Grande Entrevista Manuela Aguiar

SECRETÁRIA DE ESTADO DAS COMUNIDADES PORTUGUESAS NO VI GOVERNO CONSTITUCIONAL

Maria Manuela Aguiar Dias Moreira nasceu a 09 de junho de 1942. É licenciada em Direito e os primeiros anos da vida sua vida profissional foram dedicados ao Direito do Trabalho. Foi Secretária de Estado do Trabalho no governo de Mota Pinto. A docência na faculdade foi também uma experiência, quer em Direito da Universidade Católica de Lisboa, quer na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. O ano de 1980 marcou a passagem da área do Trabalho para a Emigração. Grande defensora dos direitos dos emigrantes portugueses, papel que desempenhou tanto como Secretária do Estado das Comunidades Portuguesas, como deputada pela Emigração.

Intervir na política, não estava no seu horizonte. No entanto, tornou-se a primeira mulher do PSD a ocupar um cargo governamental, acabando por perfazer o total de cinco governos, permanecer na Assembleia da República por quase duas décadas e na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa cerca de 14 anos. Hoje, oficialmente afastada da política, quem foi e quem é a Maria Manuela Aguiar?

Julgo que, aos quase oitenta anos, sou ainda muito parecida com o que fui aos oito. Olho pra trás e reconheço-me. Se pudesse recomeçar, mudaria, certamente, algumas das minhas escolhas e decisões, mas não a maneira de agir e reagir aos imprevistos da vida. Disse sempre “sim”, quando me desafiaram para novas tarefas e, por isso, o inesperado foi fazendo parte da minha caminhada, desde que terminei o curso na universidade. Como os antigos portugueses, vi-me a “navegar à bolina”… Não me incomodava a ideia de trocar o certo pelo incerto e era-me difícil dizer a palavra “não”. E assim, me vi em funções diversas, e, a partir de 1978, em Governos e Parlamentos, que nunca haviam feito parte dos meus planos. Fui uma política “involuntária”. Queria ser jornalista ou advogada. Os policiais de Earl S. Gardner e o seu Perry Mason levaram-me aos bancos da Faculdade de Direito de Coimbra, e os meus antigos professores da Faculdade levaram-me para a política, depois do 25 de Abril. Tinha tomado posse como Assistente, na Universidade de Coimbra, no dia 24 de abril de 1974. Não era a primeira experiência neste campo, tinha dado aulas na Católica, em Lisboa, numa cadeira de Sociologia. Nos anos 90, voltei ao ensino, num mestrado de Relações Interculturais, na Universidade Aberta. Três experiências diferentes e esplêndidas. Rejuvenesci entre os jovens, numa relação muito cordial, sem uma só memória menos boa. Para mim, as aulas eram um “brainstorming” convidativo, ia para a Faculdade como quem vai para uma festa. O caso da política não foi comparável, mas, apesar de me sentir menos talhada para a missão, tal como recomendava Sá Carneiro, tratei de combinar o seu lado lúdico com o lado ético, e fui encontrando ocasião para fazer aprendizagens e para lutar pelas minhas causas.  Já era inconformista e contestatária, aos sete ou oito anos, sempre à espreita de um ensejo para investir contra injustiças, onde via vítimas, fosse eu própria, ou outrem, ou um grupo com o qual tinha afinidades. Numa família conservadora, as mulheres imperavam e impunham regras antigas (as avós mais do que a mãe), recusava-me a aceitar que fosse interdito às meninas, o que era elogiado nos rapazes – proezas desportivas, saltos, escalada de árvores e de montes, hóquei, ou futebol de rua… procurava dar prova das capacidades femininas nos vários domínios, a começar pelos proibidos. Uma feminista nata! Não era particularmente habilidosa, mas compensava a falta de talento com imensa energia e não fazia má figura… O meio familiar, apesar do conservadorismo, acabou por me ser favorável. Cresci a ouvir debates políticos, num ambiente estimulante, em que ninguém cedia ideologicamente e ninguém se zangava. Aprendi que há gente boa em todos os quadrantes e, talvez, por isso, fiz amizades, tanto ou mais entre os opostos do que entre correligionários. E o meu feminismo nunca foi contra os homens, nem podia ser. No meu pai, no meu avô, em alguns professores e colegas, e até em alguns políticos, encontrei os aliados, que acreditavam mais em mim do que eu própria. E casei com um colega de curso, que se proclamava feminista. Um posterior divórcio, tranquilo, não prejudicou as afinidades ideológicas, nem as relações cordiais e tornou-me uma pioneira – a primeira mulher divorciada na família.

Os primeiros anos da sua vida profissional foram dedicados ao Direito do Trabalho, uma área que sempre lhe interessou bastante. Foi Secretária de Estado do Trabalho no governo de Mota Pinto, mas foi o ano de 1980 que marcou a passagem da área do Trabalho para a Emigração. Foi aqui que descobriu um outro Portugal, recriado pelos portugueses no estrangeiro?

Antes de partir para uma longa incursão na política, que durou mais de trinta e três anos, sentia-me perfeitamente realizada como jurista de gabinete. Fui Assistente de um Centro de Estudos, Assistente em três Faculdades e Assessora do Provedor de Justiça. A Provedoria era ao lado do Nimas, nesse ou noutro cinema próximo, ia às sessões das seis da tarde, quase todos os dias. Havia tempo para tudo, para ler e ouvir música, fins de semana em Espinho, com passeios de bicicleta e mergulhos nas ondas de um mar gelado, corridas com a minhas cadelinha, uma “serra de Aires”, comprada, por impulso e compaixão, a um vendedor de jornais à saída de um café dos Restauradores, anos mais tarde, uma Yorkshire terrier, cheia de “pedigree”, que me foi oferecida em Connecticut. Os meus chefes (sempre homens, sinal dos tempos…) foram, todos, pessoas admiráveis, humana e profissionalmente. E os colegas também. Em funções de investigação e de consultadoria, entre pares, não havendo lugar a promoções, a tendência é para o bom entendimento geral. Fiz vários cursos e estágios internacionais, como bolseira da OIT (do Instituto de Estudos do Trabalho), da Fundação Gulbenkian, das Nações Unidas, da OCDE. O que mais poderia desejar? Não certamente o envolvimento nas intermináveis querelas da vida partidária…Vi-me envolvida na política pela razão mais improvável: porque não tinha filiação partidária, convidada para um Governo de independentes, de iniciativa presidencial pelo Doutor Mota Pinto. O Primeiro-Ministro, de quem fora assistente, em Coimbra invocou o meu feminismo – se recusasse o cargo, tornava-me responsável pela ausência feminina no seu governo – eu que tanto protestava contra a marginalização das mulheres na “res publica”…  De qualquer modo, seria uma experiência breve, até às eleições do outono do ano seguinte. Fui Secretária de Estado do Trabalho, o que, na altura, causou espanto, até em meios europeus, porque ainda era pelouro considerado “impróprio para mulheres”.  Chegaram a questionar-me:” Secretária de Estado do Trabalho Feminino, não é?” E, quando eu negava esse afunilamento de responsabilidades, exclamavam:” O quê? A negociar com sindicatos?” Na verdade, nesse capítulo, ser mulher  não complicou nada, em tempo de grandes afrontamentos que passarem pelo Ministério do Trabalho, no auge da luta contra a unicidade sindical, entre muitas greves e até uma requisição civil. Um Governo de viragem, com um Primeiro Ministro muito corajoso e muito firme. Secundá-lo não foi difícil. Gosto de contraditório, como gosto de chegar aos consensos possíveis, e ali treinei, abundantemente, as duas vertentes. Nunca tinha chefiado nada, nem ninguém, mas conhecia a “casa” e a legislação e rodeei-me de esplêndidos colaboradores. Poucos, mas experientes. A composição dos gabinetes é crucial. Fui muito seletiva, escolhendo, de preferência, quem soubesse tanto ou mais do que eu, e respeitando, como é óbvio, as regras da paridade… Nos serviços, consegui nomear as primeiras mulheres Inspetoras do Trabalho e a primeira mulher a chefiar uma Delegação do Ministério. E, quando, por acaso, já o mandato ía a meios, encontrei no fundo de uma gaveta um esboço de diploma para o combate à discriminação feminina, constituí, de imediato, um Grupo de Trabalho para aprontar urgentemente uma Proposta de Lei. Convidei, para presidir, um jovem colega da Provedoria da Justiça, que considerava dinâmico e competentíssimo, o Dr. João Caupers, hoje Presidente do Tribunal Constitucional. Assim nasceu a CITE, a Comissão para a Igualdade no Trabalho e Emprego, inspirada no Ombudsman sueco para a Igualdade, que,  ao fim de 42 anos, ainda está em funcionamento.  Finda essa curta e excitante aventura, regressei à Provedoria de Justiça, com o Dr. José Magalhães Godinho, era, como fora com o primeiro Provedor, o Coronel Costa Braz, humanamente, o melhor serviço da nossa Administração Pública. Estava de volta às tertúlias de café, aos estádios de futebol, às matinés de cinema, mas por poucos meses… No início de janeiro de 1980, um telefonema do Primeiro-Ministro Sá Carneiro, que não conhecia pessoalmente, embora o admirasse imenso, iria alterar a minha plácida rotina, desta vez, sem regresso ao remanso de um escritório. Na hora do balanço final, concluo que valeu a pena, pela descoberta do “outro Portugal”  como diz, e dos mundos de outras migrações, pelas pessoas com quem me cruzei, pelos círculos em que entrei, e pelas terras que percorri, por dever de ofício. Foi um trabalho a que tomei gosto e que ainda não consegui deixar, muito anos depois de ter deixado o parlamento. O que me moveu e move, e eu adoro o movimento, é norteado pelo mesmo espírito, que nunca foi, essencialmente, político-partidário. Não quero, com isso, desmerecer  o papel vital dos partidos numa democracia, nem a necessidade de as mulheres intervirem no seu interior, mas reconheço falta de vocação e paciência para tal incumbência – outras a vão tomando em mãos, mas, infelizmente, ainda muito singram nos seus meandros. A mim, o que mais me fascinava era a vida nesse espaço extraterritorial de presença e de cultura a que chamamos comunidades portuguesas – pura sociedade civil, que nada, ou muito pouco, deve aos governos! Comunidades organizadas, coesas e, por isso, capazes de preservar a herança portuguesa de geração em geração, ou seja de transformar o êxodo migratório em Diáspora! Não há no nosso país, clara consciência desta realidade. O percurso individual (ou familiar) dos emigrantes, o seu êxito, multiplicado por milhões, é cada vez mais referenciado, vai entrando no discurso político, mas a afirmação coletiva, através do movimento associativo, de uma fantástica rede de organizações culturais, beneficentes e de solidariedade permanece na sombra. Falam mais de comunidades como mero somatório de portugueses, não como realidade sociológica. O convívio direto com essa realidade, um pouco por todo o lado, deu-me uma perspetiva institucionalista de cooperação, que teve no Conselho das Comunidades o seu instrumento imprescindível. 

Ao longo das décadas foram sendo registados picos migratórios, como o de 60/70. À época a melhoria das condições de via dos que haviam partido contribuía para familiares e amigos verem na fuga para o estrangeiro a única solução de futuro. Hoje, a realidade já é diferente?

Podemos dizer mais: ao longo de séculos!… Na história da nossa emigração, os ciclos sucederam-se, interminavelmente. Havia fases em que o movimento decrescia, mas logo o êxodo recomeçava. Nenhum governo conseguiu estancá-lo, apesar das muitas leis proibitivas ou restritivas com que o tentaram. O século passado começou com um surto que bateu todos os recordes, coincidindo com a modernização dos transportes, a máquina a vapor, a descida de custos de transporte. O pico aconteceu em 1912/1913, para o tradicional destino brasileiro. O segundo pico, também com uma forte proporção de clandestinos, foi o “salto” para além dos Pirinéus. São os mesmos de sempre – trabalhadores rurais em fuga à pobreza extrema, homens jovens cheios de esperança, que seguem a trilha de familiares e vizinhos. Só mudou a geografia…  A Europa, mas igualmente novos países longínquos, de que se fala menos, o Canadá, a Venezuela, a África do Sul.  Nas migrações atuais convive a continuidade com as diferenças. Não terminou a emigração da pobreza, masculina e pouco qualificada -já não determinada pela miséria extrema, mas pelo desemprego ou pelos baixos salários. E há um fenómeno inteiramente novo, a “fuga de talentos”, aqueles que procuram no estrangeiro condições de os valorizar e desenvolver, que não existem no país.

Quem são os emigrantes portugueses de agora e o que os leva a sair do país?

Esta “nova emigração” é formada por jovens altamente qualificados, de ambos os sexos, muitos dos quais se radicam em países onde são verdadeiramente pioneiros, numa dispersão geográfica jamais vista. Há um número crescente de mulheres que partem sozinhas, autonomamente, nesta migração de elites, embora sejam ainda uma minoria, por sinal, inferior à média dos nossos parceiros europeus. Em muitos casos, estes jovens respondem ao chamamento do estrangeiro, de governos e empresas quereconhecem a qualidade do nosso ensino universitário, o valor e a polivalência dos nossos profissionais. Assim, por exemplo, a Inglaterra vem buscar enfermeiros e médicos, a Alemanha, engenheiros… Contudo, embora muito menos visível, a emigração maioritária é, ainda, como disse, a tradicional, de trabalhadores indiferenciados, condenados a partir, enquanto for enorme o fosso salarial que nos separa do resto da Europa. O mesmo é dizer, enquanto o nosso crescimento anual for inferior a 1%, como tem sido desde o início do século XXI. A revolução de 74 deu aos portugueses o direito de emigrar, mas ainda não lhes concedeu, a todos, o direito a não emigrar…

Espalhados por todo o mundo, os emigrantes portugueses, em regra, valorizam mais Portugal do que quem está dentro do país. Podemos afirmar que o que eles fazem pelo país é infinitamente mais do que o que país jamais fez por eles?

É verdade! Visto de longe, o país é maior, maior na saudade, na valorização das suas singularidades, e, sobretudo, na consciência do quanto Portugal se expande e se torna plural na Diáspora. Gosto do que somos, do que me ensinaram que somos, logo a partir das primeiras visitas de “descoberta” às comunidades portuguesas: mais povo e cultura do que território, mais mar do que terra. Pequenos só mesmo dentro das fronteiras… Essas visitas de “reconhecimento” foram intensas na agenda e extensas nas comunidades abrangidas, com o intento de ter a visão do todo e das partes e a possibilidade de estabelecer comparações. Em abril de 1980, um périplo às duas costas dos EUA e do Canadá – vinte dias, mais de vinte cidades – deixou-me a incrível sensação de ter atravessado um oceano para encontrar, do outro lado, o meu país, vivido num sem número de centros culturais, clubes, paróquias, escolas. Um país festivo, com as seus rituais músicas e danças, gastronomia, tertúlias e debates –  infindáveis “sessões de esclarecimento”, que estavam na moda. … Depressa me apercebi de que este mundo fervilhante de acontecimentos e projetos, enraizado numa imensa rede institucional, não existiria se tivesse ficado à espera de um subsídio do Estado para construir os salões de convívio, os campos de jogos, as sedes campestre … E as comunidades portuguesas assim organizadas, conferem a Portugal uma dimensão verdadeiramente universal. É uma dádiva que o Estado nunca poderá solver, mas deve, ao menos, reconhecer. Em 1980/81, a criação de um Conselho das Comunidades de base associativa significou, do meu ponto de vista, o princípio desse reconhecimento. Sem paternalismo, com respeito absoluto pela autonomia institucional das ONG’ s. Um paradigma de democracia participativa, com o qual, de algum modo, a revolução de abril chegou, finalmente, à emigração. Nunca antes um Governo fora ao encontro das comunidades, com essa atitude, a vontade de diálogo para articular apoios e parcerias segundo os projetos das próprias comunidades, não os do Governo. A doutrina de Sá Carneiro….

Compara a emigração ao feminismo, na medida em que são dois grupos algo marginalizados da sociedade. Porquê que a luta pela igualdade de direitos na emigração ainda é, nos dias de hoje, uma pauta em discussão?

É uma pauta em discussão, porque as questões de fundo estão longe da sua resolução. As mulheres, como os estrangeiros, são discriminadas, quando não nas leis, na persistente desigualdade de oportunidades. Lembro-me de dizer, nessa década de oitenta, uma frase que continua atual: “as mulheres são estrangeiras no seu próprio país”. Por essa altura, algures em França, me chamarama atenção para uma afirmação semelhante de  Mitterrand: “as mulheres são os imigrantes do interior”. É praticamente a mesma coisa e, vinda de um homem político, surpreendeu-me por revelar tão clara consciência de ambas as discriminações – a das mulheres e a dos estrangeiros. Para as mulheres podem as leis ser igualitária, que prática não é… E para os estrangeiros nem nas legislações mais progressistas a plena igualdade está adquirida. Veja-se o caso do Canadá, país considerado exemplar, que continua a aplicar aos seus imigrantes a pena de expulsão, em caso de condenação penal, em alguns casos, por delitos menores. A única forma de prevenir essa dupla pena é a naturalização, que facilitamos, desde 1981, com a aceitação da dupla ou múltipla nacionalidade. A minha cruzada pela dupla cidadania, começou a nível interno e continuou no Conselho da Europa, onde, salvo erro,  só em 1996, após um duro debate sul – norte, foi possível revogar a Convenção de 1963, que proibia a dupla cidadania. À Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa levei também a matéria da expulsão de migrantes condenados penalmente, num relatório em que propunha a criação de categorias de “inexpulsáveis” – nomeadamente, os que vivem no país desde crianças, os seus pais, e outros residentes de longa duração. O Relatório e aquelas recomendações foram, naturalmente, polémicas, incluindo dentro do meu grupo político, mas, por fim, votadas e aprovadas pela Assembleia Parlamentar! Quanto às emigrantes portuguesas,  uma curiosa constatação é que, em regra, se aproximam bem mais depressa das metas da igualdade nas sociedades de acolhimento do que no mundo paralelo e muito conservador do nosso associativismo, onde só lentamente vão ascendendo à chefia das associações. Em 1981, no Conselho das Comunidades eleito num colégio associativo, não havia uma única mulher – como reflexo dessa discriminação generalizada… E, ainda hoje, em eleições por sufrágio universal, e com a aplicação da Lei da Paridade, a situação é bastante insatisfatória. No país de acolhimento, pelo contrário, o emprego e a boa integração na sociedade local, deram às emigrantes um estatuto, dentro e fora da família, muito superior ao das mulheres que permaneceram na sua aldeia.

O Governo português deve reconstituir a Secretaria de Estado da Emigração, por forma a dar respostas aos atuais problemas dos emigrantes portugueses?

Sim, no sentido de recuperar serviços e políticas que desapareceram do mapa de preocupações, não necessariamente na designação, que é de somenos importância. Em comparação com a Secretaria de Estado da Emigração, criada em 1974, mas incorporando estruturas preexistentes, a atual Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas tem menos meios materiais e menos quadros. Em 1974, englobava a Direção-Geral da Emigração e o Instituto da Emigração, dotado de autonomia e com uma plêiade de especialistas no domínio das migrações. Em 1980. foi criado o Instituto de Apoio à Emigração e Comunidades Portugueses, resultante da junção daqueles dois departamentos com uma direção unificada, que não somente manteve sua margem de autonomia, como desenvolveu serviços e projetos inovadores, um Centro de Estudos, um Fundo Documental e Iconográfico da Emigração e das Comunidades Portuguesas (primeiro passo para a constituição de um Museu), uma linha editorial,  Delegações Regionais, novas Delegações no estrangeiro. E, “last but not least”, o Conselho das Comunidades. Com estruturas leves e desburocratizadas se prosseguiam e aprofundavam as políticas públicas para a emigração e se iniciavam políticas para a Diáspora, até então esquecida nas preocupações governativas. Hoje resta apenas uma pesada e burocrática Direção Geral de Assuntos Consulares e Comunidades Portuguesas, que, até na designação, denuncia a ordem das suas prioridades… Os Secretários de Estado, por muito bons que sejam, estão, hoje, tremendamente limitados na sua atuação.

A partir de 1974, a primeira coisa que os governos provisórios fizeram foi criar uma Secretaria de Estado da Emigração e reorganizar os serviços para servir os portugueses. No entanto, quando Portugal aderiu à CEE, os serviços de emigração foram desmantelados. Considerou-se, erradamente, que a emigração tinha acabado?

Certíssimo falar de “desmantelamento” de serviços, a partir dos anos noventa. O XI e o XII Governos Constitucionais, (os governos maioritários do Prof Cavaco Silva) manifestaram pouca sensibilidade para as questões sociais da emigração e à Diáspora levaram um discurso retórico. Foi a rutura com a estratégia de Sá Carneiro, que distinguia as políticas públicas para a emigração recente, numa linha de continuidade, mas corrigindo o eurocentrismo que as dominava, desde os anos setenta, das políticas para as Comunidades, para a Diáspora, com gestos inéditos de aproximação às suas grandes instituições. A extinção do Conselho das Comunidades, numa fase de crescente afirmação, deixou um vazio, que viria a ser, mais tarde preenchido, a destruição do Instituto de Apoio à Emigração e Comunidades Portuguesas, revelou-se fatídica porque foi irreversível. O CCP renasceu, no Governo seguinte, como símbolo, que é, de vivência democrática, aliás comum aos nossos parceiros europeus –  a França, a Espanha, a Itália, a Grécia, a Suíça… Estamos de acordo na análise de que a desconstrução das estruturas indispensáveis para a execução de políticas nestes domínios  se ancorou no discurso falacioso de que Portugal, ao entrar na CEE, no “clube dos ricos”,  deixara de ser, “ipso facto”, um país de emigração. Cegueira e presunção, afinal, porque os fluxos migratórios apenas tinham diminuído, e mesmo que tivessem cessado, de repente, mantinham-se no estrangeiro milhões de portugueses, com direito à proteção do Estado. Na visão ufanista daqueles governos, os novos rostos da emigração eram os dos “empresários de sucesso”. Os outros, oficialmente, não existiam… Em 1995, com José Lello na Secretaria de Estado, assistimos ao retorno à realidade, à reconstituição possível das estruturas e das políticas públicas, e ao relançamento do Conselho das Comunidades. Os seus sucessores, independentemente da cor partidária, no essencial, não se desviaram desse pragmático rumo.

Hoje, torna-se imperativo criar uma política virada para os portugueses que emigraram, mas também para todos aqueles que regressam ao seu país de origem?

As políticas públicas de apoio neste campo, devem respeitar a opção de regresso ou de inserção no estrangeiro, livremente decidida por cada cidadão ou por cada família. É um imperativo da Constituição de 1976, que estabeleceu a liberdade de emigração, de partir e de voltar. Antes de 1974, nunca foi verdadeiramente livre a emigração! O Estado controlava as saídas, sacrificando o interesse individual à sua visão do interesse público. Foi consentindo no êxodo imparável, num encadeamento de ciclos, que não podia ou não queria suster, porque precisava das vultosas remessas dos emigrantes, com que equilibrava as contas públicas. Por isso, restringiu sempre, fortemente, a emigração feminina – as mulheres ficavam reféns, dentro de fronteiras, a fim de garantir, anos a fio, a angariação das remessas e, por fim, o regresso dos maridos. Porém, como em Portugal não há fronteiras intransponíveis,  elas foram engrossando os fluxos migratórios, sobretudo, a partir do princípio do século XX. A sua presença contribuiu, de facto, decisivamente, para a boa integração da família do outro lado do mar,  e para o incremento do não retorno, mas deu-nos, em troca, as comunidades de cultura portuguesa, mais valiosas e duradouras do que as efémeras divisas, que se terão esvaído sem deixar um rasto de progresso no país, sem o tirar da cauda da Europa… Foi havendo, em qualquer caso,  uma razoável proporção de regressos, durante a primeira metade de novecentos, com dois gigantescos processos de retorno, radicalmente diferentes, na segunda metade: um devido à descolonização, em 1975/76, súbito e dramático, envolvendo cerca de 800.000 portugueses; o outro, de mais de um milhão de voluntários, foi bem preparado, ao longo das décadas de oitenta e noventa, gradual e, por isso, quase invisível. Ambos, no conjunto, bem-sucedidos, mais, certamente, por méritos dos portugueses, mas com um apoio do Estado ajustado aos diferentes condicionalismos e bastante eficaz. O mesmo não se pode dizer da nova uma nova vaga de retorno de emigrantes da Venezuela, tão brutal quanto foi o de 1975.  Verdadeiros refugiados, que chegam com o que cabe numa mala de viagem. O abandono a que se viram votados, foi, talvez, consequência do desmantelamento de serviços, de que falámos. Conheço casos de jovens luso-venezuelanos, altamente qualificados, que se viram forçados a reemigrar para Espanha e outros países da UE.

E se a política de regresso dos portugueses não for suficiente para refazer o tecido demográfico de Portugal?

É a hipótese mais provável! O pico das migrações de regresso da Europa, sobretudo da Europa, foi atingido em inícios de oitenta, como mostram os estudos dos Professores Manuela Silva e de Sousa Ferreira. Neste século, nem os fluxos de saída são comparáveis aos da segunda metade de novecentos, nem é certo que retornem em idade ativa. Mais pragmático e avisado é apostar, por um lado, na criação de condições para estancar a expatriação de jovens, os mais e os menos qualificados, por outro, no apelo à imigração. E não como recurso a mão de obra barata para alimentar setores onde são miseravelmente explorados, mas para lhes dar, e aos seus filhos, o sentimento de pertença e de esperança, com incentivos à mobilidade social e profissional. Autênticos cidadãos, não cidadãos de segunda…

É defensora da imigração lusófona. De que forma Portugal poderá cativar possíveis imigrantes lusófonos a instalarem-se no nosso país, num momento tão delicado como o que passamos, provocado pela pandemia?

Posso afirmar que não sou, nunca, contra a imigração, venha de onde vier. Contudo, num país como Portugal, sem experiência como sociedade de destino, será, em regra mais fácil acolher e integrar os recém-chegados lusófonos. E estes, por seu lado, preferem Portugal – os brasileiros, tal como os africanos. Contudo, a minha principal razão nem é essa – é a lição histórica do povoamento do Brasil, que fora das capitanias do litoral, foi obra de emigração voluntária, em larga medida clandestina, que se misturava com os naturais, partilhava a sua condição, sem a arrogância dos colonizadores. Penso que nessa particularidade radica a fraternidade luso-brasileira, mais profunda e resistente do que aparenta. É uma interpretação minha, sem base científica, uma crença, que me leva a ter esperança de que o movimento migratório do Brasil e dos Palops, para Portugal, ou vice-versa, produza, agora, no século XXI, os mesmos resultados. Os laços originados nesta convivência são especiais, infungíveis. É hora de os renovar, seja qual for o território disponível… Por isso, defendo a liberdade de circulação no espaço da CPLP, a criação de um estatuto de direitos de “cidadania lusófona”. E, também, a abertura das universidades aos jovens dos PALOPS, os intercâmbios entre as universidades  da lusofonia. Sei que, para já, estou no domínio da utopia, e que é preciso avançar passo a passo…  A 1 de janeiro de 2022, entra em vigor o “Acordo de mobilidade entre Estados Membros da CPLP”, com objetivos ainda modestos. A isenção de vistos, por exemplo, limita-se a passaportes diplomáticos e de serviços, e, mesmo assim, só Portugal, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, e, há poucos dias, a Guiné Bissau, entregaram os instrumentos de ratificação do Acordo. Mas, num eixo bilateral, há o admirável paradigma do estatuto de “cidadania luso-brasileira”, o mais avançado do mundo, em termos de Direito Comparado! Concede aos nacionais de um país residentes no outro a igualdade de direitos civis e um estatuto de direitos políticos que abrange o sufrágio em todas as eleições e a pertença a órgãos de soberania, governo, parlamento, tribunais. Vai muito além do estatuto de “cidadania europeia”, apesar de não abranger o direito à livre circulação de pessoas e bens. E o mais espantoso é que a iniciativa foi dos Constituintes Brasileiros. Votaram essa proposta sem necessidade de prévia negociação e debate, por unanimidade. Portugal precisou de 13 anos e de três revisões constitucionais para corresponder ao gesto dos Constituintes brasileiros. Estive à frente desse inesperadamente polémico processo, que ficou conhecido como “a questão da reciprocidade”, nas revisões constitucionais de 1989 e de 1996. Não desanimei… Em 2001, finalmente, conseguimos o consenso para a dação da reciprocidade, com dois aliados de peso contra as últimas barreiras do nacionalismo tacanho: Mário Soares, que forçou o voto favorável do PS, e Durão Barroso, que, pelo PSD, lhe deu absoluta prioridade, numa revisão pontual e muito seletiva. Os imigrantes, nomeadamente os do mundo lusófono, virão para Portugal, se lhes dermos lugar na nossa sociedade, com ou sem pandemia!

Os cidadãos imigrantes lusófonos têm conflitos diários com situações básicas de direitos do consumidor e, sobretudo, no processo de legalização. Na sua opinião, ainda há falta de apoio aos que chegam ao nosso país?

Considero paradoxal não sermos capazes de lhes facilitar a legalização e as condições de integração, quando tanto necessitamos do seu contributo. Não faz sentido… O SEF, e outras forças policiais parecem mais focados em perseguir quem procura trabalho honesto no país, do que em agilizar os dossiers da legalização. O assassinato de um candidato à imigração às mãos do SEF, um homem bom e inocente, condenou este serviço à extinção, mas não basta extinguir o SEF e por em seu lugar gente com a mesma mentalidade… É urgente, sim, coordenar a ação das polícias com a dos Altos Comissariados para a Igualdade, para que o Estado não seja e pareça uma espécie de Dr Jekyll e Mr Hyde. Uma coisa é perseguir redes de tráfico de pessoas, outra é perseguir as suas vítimas… E se queremos que a imigração seja solução para o problema demográfico a longo prazo, depois de ser, no imediato, solução para o mercado de emprego, precisamos de políticas que não encerrem os imigrantes em guetos, no patamar de baixo da escala social.

A pandemia provocada pela covid-19 levou muitos imigrantes a abandonar Portugal à procura de melhores trabalhos. Analisando a situação desde o início da pandemia, este fluxo poderá ser uma das causas possíveis causas para a falta de mão de obra relatada recentemente por alguns setores de atividade?

A pandemia, nas suas sequelas económicas, atingiu a generalidade dos países do mundo e não é, obviamente, período favorável à circulação de turistas, mas não terá sido assim tão impeditiva da circulação de trabalhadores. As condições de trabalho oferecidas pelos países de destino foram mais importantes do que a questão sanitária. O recente decréscimo dos nossos fluxos migratórios verificou-se por quebra de saídas para o Reino Unido – o Brexit contou mais do que o vírus…. O governo português, em 2020, tomou uma medida acertadíssima, logo no início dos confinamentos, com a legalização automática, ainda que transitória, dos estrangeiros, cujo pedido de residência estava no SEF. E, no que respeita à vacinação e aos cuidados médicos, tem procurado não discriminar os que estão em situação irregular. Uma decisão, decerto, mais influenciada por motivos de saúde pública do que por pura solidariedade humana, mas, de qualquer modo, boa. Esperemos que a recuperação económica, que se anuncia, facilite os ingressos legais e protegidos de todos os imigrantes que a nossa situação demográfica e económica reclama.

Apesar disso, há ainda imigrantes que estão a voltar e outros que estão a vir pela primeira vez. Há agora muitos imigrantes da África francófona, como a Gâmbia, Senegal ou outros países limítrofes, como o Mali, que estão a trabalhar na agricultura. Considera que estes novos fluxos migratórios poderão ser equiparados aos registados há dois anos?

Embora seja uma área que não acompanho de perto, tenho a perceção de que os fluxos migratórios para o setor da agricultura e outros, igualmente carenciados, foram aumentando durante a pandemia. São, todavia, setores onde reina a mais anacrónica e despudorada exploração, a que os nacionais não se sujeitam – preferem obviamente emigrar. Partem os nossos, chegam para o seu lugar, os estrangeiros. Não vejo mal neste incessante vaivém de gente, só lamento os fenómenos do tráfico e da exploração. A dimensão destes fluxos vai depender da expansão ou retração do mercado de emprego. Não sou economista, não me atrevo a fazer previsões. O que tenho por certo, nos aspetos jurídicos e sociais que me são mais familiares, é que os Governos têm de investir em mais e melhores serviços de defesa dos trabalhadores migrantes, o que passa, como disse, em primeira linha, pela decência das polícias, pela sua formação cívica e democrática.

Durante a pandemia foram, e têm sido, os imigrantes a manter o funcionamento, por exemplo, do setor agrícola. No entanto, se Portugal precisa tanto deles, porquê que ainda se verificam condições de trabalho de grande precariedade e baixos salários para estes trabalhadores?

O Estado fecha os olhos, não quer saber… É sempre pelos “media” e pelas ONG s que tomamos conhecimento destas vergonhosas condições de trabalho. Quando o patronato apela à mão de obra estrangeira, logo pululam os intermediários, entre alguns traficantes do submundo do crime, a trazer os desgraçados que aceitam qualquer tarefa, a qualquer preço… É mais um capítulo negro da história das migrações. Nada de novo, se olharmos o passado, mas completamente intolerável em pleno século XXI! Sem excluir a responsabilidade dos pequenos, médios ou grandes empresários, julgo que os Governos e a Administração Pública têm de intervir, antes de mais, para facilitar o recrutamento legal. É chocante e absurdo ver, por exemplo, milhões de refugiados, aprisionados em campos de concentração, apesar do contributo que poderiam dar a economias em expansão, e o mesmo se diga de imigrantes, que arriscam a vida para fugir à fome. Nós, portugueses, não temos desculpa para não os compreender, quando chegam “a salto”, como os nossos foram ao longo dos tempos.

A pandemia tornou ainda mais evidente o quanto as pessoas imigrantes são exploradas nos serviços, desde a restauração, hotelaria, construção civil ou agricultura?

As televisões têm tido o mérito de mostrar as miseráveis condições em que acolhemos imigrantes, em Lisboa, no Alentejo, e não só, a lembrar as fotos de “bidonvilles” que albergaram os portugueses na região de Paris, no século passado. Imagens poderosas e revoltantes. Já ninguém pode dizer que ignora o que se passa, nem os cidadãos, nem os governantes. É a escravidão, em novas reconfigurações. Perante a inércia dos serviços de inspeção, todos aproveitam – traficantes, patrões, senhorios, que cobram exorbitâncias por casebres ou pequenos apartamentos infectos…

Foi, durante décadas, o rosto do PSD na defesa do direito das Mulheres, na política da Emigração. A emigração tornou-se para muitas mulheres, através do trabalho económico, num caminho de emancipação?

Foi na minha preocupação genérica com situações de injustiça e discriminação que encontrei as mulheres migrantes – ausentes das políticas públicas padronizadas no masculino, como se não existissem particularidade, tanto de um, como de outro sexo. As especificidades masculinas são da mesma natureza das femininas, não é verdade? Procurei reequilibrar, com os meios ao meu dispor, os apoios a situações concretas, no tocantes às questões de género, exatamente do mesmo modo que tentei corrigir o enfoque quase exclusivamente europeu das políticas culturais e sociais da emigração, prestando atenção semelhante à vertente atlântica e transoceânica, a comunidades esquecidas.  Não se tratava de tomar partido, mas de dar tratamento equitativo, acompanhando de perto as situações, ouvindo as pessoas, criando instâncias de diálogo, estimulando a investigação académica. Assim fui tendo surpresas e desfazendo preconceitos, nomeadamente no que respeita às emigrantes! Era lugar comum dizer que elas eram duplamente discriminadas, como mulheres e como estrangeiras. Nessa presunção fundamentou o Estado, antes da Revolução de Abril, as políticas invariavelmente proibitivas ou limitativas da emigração feminina. Hoje sabemos que até mesmo a emigração “a salto”, a mais improvável, foi para as portuguesas uma grande via de emancipação –  juntaram-se a pais ou maridos, conseguiram aceder ao emprego, em geral, no setor dos serviços, aprenderam a língua mais depressa do que os homens, integraram-se melhor na nova sociedade e tornaram-se mediadoras da integração da família, uma família mais moderna, mais igualitária. E contribuíram, com o seu salário, decisivamente, para o sucesso do projeto migratório.  Eduardo Lourenço falou dos emigrantes do “salto” como “uma geração de triunfadores”. E esse triunfo em muito se deve às mulheres. Elas foram agentes do sucesso do projeto familiar, e, também, as suas principais beneficiárias. E, por isso, normalmente, se opõem ao regresso com que os homens sonham. Temem, com muita perspicácia, a regressão, a perda o estatuto conquistado, mas não são menos fiéis às suas raízes e recriam lá fora outro Portugal. Foi, de facto, sobretudo, através delas, que o associativismo aprofundou a sua componente cultural, com as escolas, as competições desportivas destinadas aos filhos, os grupos folclóricos e teatrais, as festas comunitárias. Depois, os homens trataram de lhes barrar a ascensão às direções, sem nunca prescindirem do seu trabalho nos bastidores…

Depois de ter deixado a Secretaria de Estado da Emigração e das Comunidades, continuou a trabalhar com as comunidades portuguesas no estrangeiro. Na Associação Mulher Migrante coordenou vários estudos sobre os emigrantes portugueses. Como analisa hoje a problemática das migrações femininas?

Foi pelo mero acaso de um convite para o Governo que entrei no mundo das migrações, mas não foi por acaso que continuei ligada às suas realidades por mais de quarenta anos. No Governo. No Parlamento, como Deputada da Emigração. Na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, como Presidente da Comissão das Migrações, Refugiados e Demografia. Num mestrado da Universidade Aberta, onde docente da cadeira de “Políticas e Estratégias para as Comunidades Portuguesas” e , finalmente, em ONG’ s. Estive na fundação de diversas associações, entre elas a “Associação Mulher Migrante”(AMM), a Fundação Luso-Brasileira, a Associação dos Portugueses do Estrangeiro (APE), e, mais recentemente, o “Círculo de Culturas Lusófonas Maria Archer”. A AMM, que completa trinta anos em 2023, tem um percurso extraordinário. Curiosamente, surgiu para corporizar o principal projeto do 1º encontro mundial de mulheres emigrantes, que eu tinha convocado, como Secretaria de Estado, em 1985. Foi uma iniciativa patrocinada pela UNESCO, e com ela Portugal deu um primeiro passo nas políticas de género, neste domínio, e tornou-se pioneiro a nível europeu – e, tanto quanto se sabe, mundial. O mérito, devo sublinhar, não foi meu, limitei-me a cumprir, como era meu dever, e com muito entusiasmo, uma recomendação do Conselho das Comunidades, proposta por uma jornalista de Toronto, Maria Alice Ribeiro, O Encontro Mundial excedeu todas as expetativas, mas não teve continuidade nos governos seguintes. A associação mundial para que apontava não teve condições para avançar. Oito anos depois, foi constituída a AMM, com a intenção de recuperar esse legado histórico.  As políticas de género foram retomadas pelo Secretário de Estado António Braga, vinte anos depois, e por proposta desta Associação, que, entre 2005/2009, levou a cabo, com o seu apoio, os “Encontros para a Cidadania – igualdade entre mulheres e homens”. A presidente honorária desse movimento foi a inesquecível Dr.ª Maria Barroso. A AMM teve, assim, como ONG, um papel relevante na prossecução das políticas públicas para a igualdade de género, em parcerias que continuaram até 2019, com os Secretários de Estado José Cesário e José Luís Carneiro. No mandato do Dr. Cesário realizaram-se três congressos mundiais, no país, e numerosos colóquios nas comunidades, juntando especialistas do mundo académico e voluntários de ONG’ s – mulheres e homens unidos pelos mesmos ideais de igualdade e de justiça. Muitos dos estudos e as atas dos Congressos estão publicadas, constituem documentação de consulta obrigatória para o conhecimento do percurso das mulheres na emigração.

O apoio à integração das mulheres na sociedade de acolhimento e defesa dos seus direitos de participação social, económica e política, ainda é uma das principais lutas?

Neste momento colaboro com as associações que mencionei, e com outras, como o Observatório dos Luso-Descendentes, ou o movimento “Somos todos Portugueses”. E, através do “Círculo Maria Archer”, estou envolvida na organização, no Porto, de uma homenagem a essa grande escritora e jornalista, por ocasião do 40º aniversário da sua morte. Como defensora da lusofonia, feminista, resistente à ditadura, que a obrigou a um longo exílio no Brasil, ela é, pela sua obra e pela sua vida, uma mulher intemporal! Estas comemorações, que incluem uma série de colóquios e uma exposição de pintura, serão uma oportunidade para refletir e dialogar sobre migrações. Feminismo, cidadania, participação das mulheres , em especial no espaço lusófono. As mulheres são metade das comunidades. Incluí-las, em pé de igualdade, nos domínios ou nas instâncias onde têm estado especialmente ausentes, como é o caso do dirigismo associativo, pode duplicar a força do movimento, numa fase em que se teme a sua decadência. Vale a pena lutar por isso! A exclusão das mulheres é não só uma tremenda injustiça para elas, como um absurdo desperdício de talentos e capacidades para a sociedade. Ao longo da história, o combate pela emancipação das mulheres foi, quase sempre, uma causa só delas, mas não tem de ser. Como proclamava Ana de Castro Osório, o verdadeiro Feminismo é um Humanismo. Ou dito de outra forma. o verdadeiro Humanismo tem de integrar o Feminismo. Os homens são bem-vindos neste combate sem fim à vista.

Que mensagem gostaria de deixar a todos os nossos leitores, em especial, aos milhões de portugueses espalhados pelo mundo, mas também a todos aqueles que encontram no nosso país uma nova janela de oportunidades?

Uma primeira observação: nas mensagens de Natal das nossas mais insignes figuras públicas não me lembro de ouvir uma palavra de gratidão para com os imigrantes, como integrante da nossa sociedade. E os emigrantes foram, quando muito, lembrados numa breve e cerimonial saudação. O que é revelador de uma perceção redutora do que verdadeiramente somos, ainda preponderante na opinião pública e na esfera da política. Gostaria de dizer aos portugueses do estrangeiro e aos imigrantes, muito simplesmente, que só com eles se pode conceber o futuro de Portugal. O reconhecimento da sua pertença a uma grande comunidade, que graças a eles, está em expansão, é uma das causas que vale a pena pôr em agenda, prioritariamente neste 2022. Espero que seja, para todos, um Ano Feliz, um tempo de reencontro e convivialidade!

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