Mas, a longo prazo, isso é possível.
A terceira forma é por esgotamento de recursos. As duas partes comprometem todos os seus recursos e, a certa altura, já não há recursos para fazer a guerra.
E depois há uma quarta forma de terminar uma guerra. Por mediação. Isto é, surge um mediador internacional que diz, eu estou disponível para mediar o final deste conflito. As mediações podem ser feitas por dois tipos de atores: por atores que não têm nada a ver com este conflito (podem ser organizações religiosas, um país neutral, como a Suíça, atores até de pequena dimensão), que criam as condições para os atores principais, os contendores, poderem chegar a um acordo. Mas isso só acontece quando estão cansados de guerra e estão à procura de uma saída feliz. Quando não estão cansados da guerra, o mediador tem que ter capacidade de influência sobre cada um dos intervenientes.
Portanto, vai haver paz? Neste momento não, não vai haver paz. Nenhum dos atores ainda entendeu que não tem capacidade, do ponto de vista militar, para forçar uma solução que lhe seja útil aos seus interesses. E, portanto, nós neste momento não vamos ter paz. Quem será o mediador deste conflito? Os Estados Unidos. Os Estados Unidos serão os mediadores deste conflito. Porquê? Porque a Federação Russa não quer apenas a Ucrânia. A Federação Russa quer garantir um sistema de segurança, através de Estados-tampão, desmilitarizados, que garantam o isolamento da Federação Russa em relação às capacidades da NATO.
A taxa de natalidade na Federação Russa é extraordinariamente baixa. Está muito longe de garantir uma estabilidade populacional. E, por outro lado, do ponto de vista económico, também já não consegue concorrer com aquilo que são as grandes economias ocidentais. Ela está ao nível das grandes economias europeias. E, portanto, um país que é um país gigante do ponto de vista territorial, tem muitas fragilidades do ponto de vista demográfico e do ponto de vista económico.
A Rússia precisa de paz. Porquê?
Por uma razão que nós raramente discutimos. Porque a Federação Russa está em perigo.

Quais foram os momentos mais marcantes e maiores desafios da sua carreira, desde o início de sua formação até aos cargos de liderança que assumiu? De que forma esses momentos moldaram a sua visão sobre a segurança e a geopolítica?

Em 1977, tomei a mais importante decisão da minha vida. Na altura, eu tinha acabado o liceu e tinha que optar por uma sequência de natureza universitária. Concorri, na altura, a duas instituições: à Academia Militar e ao Instituto Superior Técnico. Fui admitido nas duas e tive que optar por uma e optei pela a carreira militar. Essa foi, de longe, a mais importante de todas as decisões que tomei na minha vida. E depois de tantos anos, também posso dizer que foi, de longe, a mais acertada. Não há vida mais bonita do que a carreira militar, porque significa abdicar de muitas coisas próprias para colocarmos o nosso esforço, o nosso conhecimento e a nossa proficiência ao serviço dos outros. É isto que distingue um militar, para ele em primeiro lugar estão os outros e, naturalmente, está o país e o seu povo. Ao longo da minha carreira militar, o Exército transformou-me enquanto pessoa. Não apenas naquilo que são aspectos de natureza visual, como o corte de cabelo, mas transformou-nos, enquanto pessoa, naquilo que é a forma como nós olhamos para a sociedade. Como nós olhamos para o papel que devemos ter ao serviço dos outros. E, sobretudo, na importância que temos que dar aos valores. Nós estamos ao serviço público, é para isso que existimos e é para isso que nos pagam. E esse serviço público desenvolve-se em múltiplas áreas, porque as Forças Armadas contemplam um conjunto muitíssimo alargado de missões, quer no apoio à proteção civil, em tempos de paz, quer no apoio às catástrofes, como as pandemias, como recentemente foi feito, quer naquilo que são os aspectos mais ligados à nossa diplomacia externa, através de ações de cooperação com outros países, quer naquilo que é fundamental, que é sermos capazes de combater. Nós não podemos disfarçar, através de outras missões, aquilo que é a nossa missão principal: estarmos prontos para combater, a partir de amanhã, se assim for necessário. E, portanto, a carreira militar acaba por nos proporcionar um trajeto de natureza profissional que engloba muitíssimas áreas. Algumas dessas áreas foram fundamentais para a minha formação pessoal, enquanto pessoa. Os trabalhos que tive na NATO foram muitíssimo interessantes. Eu fui oficial da Intelligence, num Quartel-General da NATO, que havia em Madrid. Ter trabalhado na NATO durante 3 anos, na área da Intelligence, foi, certamente, uma das maiores regalias, do ponto de vista do conhecimento, que alguém pode ter nas oportunidades da sua vida. Outra área muito importante, é todo o percurso de comando que temos que ir fazendo ao longo da carreira militar. Por exemplo, se eu precisar, de um CEO para a TAP, eu vou buscá-lo ao mercado. Ele nunca carregou bagagens, nunca verificou os passaportes das pessoas, nunca trabalhou nas companhias aéreas, nunca emitiu bilhetes ou vouchers. Ele é contratado diretamente para CEO. Mas, se nós quisermos um General, temos que o incorporar 40 anos atrás na Academia Militar. Isto é, só chega a General depois de ter feito um percurso em todos os postos e em todas as condições. Isto é extraordinário, porque significa que todas as ações de comando que vamos tendo, já houve um tempo da vida em que nós fomos os sujeitos dessas ações de comando. E, portanto, temos a experiência de todos os postos e de todas as funções. Não é possível criar um General e buscá-lo diretamente, é preciso formá-lo desde o início.
Outra questão, que também me parece relevante, foi o conjunto de instrumentos de conhecimento que a carreira militar nos vai proporcionando. Nós temos frequentemente em curso, ao longo da nossa carreira militar, cursos quer de especialização, onde ganhamos conhecimentos específicos numa determinada área, quer cursos de promoção, em que nós, para ascendermos a um determinado posto, somos obrigados a frequentar um determinado curso com os conhecimentos adequados para o desempenho desse posto. Nós estamos permanentemente em formação nas Forças Armadas. Temos que estar sempre disponíveis para aprender. E na carreira militar, como eu digo, tanto estamos sentados do lado dos alunos, como estamos sentados do lado dos professores e vamos alternando ao longo da nossa vida toda.

©Tiago Araújo
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Tendo uma formação sólida e vasta experiência no terreno, como é que a sua passagem por diferentes missões internacionais influenciou a sua perspetiva sobre os conflitos globais? Que lições retirou dessas experiências que considera fundamentais para a compreensão das dinâmicas de segurança atuais?

Eu comecei muito cedo a trabalhar com a NATO, porque uma das minhas áreas iniciais de especialização era a guerra eletrónica e eu era o representante do exército nos grupos de trabalho da NATO para a guerra eletrónica. Isso permitiu-me começar a conhecer a NATO desde muito jovem. Para os primeiros grupos de trabalho eu seria ainda, provavelmente, Major, quando comecei nessa área. Depois, houve aquela minha passagem por Madrid, num Quartel-General da NATO. Participei em muitos exercícios e no dia 11 de setembro estava em serviço na Intelligence, no Quartel-General da NATO, em Madrid. Foi um momento de grande transformação da própria organização, porque, pela primeira vez, teve que invocar o artigo 5º e, pela primeira vez, as tropas da NATO entraram em missões extraordinariamente complexas, com missões no terreno, no Afeganistão. A área político-estratégica chegou na altura em que eu fui nomeado Subdiretor-Geral de Política-Defesa Nacional e em que passou a ser frequente ir para Bruxelas, participar em reuniões no âmbito da defesa, quer da NATO, quer da União Europeia. Isso deu, certamente, uma visão muito precisa daquilo que são os grandes desafios, que se colocam a estas organizações, a forma como elas reagem àquilo que são os incidentes da evolução geopolítica mundial, a forma como elas se organizam para responder a estes desafios e, sobretudo, os enormes desafios que são a geração de consensos no interior de organizações que, pela sua dimensão, são, hoje em dia, também, um dos desafios que têm organizações já muito diversas.

No seu livro, “O Domínio do Poder”, faz uma análise detalhada do Sistema Nuclear e do Ciberespaço. Na era digital em que vivemos, como avalia a relação entre o poder nuclear tradicional e as novas formas de poder derivadas do ciberespaço? Quais são os maiores desafios e riscos que as democracias liberais enfrentam para tentar equilibrar essas duas dimensões de poder?

Vamos começar pela área nuclear. Durante a Guerra Fria havia um entendimento global entre as duas superpotências, Estados Unidos e a União Soviética, sobre como era gerido o nuclear. Foram elaborados imensos tratados, quanto à localização geográfica, número de vetores que podiam ser utilizados, até ao número de ogivas nucleares que poderiam estar operacionais. Houve um conjunto de entendimento muito vasto nesta área. Caíram quase todos esses tratados, entretanto. Porquê?
Porque deixou de haver duas superpotências.
Os tratados tinham um objetivo, que era limitar que outros atores aparecessem na cena internacional, que pudessem disputar a hegemonia dos Estados Unidos e da União Soviética no vetor nuclear. Portanto, os tratados de não-proliferação, visavam que os dois principais atores da Guerra Fria mantivessem a sua superioridade. Como, entretanto, se tinha alcançado uma determinada paridade nuclear, isto é, nenhum tinha uma vantagem clara sobre o outro, houve a dissuasão nuclear, que nos trouxe, de alguma maneira, duas coisas. Em primeiro lugar, a paz nuclear do mundo. Em segundo lugar, deixou-se cair o vetor nuclear como um fator desequilibrador nos conflitos e regressámos às guerras de natureza tradicional e convencional.
Hoje em dia há muito mais potências nucleares, mas os Estados Unidos e a Federação Russa continuam a ser os grandes detentores do nuclear.
Isto tem uma importância. É que a China ainda não chegou a este patamar. A China não assinou nenhuma autorização à Federação Russa para a utilização do vetor nuclear, porque não é uma potência nuclear à escala dos outros.
Outra questão tem a ver com o ciberespaço. Enquanto houve um bloqueio na utilização de alguns instrumentos de poder, como o poder nuclear, libertaram-se outros espaços de conflito onde as guerras se podem fazer de forma mais sub-repetícia. E o ciberespaço é o instrumento adequado para isso. A guerra no ciberespaço é uma guerra diária e quem trabalha nestas áreas da cibersegurança sabe que todos os dias caem ameaças nos nossos sistemas com tentativas de intrusão, com bloqueios de acesso, com tentativas de extração de dados, etc.
A ciberguerra desenvolve-se neste ambiente da guerra híbrida, porque tem imensas vantagens sobre uma guerra convencional. A principal vantagem é que ela pode ser feita individualmente, ou por um grupo de pessoas e produzir efeitos devastadores a uma escala nacional ou global.
Não é necessário que um Estado tome diretamente a responsabilidade por estes ataques. Podem encarregar pessoas individualmente, de os poder fazer e, desta maneira, conseguir permanecer na sombra.
Mas sim, hoje em dia, com as tecnologias digitais, abriram-se novos espaços para uma conflitualidade dentro daquilo que chamamos de guerra híbrida.

A guerra cibernética representa uma nova fronteira nos conflitos modernos. Na sua opinião, quais são as principais vulnerabilidades que as nações enfrentam neste domínio? Que medidas podem ser tomadas para fortalecer a cibersegurança e proteger infraestruturas críticas?

Há duas dimensões aqui na guerra no domínio cibernético. A primeira tem a ver com a capacidade que nós temos de provocar o caos em sistemas críticos. Os sistemas críticos são operados ou controlados por sistemas sobre os quais houve um investimento muito diminuto do ponto de vista da segurança. São muitas vezes equipamentos antigos que ainda controlam sistemas muito críticos. E esses equipamentos estão muito vulneráveis a uma interferência externa. Por outro lado, não há muitos sistemas nesta área. Quando compro um sistema para gerir uma central nuclear, eu conheço os passos de controlo, eu sei quem fabricou os componentes, eu posso saber quem desenhou o software que o controla, etc.
A segunda fase é aquela que vivemos hoje em dia, é a fase dos deepfakes, portanto, dos falsos profundos, em que as pessoas aparecem a dizer coisas que nunca disseram e em que nós temos muita dificuldade em verificar se aquele vídeo foi ou não foi adulterado. Isto tem uma consequência tremenda na confiança das pessoas sobre a classe política. As pessoas passam a desconfiar da classe política porque começam a ver políticos a dizerem coisas e nós não sabemos se aquilo foi verdadeiramente dito, tal é o grau de manipulação das imagens.
A terceira fase é ainda mais difícil e ainda mais dramática. Hoje em dia, com a inteligência artificial, as notícias não existem, são fabricadas e são difundidas aos bilhões para os utilizadores das redes sociais. Não houve nenhuma pessoa a produzir aquela notícia. Foi um algoritmo, foi aquilo que nós chamamos um bot, que se autorreplica, que se torna viral nas redes sociais. Nós agora já não estamos a lidar com pessoas que nos querem mal, estamos a lidar com algoritmos que foram programados para nos fazerem mal.

A União Europeia tem um papel crescente na política de defesa e segurança global. Como avalia a evolução deste papel e quais são os principais desafios que a UE enfrenta nesta área? Que iniciativas podem fortalecer a posição da UE como ator global na segurança?

A União Europeia era um poder, mas era um poder de natureza económica e, portanto, anda agora claramente a correr atrás do prejuízo. Nós tínhamos energia barata que vinha da Rússia e segurança barata que vinha dos Estados Unidos. Essa segurança barata é uma noção que, pura e simplesmente, não existe. Nada garante, em face daquilo que são as dinâmicas mundiais, que os Estados Unidos estejam permanentemente disponíveis para acudir à Europa. Porquê? Porque a Europa não merece. Porque a Europa, se não investe em defesa, não pode esperar que venha um soldado americano enviado dos Estados Unidos para socorrer a Europa. Vejamos, a Europa não tem sistemas de mobilização em muitos dos seus países. Nunca praticou a mobilização, não me lembro do último exercício de mobilização que tenha sido feito. Não temos sistemas de conscrição obrigatória. Temos as Forças Armadas em todos os países reduzidos a mínimos, que já nem cumprem aquilo que são as nossas obrigações internacionais.
E no meio disto tudo, o que todos nós queremos na Europa é que os Estados Unidos mandem os seus soldados morrer para defender a Europa. A Europa tem que estar pronta, pela sua diversidade, a que nem todos estaremos disponíveis, ou nem todos os países estarão disponíveis para uma determinada ação de natureza militar. O que nós temos que ter é a capacidade de formar coligações de vontade. Aqueles países que entendem que há ali um interesse muito importante a defender e que já têm os tais equipamentos de defesa comuns, podem ser eles a participar ativamente nas coligações de vontade enquanto os outros fazem aquilo que são os outros serviços necessários para a condução de uma guerra. É esta a Europa da defesa.

A definição da política de defesa é um processo complexo e estratégico. Quais são as prioridades que o Governo português deve ter em mente ao definir esta política? Como as Forças Armadas podem contribuir para a segurança e a estabilidade nacional e internacional?

Quando nós olhamos para Portugal e para os seus interesses, temos que começar por olhar para a sua geografia. A geografia mostra-nos três ou quatro coisas que são interessantes e que devem constituir o nosso racional estratégico.
Primeiro, o nosso país é um país composto por uma parte continental e por uma parte com dois arquipélagos distantes no meio do Atlântico. Portanto, o Atlântico é para nós o mar da ligação entre as nossas parcelas territoriais. Temos que manter uma capacidade de observação sobre aquilo que se passa no Atlântico.
Segundo, o aspecto que deriva também desta, é que a segurança da nossa integridade territorial depende da potência marítima que controla o Atlântico. Portanto, o nosso aliado fundamental são os Estados Unidos da América, porque são a potência que controla o Atlântico.
Terceiro, a nossa parte continental está ancorada na Europa e nós sentimos-nos europeus. Portanto, a Europa faz parte também daquilo que é a nossa essência enquanto portugueses.
Depois, o quarto aspecto não tem a ver com a geografia, mas tem a ver com a nossa história. Nós criámos especiais ligações de amizade com muitos países à volta do mundo.

As Forças Armadas Portuguesas têm um papel importante na defesa europeia. Como avalia o futuro das Forças Armadas Portuguesas neste contexto? Que reformas e adaptações são necessárias para enfrentar os desafios de segurança do futuro?

Nós andamos há muito tempo a fugir do investimento nas Forças Armadas. Há razões de natureza política para o podermos fazer. Primeiro, a razão de natureza política foi um certo convencimento que se abateu sobre a sociedade portuguesa de que nós estamos isentos e afastados dos riscos globais da segurança que, à escala planetária, se desenvolve.
Segundo aspeto, o investimento que não é feito em segurança num ano tem que ser feito a dobrar no ano seguinte. Não posso copiar um orçamento de Estado na área da segurança, de um ano em que não houve segurança, para o replicar ao longo de um conjunto de anos seguidos.
Algum dia temos que quebrar este ciclo do “cut and paste” dos orçamentos da defesa em relação aos anos anteriores. Temos que dar um salto qualitativo enorme nisto. Porque a segurança hoje é coletiva, se nós não formos capazes de assegurar a soberania de um determinado espaço territorial, alguém o vem fazer por nós. Não é possível continuarmos neste ritmo sem que o final seja a catástrofe.

O maior desafio para a segurança global nos próximos 10 anos será certamente complexo. Que estratégias e políticas podem ser adotadas para enfrentar este desafio de forma eficaz?

Há três questões que hoje em dia nos devem preocupar quando olhamos para o futuro.
A primeira tem a ver com o empoderamento de atores não estatais. De acordo com as declarações do próprio Elon Musk, o não ataque de drones à Crimeia e a Sebastopol, numa fase muito inicial do conflito, que poderia ter tido consequências devastadoras para a frota russa do Mar Negro, não se produziu porque Elon Musk não deu autorização a que o sistema Starlink pudesse ser usado. Isto é, hoje em dia, existem muito mais atores do que os Estados que têm capacidade de decidir o futuro das guerras. Esta transferência de poder é feita à custa do poder dos Estados. A segunda tem a ver com a dissociação dos Estados Unidos com a Europa. Um país europeu não tem escala ao nível mundial, nem do ponto de vista militar, nem demográfico, nem económico, para ser um ator relevante. O que nos torna relevantes é a nossa capacidade de termos consensos, de gerarmos capacidade de atuação comum e termos uma vontade comum para enfrentarmos estes desafios. Esta é uma das grandes questões que se coloca relativamente ao Ocidente. Depois a terceira tem a ver com o desafio da China. É um gigante demográfico, geográfico, económico e muito brevemente será um gigante ator militar. E portanto, isto vai colocar num futuro não muito distante, à prova a nossa vontade de sermos capazes de atuar em conjunto. A China tem uma enorme debilidade, não tem amigos locais. Todos os países que confinam com a China vêm a China como uma ameaça ou no mínimo como um desafio, porque a China está imbuída também de um espírito de natureza imperial e está disponível para utilizar a força para fazer valer esse seu instinto de natureza imperial.
A forma como nós seremos capazes de integrar de um ponto de vista conceptual, eventualmente do ponto de vista de uma organização político-militar, todos estes atores diversos, alguns dos quais, como o Japão e a Coreia, que têm tradicionalmente uma hostilidade natural, uma natureza histórica, mas, em face daquilo que são as ambições da China, temos que ser capazes de construir pontes.
Senão, aquilo que é o espírito imperial que neste momento está a trazer tantas preocupações e tantas desgraças à Europa, em breve estará também na Ásia e todos seremos chamados a participar.

©Tiago Araújo

Agradecimento ao TIVOLI ORIENTE LISBOA HOTEL

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