Grande Entrevista João Costa
Ministro da Educação
João Costa é licenciado em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, professor catedrático de Linguística na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e, desde 2022, assume a liderança do Ministério da Educação no XXIII Governo Constitucional. Na altura em que se assinala o primeiro mês desde o arranque do ano letivo 2022/2023, damos-lhe a conhecer, na nova edição da Descendências Magazine, as conquistas, desafios e objetivos da Educação em Portugal.
Desde 2015 integra os executivos de António Costa e foi a escolha do primeiro-ministro para substituir Tiago Brandão Rodrigues na liderança do Ministério da Educação no XXIII Governo Constitucional. O convite para assumir a pasta da Educação e esta passagem a ministro representam um sinal de continuidade do trabalho até então desenvolvido pelo senhor ministro na secretaria de estado?
Temos inscrito no Programa do Governo um compromisso de continuidade das políticas educativas de âmbito curricular, com reforço da autonomia das escolas na construção do currículo, devolvendo aos professores essa missão nobre, e, por outro lado, com uma aposta na recuperação de aprendizagens, após dois anos de interrupções letivas forçadas por uma pandemia. Damos ainda continuidade a um trabalho por uma escola inclusiva, com igualdade de oportunidades e respostas adequadas, que sirvam o sucesso de todos. Neste sentido há um sinal de continuidade. Mas também um passo em frente, com o olhar no futuro, com a aposta na digitalização e um forte investimento no apetrechamento tecnológico das escolas, promovendo uma transformação adequada do nosso sistema educativo às necessidades presentes e futuras.
Agora à frente da Educação, terá em mãos a recuperação das aprendizagens, depois de dois anos em que o ensino foi impactado pela pandemia da Covid-19. Quais são os principais desafios que se esperam na Educação nos próximos quatro anos de legislatura?
Temos um plano ambicioso em curso, que se traduz no Plano 21|23 Escola+, com um leque vasto de medidas de intervenção rumo à recuperação de aprendizagens e reforço dos recursos do nosso sistema educativo, que tem sido alvo de um constante exercício de monitorização. Trata-se de um trabalho importante de apoio às nossas escolas, mas que não se esgota em 2023, e que consolida práticas que as escolas poderão usar para lá desse período. No fundo, tudo se traduz num trabalho de continuidade da construção de uma escola mais inclusiva, que não deixa ninguém para trás, um trabalho que começou no XXI Governo, com a definição das medidas estratégicas da política educativa atual, que são o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, e depois os Decretos-Lei do Currículo, que introduz maior flexibilidade na gestão curricular, e da Educação Inclusiva, publicados em 2018. Ninguém sonhava que íamos viver uma pandemia e uma paragem abrupta de todas as escolas. Mas este trabalho prévio ajudou-nos a passar essa tormenta e a encontrar a resiliência que precisamos para seguir em frente construindo um futuro educativo que acolhe todos e que os leva ao máximo da sua capacidade.
Um dos principais desafios desta legislatura será a descentralização da Educação. Em julho de 2022 o Governo e a Associação Nacional de Municípios Portugueses assinaram o acordo setorial de compromisso de descentralização de competências no domínio da Educação, no entanto o caminho a percorrer ainda é longo e exigirá uma forte monotorização por parte do Governo. Quais as regras estabelecidas por este acordo e quais as principais novidades que esta transferência de competências na área da Educação trará aos municípios portugueses?
É um momento histórico, de assunção de uma responsabilidade coletiva em torno de áreas estratégicas do nosso desenvolvimento enquanto país democrático, como sejam a educação, a saúde a segurança-social. Um caminho que já vínhamos preparando também. Mas uma vez lembro que o compromisso do Programa do Governo ia no sentido de reforçar o modelo de autonomia, administração e gestão das escolas, perspetivando uma maior participação e integração de toda a comunidade educativa, a valorização das lideranças intermédias e o reforço da inserção da escola na comunidade.
A descentralização reforça a proximidade e qualifica o contexto da comunidade educativa. Quero aproveitar para deixar aqui o meu apreço pela forma responsável e dedicada, até exemplar, em muitos casos, como tantos municípios portugueses agarraram este desafio como uma aposta de futuro e de modernidade. Acredito nos frutos deste trabalho, porque já testemunhei o sucesso deste caminho em muitos casos que tenho acompanhado nestes últimos anos de funções.
Atualmente, somos o país da Europa com maior percentagem de decisão centralizada. Urge reforçar a autonomia das escolas, através da partilha do poder para decidir, mas também dos meios para concretizar?
Todo o trabalhado iniciado em 2017 de reforço da autonomia das escolas na gestão curricular é uma evidência da confiança que o Governo tem nas escolas e nos seus profissionais enquanto decisores. Nunca descurando aquilo que é o seu papel, o Estado tem feito esse caminho de descentralizar as competências que entende que as instituições mais próximas das pessoas melhor podem assumir, no cumprimento dos objetivos de sucesso das políticas centrais. Sempre, claro, como também foi sempre dito, numa lógica de acompanhamento e de aprendizagem com as melhores práticas. E acreditem que são muitas, em muitas áreas, confirmando eu com mais propriedade as da área da educação.
Estima-se que até 2030 saiam do sistema educativo português 50 mil professores. Muitos acreditam não ser possível repor estes profissionais com recurso apenas à formação inicial, que tem de ser repensada. Considera que, hoje mais do que nunca, é necessário o desenvolvimento de uma estratégia capaz de rejuvenescer a classe docente, dignificar a docência, reter e atrair os melhores para a profissão?
É de facto um momento muito desafiante aquele que vivemos em termos de recursos humanos mais qualificados na educação. Mas não se trata de um problema exclusivamente português. É um desafio de outros países na Europa. E é um desafio no Mundo. Esta semana mesmo participarei numa cimeira mundial das Nações Unidas sobre a Transformação na Educação, onde este tema será debatido entre os Estados participantes.
Mas estamos a trabalhar para minimizar o impacto desta realidade no nosso sistema, como tem sido amplamente divulgado. Estamos a convocar todos os docentes que estavam a exercer outras funções, em mobilidades estatutárias, alterámos o diploma da habilitação própria docente para canalizar todo o valor de licenciados com capacidade para responder a casos mais críticos de escassez de docentes, como é o caso da informática, geografia, e das ciências. E vamos negociar com os representantes sindicais soluções para melhorar a resposta da legislação no âmbito da contratação e dos concursos para encontrar respostas mais eficazes a este problema, sempre com o objetivo final de melhorar as condições de carreira e tornar a escolha individual de ser professor cada vez mais atrativa. E o facto de estar já a aumentar a procura dos cursos de formação de ensino nas universidades é um sinal muito animador de que a profissão continua a ser atrativa para os jovens.
Recentemente, referiu que pretende solucionar o modelo “casa às costas” já no próximo ano letivo. Este fator poderá vir a contribuir para que os jovens não olhem para a profissão, nos seus anos iniciais, como sendo instável?
Sim, essa afirmação traduz em poucas palavras o que queremos melhorar na contratação e na legislação neste âmbito para que possamos encontrar respostas adequadas ao problema da falta de professores e adequadas também ao desenvolvimento de uma série de medidas de valorização da profissão docente. É esse trabalho que vamos desenvolver nos próximos tempos.
Há bem pouco tempo, as redes sociais foram invadidas com testemunhos de descontentamento acerca do despacho do Ministério da Educação que vai permitir que os licenciados pós-Bolonha possam dar aulas já no próximo ano letivo 2022/2023. Falamos de uma solução temporária, para fazer face à falta de docentes a determinadas disciplinas, que não se quer norma?
É preciso dizer em primeiro lugar que o mestrado em ensino será sempre a habilitação para poder ingressar na carreira de professor. A habilitação própria sempre existiu, mas os instrumentos legais não eram atualizados há anos.A possibilidade de ocupar extraordinariamente lugares em sede de contratação de escola já existia para os licenciados pré-Bolonha. E agora acontecerá com os licenciados pós-Bolonha. Sinceramente, esta alteração não justifica o alarido feito em torno do tema.
Para além disso, o Ministério da Educação está a desenvolver a possibilidade de estes docentes poderem formar-se, ou seja, fazer a sua profissionalização e a componente de formação pedagógica enquanto dão aulas. É esta mais uma tentativa de atrair mais pessoas para a carreira docente?
Sim, será possível a estes licenciados, se assim entenderem, poderem fazer a profissionalização enquanto dão aulas, ao mesmo tempo que fazem a componente de formação pedagógica. Este é um trabalho que estamos a fazer de revisão do modelo de formação inicial, que tem um grupo de trabalho a pensar nestas alterações, um grupo coordenado pela professora Carlinda Leite, da Universidade do Porto, e que é mais uma medida num conjunto de várias que se quer eficaz de resposta a esta falta de professores.
O mês que antecede o arranque de mais um ano letivo é, regra geral, um dos mais inquietantes para milhares de docentes que aguardam uma colocação. Presentemente, qual a percentagem de docentes colocados no Sistema Nacional de Educação?
Fizemos esse ponto de situação no âmbito dos resultados da segunda Reserva de Recrutamento, que são momentos semanais em que as necessidades ainda por preencher vão a concurso. Colocámos professores em 97% dos horários solicitados pelas escolas. O que é uma situação melhor de que temos registo desde 2019. Mas não vamos escamotear a realidade. A colocação de docentes é uma realidade muitíssimo dinâmica. Hoje temos 97% de necessidades satisfeitas e amanhã há lugares que não são reclamados pelos docentes colocados, há baixas que abrem outras necessidades. É um sistema que exige capacidade constante de resposta do sistema, que é o que estamos a fazer, diria num nível de sucesso grande, sempre com o objetivo de fazer com que cada falta de um docente seja resolvida no menor tempo possível.
A principal alteração para o próximo ano letivo está no regime de mobilidade por motivo de doença, que deixou de fora quase três mil docentes. Esta situação poderá traduzir-se num aumento de baixas médicas de professores já em setembro?
Temos uma variedade muito grande de casos entre os docentes que usavam este requisito. Trata-se de um regime específico de mobilidade que, como mencionado no preâmbulo, tem subjacente a promoção do equilíbrio entre a necessidade de prestação de cuidados médicos ou apoios aos docentes ou aos seus familiares e a melhor utilização dos recursos humanos, de modo a contribuir para garantir à escola pública os professores necessários à prossecução da sua missão. Como sabemos, foi um processo que decorreu no seu prazo. Quisemos avaliar casuisticamente alguns casos e surgiram duvidas da legalidade desse processo, por isso aguardamos conclusão de um parecer jurídico.
Como forma a verificar os processos de mobilidade por doença, o Governo anunciou entretanto que vai fazer 7.500 juntas médicas a professores para verificar estes processos de mobilidade por doença. No entanto, a Federação Nacional dos Médicos considera ser “uma tarefa impossível” criar 7.500 juntas médicas para verificar situações de professores em baixa médica ou que pediram para mudar de escola por questões de saúde, porque faltam clínicos. Tendo em conta esta realidade, de que forma o Ministério da Educação pretende constituir estas juntas médicas e onde planeiam recrutar os médicos necessários?
Esse processo está em fase de adjudicação. Aguardamos a conclusão dessa fase.
A revisão do modelo de recrutamento e colocação de professores vai começar a ser negociada entre o Ministério da Educação e os sindicatos do setor a partir de setembro. Quais as principais mudanças que podem advir desta negociação?
Pensamos que uma das vias de solução desta falta crítica de professores se prende com a falta de estabilidade dos vínculos, Como já referi, é preciso acabar com este sistema de “casa às costas” dos professores. Por isso, temos um conjunto de propostas a fazer aos representantes sindicais que passa por uma otimização dos concursos vigentes de modo a melhorar as condições de trabalho docente. Vamos aguardar pelas negociações para apresentar essas medidas.
O paradigma da educação em Portugal está a mudar a um ritmo acelerado e os próximos anos trarão consigo evidências que consolidam esta perspetiva. Em 2022, em plena era da informação e do conhecimento, urge repensar o currículo para uma educação de qualidade que forme e capacite as novas gerações?
Sem dúvida e isso encontra-se expresso no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, documento estruturador do currículo nacional, assente na identificação das competências necessárias neste contexto de grande transformação da nossa relação com o conhecimento. A aposta nas competências digitais, de docentes, através de um ambicioso plano de formação a nível nacional, e de alunos, através de medidas de abordagem ao currículo que envolvem o digital, a começar pela disponibilização de kits digitais e de uma adoção gradual de manuais digitais, são uma presença constante das prioridades das políticas de educação. Por outro lado, são cada vez em maior número as experiências, com vantagens assinaláveis da introdução da programação informática ou da robótica ao nível, desde logo, do 1º ciclo. E neste sentido, sem nunca querer dizer que há algo positivo a retirar do terrível período pandémico que vivemos, é um facto que se provou que as competências digitais são necessárias e coadjuvam a aprendizagem, mas que são apenas instrumentais, nunca substituindo a função do professor.
Mais do que uma ferramenta de resposta às necessidades trazidas pela pandemia, o projeto Escola Digital pretende criar os alicerces que produzirão o cidadão resiliente, adaptável, inovador e digitalmente fluente, que se espera preparado, para este novo mundo?
Sim, mais do que uma resposta às necessidades trazidas pela pandemia. A Escola Digital veio para ficar e para ampliar as nossas capacidades de abordagem pedagógica.
Não há dúvidas de que a transição digital na educação avança. Depois da disponibilização de equipamentos informáticos a todos os alunos, urge agora a progressiva transição para manuais digitais, com a produção de recursos educativos digitais, com a desmaterialização de provas e exames, com a instalação de 1300 laboratórios digitais e o alargamento da rede de clubes ciência viva para fomentar o ensino experimental das ciências. 2022/2023 prevê-se um ano letivo mais “digital”?
Os recursos estão disponíveis, entre eles todos esses que enuncia e que tornam a escola mais rica por incluir instrumentos e metodologias pedagógicos mais diversificados. Gradualmente teremos ambientes escolares mais digitais, mas sempre dependentes da presença de docentes qualificados no processo de aprendizagem e no acompanhamento de cada aluno.
Com o início das aulas, milhares de estudantes já têm os seus manuais escolares gratuitos, novos ou reutilizados, graças à atribuição de vouchers. Dos mais de cinco milhões de manuais escolares distribuídos no passado ano letivo pelos alunos do ensino obrigatório, foram reutilizados até agora 2,3 milhões, segundo dados do Ministério da Educação, que correspondem “a uma percentagem de cerca de 65% dos manuais a reutilizar”. Caminhamos, cada vez mais, a passos largos para uma Educação mais inclusiva e sustentável?
Sim, todos sabemos que os recursos naturais são finitos e que os processos industriais de produção de papel são muito pouco sustentáveis. Falamos todos os dias da escassez de água, de combustíveis fósseis, da necessidade de procurar a viabilidade de produção de energias alternativas. No cumprimento dos Desafios das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, este era um caminho que tínhamos de fazer. Que temos todos de fazer. E que vai além da contenção da despesa. Vai no sentido de garantir um futuro do Planeta, que é uma mensagem que a geração que é a dos nossos alunos, e cada um de nós enquanto cidadão, tem de abraçar como um desígnio obrigatório.