Luís de Sousa

Investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

Fotografia ©Tiago Araújo

Luís de Sousa, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, personifica o compromisso e a excelência no campo da pesquisa, especialmente quando se trata da incisiva temática do combate à corrupção. Mais do que mergulhar na complexidade da pesquisa académica, Luís de Sousa desempenha hoje um papel fundamental na promoção da transparência e ética na esfera pública. Enquanto cocriador da Transparência e Integridade – Associação Cívica, coordenador responsável da rede de investigação sobre agências anticorrupção e membro fundador e ex-presidente da representação portuguesa da Transparency International, Luís de Sousa encontra no compromisso incansável de desvendar os meandros da corrupção e fortalecer as instituições o farol para um futuro mais íntegro e justo.

Fotografia ©Tiago Araújo

Doutorou-se em Ciências Sociais e Políticas pelo Instituto Universitário Europeu de Florença em julho 2002, com uma tese intitulada Corruption: ‘Assessing Ethical Standards in Political Life through Control Policies’. Em outubro do mesmo ano, foi recrutado como investigador pelo Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE. De setembro de 2004 a 2005, trabalhou como investigador principal na Australian National University de Canberra no âmbito de um projeto de investigação intitulado ‘The International Anti-Corruption Movement’. Já desempenhou também funções de professor na Universidade de Aveiro e professor convidado na Faculdade de Ciência Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Foi o co-fundador e primeiro presidente da representação portuguesa da Transparency International. Mas muito mais ainda há para dizer. Deixando as posições e ofícios de lado, quem é Luís de Sousa?

O Luís de Sousa é uma pessoa simples, sensata, informada e, acima de tudo, uma pessoa que se preocupa. Durante toda a minha vida, uma das minhas principais preocupações foi proteger os indefesos contra abusos. Lembro-me de que, na altura da escola, fazia-me confusão ver pessoas que, por várias razões, não tinham poder ou tinham menos iniciativa, serem expostos a abusos por parte de outros. Sempre desejei que fosse criada uma instância capaz de proteger essas pessoas mais vulneráveis. Esse sentimento sempre norteou muito a minha conduta. Além disso, tenho pautado a minha vida com dois valores que considero inabaláveis: a dignidade e a liberdade.

Doutorou-se com uma tese sobre políticas públicas de combate à corrupção e a partir daí nunca mais parou, tendo já participado em diversos projetos de investigação e consultoria para organizações nacionais e internacionais sobre corrupção, políticas de controlo à corrupção e financiamento político. Como começou este interesse na área de combate à corrupção?

Acho que o início deste interesse pela área do combate à corrupção se deve muito ao facto de ter crescido numa terra do interior, onde o mesmo partido esteve em exercício de funções anos a fio, onde o poder era exercido de forma tentacular. O partido estava presente em quase todas as instituições, não havia muito espaço para opiniões diferentes. Essa forma omnipotente e omnipresente de exercício de poder, sempre me causou uma certa revolta. Acho que este meu interesse se foi desenvolvendo um bocadinho por aí. Depois, quando saí dessa terra do interior e fui estudar para a Escócia, conheci um contexto completamente diferente. Fiquei surpreendido pela forma como o poder local funcionava na Escócia, como funcionava a iniciativa da sociedade civil, como a comunicação social era crítica e não subserviente do poder’. Tudo isso mostrou-me que o poder local podia ser muito mais do que aquilo que era a nossa realidade.
Além disso, também tive bons exemplos em casa. Os meus pais foram ambos funcionários públicos exemplares. O meu pai, enquanto funcionário público da Direção Regional do Ministério da Agricultura, fez uma denúncia de uma rede de uso indevido de dinheiros públicos e de fraude, apesar das inúmeras dificuldades que na altura implicava fazer uma denúncia. Acho que também aí tive boas referências para seguir este caminho.

Hoje é um dos principais especialistas portugueses em matéria de corrupção, sendo também o fundador e coordenador responsável daquela que foi a primeira rede de investigação sobre agências anticorrupção (ANCORAGE-NET) que incluía 15 agências anticorrupção de 14 países diferentes da Europa, Oceânia, América Latina e África. Quais eram os objetivos principais desta rede e de que forma ela operava no combate à corrupção?

A ANCORAGE-NET iniciou com o financiamento do organismo europeu antifraude, do OLAF, em 2006. Começou a partir de uma ideia, que resultou da minha participação num projeto australiano que se debruçou sobre o movimento global contra a corrupção e sobre as ONG’s dedicadas ao combate à corrupção. Quando regressei, disse aos meus colegas australianos que não nos deveríamos ficar apenas pelas Organizações Não Governamentais, mas que olhássemos também para as agências governamentais especializadas, criadas nestes últimos anos no âmbito da Convenção Mérida, a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção e, que tem competências de prevenção e até algumas de investigação da corrupção e crimes conexos.
Na altura, propus um workshop sobre isso em Nicosia e começou aí o meu interesse. Percebi que de facto havia um conjunto de entidades que não estavam devidamente mapeadas, em termos do seu estatuto, das suas competências, da sua capacitação institucional, e decidi então fazê-lo.
Criei um questionário para mapear o perfil destas entidades e na altura reparei que havia um financiamento do Hercule Training Programme, que já possibilitava a organização de reuniões com equipas e entidades que trabalhavam a área do combate à fraude, mas que naquele ano tinha sido também estendido à área do combate à corrupção. Pareceu-me bem organizar uma conferência com as agências anticorrupção no espaço europeu, trazê-las a Lisboa e pedir-lhes que fizessem o profile das suas competências. O evento foi bem-sucedido e acabámos por realizar uma segunda reunião. Nessa segunda reunião, o então Diretor do Organismo Anti-Fraude ficou muito interessado no nosso trabalho, porque percebeu que estávamos a tentar criar um espaço de diálogo entre estas agências, que lidavam muitas vezes com casos de investigação, evidências, denúncias de situações que tinham a ver com abusos de dinheiros comunitários. Interessava muito ao OLAF perceber como estas agências partilhavam informação, se aprendiam ou não com os métodos de outras entidades e, portanto, acabaram por patrocinar uma nova edição desta reunião que contou com a participação de agências de 14 países diferentes da Europa, Oceânia, América Latina e África.

Quais foram os grandes desafios e benefícios de coordenar esforços anticorrupção numa escala internacional?

Alguns dos desafios tinham sobretudo a ver com o desenho da própria entidade, das competências que lhe eram atribuídas. Outra das dificuldades estava relacionada com a discrepância entre as competências formais atribuídas e o envelope financeiro para as efetivar. Na altura, também sentimos algumas dificuldades em termos de recrutamento. Aliás, na maioria dos organismos há um défice de especialização, há falta de competências para fazer determinado tipo de análises.

De que forma se pode efetivar uma eficaz prevenção e investigação de casos de corrupção em Portugal?

Ainda agora criámos uma entidade, a Entidade da Transparência, para fiscalizar as declarações patrimoniais e de interesse dos eleitos, dos novos cargos, de um conjunto de entidades. Com esta nova entidade, pretende-se que exista um maior controlo e que seja possível realizar as devidas análises das informações fornecidas através das referidas declarações. Um tipo de análise muito importante é a procura de padrões, de tendências. Por exemplo, se notarmos que sempre que há um círculo eleitoral, há um conjunto de deputados que assumem cargos em órgãos sociais de empresas, estamos a detetar um padrão. Esse padrão tem de ficar identificado e tem de ser analisado se terá implicações no processo legislativo, ou não. Sem fazermos esse trabalho, entidades como a Entidade da Transparência acabam por ser um mero depósito de declarações.

Fotografia ©Tiago Araújo
Fotografia ©Tiago Araújo

Foi preciso esperar até 2021 para ver aprovada a há muito falada estratégia nacional anticorrupção. O programa do XXII Governo Constitucional inscreveu entre os seus objetivos fundamentais “o combate ao fenómeno da corrupção, tornando a ação do Estado mais transparente e justa, promovendo a igualdade de tratamento entre os cidadãos e fomentando o crescimento económico”. Pergunto-lhe, está esta estratégia a ser eficaz?

Francamente, não se sabe o que esta estratégia está a ser. Nós saímos de uma situação em que não havia nenhuma estratégia e, portanto, se tivermos que medir as coisas, podemos dizer que estamos a cumprir os mínimos. Pelo menos, já temos estratégia, mas os problemas começam logo pelo método como ela foi feita. Fazer uma Estratégia de Prevenção e Combate à Corrupção requer perceber, daquilo que já temos, o que não está a funcionar. E essa avaliação não foi feita. A única avaliação feita do Sistema Nacional de Integridade foi realizada pela representação portuguesa da transparência, em 2012. Já lá vai algum tempo. Foi precisamente a partir desse relatório, que concluímos que o país não tinha uma Estratégia de Prevenção e Combate à Corrupção e era importante criar essa estratégia. Pensávamos que, quando se decidisse avançar com isso, fosse feita uma nova avaliação ao Sistema Nacional de Integridade, mas esse trabalho preparatório não foi efetivado. Quando olhamos para a estratégia, para além de alguns lapsos, percebemos a falta de priorização das medidas. A começar desde logo pelo facto da prioridade ser a educação. Nada contra, mas quando há toda uma série de outras questões mais prementes a serem colocadas em 4.º/5.º lugar ou que nem sequer estão mencionadas na estratégia, aí já temos um problema.

O Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC), o novo organismo de combate à corrupção nos setores público e privado para empresas com mais de 50 pessoas, recebeu no primeiro semestre de 2023 apenas sete denúncias. É caso para dizer que ainda são muitos os desafios que tem pela frente?

Sim, mas acho que é ainda mais preocupante saber que o Mecanismo Nacional Anticorrupção esteve doze meses a trabalhar e produziu um guia para ajudar à elaboração das análises dos Planos de Prevenção de Riscos, que, no fundo acabou por decalcar aquilo que já tinha feito o Conselho de Prevenção. Ou seja, não é nada de novo. Não é que o documento esteja mal feito, mas tem passagens que não se explicam, porque falta de conhecimento especializado.
Costuma-se dizer que os Planos de Prevenção de Riscos de Corrupção devem ser feitos internamente pelas próprias entidades, mas não deve ser sempre assim. Por exemplo, se estivermos a falar de uma entidade que teve problemas, é normal que a avaliação dos riscos de integridade seja feita por equipas externas à organização para perceber o que correu mal de forma isenta. Dependendo do tipo de situação, do tipo de organização, podemos ter de recorrer a métodos diferentes. Não podemos funcionar com base num único “template”. Não podemos dar funções a pessoas que não têm competências para o fazer. Temos que saber ver quem deve fazer o quê, quem tem competências para fazer determinado trabalho.

Fotografia ©Tiago Araújo
Fotografia ©Tiago Araújo

A percentagem bastante baixa de condenações em processos por corrupção é um dos “Calcanhares de Aquiles”. O número de condenados por corrupção e crimes conexos nos tribunais de primeira instância portugueses atingiu, em 2021, o valor mais baixo dos últimos 16 anos, segundo dados da Direção-Geral de Política de Justiça, responsável pelas estatísticas do Ministério da Justiça. Há quem atribua esta queda abrupta do número de condenações por este tipo de crimes ao impacto da pandemia na Justiça. Concorda?

Pelo contrário. Sempre que estamos num contexto de emergência humanitária, sanitária, de resposta a um desastre ambiental, há necessidade de atuar com celeridade. Isso significa que, muitas vezes, são tomados os chamados ‘regimes especiais’, que devem vigorar apenas naquele período, para dar uma resposta célere aos problemas. Logicamente, isso pode abrir portas a uma série de informalidades, favorecimentos e abusos. A preocupação é tanta em dar resposta a um problema que não olhamos a meios e como sabemos, “a oportunidade faz o ladrão”. Portanto, nesses contextos, o risco de corrupção é bem maior e, por isso, as denúncias também deveriam ser. No entanto, dados demonstram que um dos motivos pelos quais as pessoas não estão dispostas a denunciar a corrupção é porque temem represálias. Acham que a relação custo-benefício é negativa, ou seja, o eventual benefício que possa haver do seu comportamento pró-social em denunciar uma suspeita de uma infração, não compensa os custos que vão sofrer na pele de se exporem a este tipo de situações.
Quando nos apercebemos que um colega se está a comportar mal, vamos falar com um superior e expor a situação, porque é nossa obrigação fazê-lo. O problema é quando o superior está envolvido neste processo. Nestes casos o que fazemos?
Até 2008, até ser aprovada a primeira norma de proteção de denunciantes ainda antes da primeira diretiva da União Europeia, era dada proteção ao denunciante de uma forma muito vaga. Não estava definido até quando era dada essa proteção, se era possível estender a proteção a familiares ou ao património, e o setor privado nem sequer estava abrangido.
Até essa altura, as pessoas tinham que violar a lei para cumprir aquilo que era uma obrigação, o dever de reportar situações que, em boa-fé, parecessem-lhes uma violação da lei ou dos princípios éticos em exercício de funções. Tinham de fazê-lo por fora dos trâmites normais, falando com um jornalista, com um ativista, com um familiar que, eventualmente, pudesse passar a palavra a alguém de direito. Era desta forma que eram feitas as denúncias, correndo riscos. Hoje em dia já não temos esse problema, mas o número de denúncias continua muito baixo porque, apesar das melhorias, a pessoa que é conhecedora de alguma infração não fica totalmente segura em partir para a denúncia.
Outra das razões apontadas para o baixo número de denúncias prende-se com o facto das pessoas não gostarem de denunciar outras. O que é que isto significa? Terá a ver com as décadas de ditadura que vivemos? Talvez esteja.
Perante uma sociedade que demonstra estes receios em denunciar casos de corrupção, urge perceber que formação lhes podemos dar para perceberem que uma denúncia pode ser feita de forma segura. Para perceberem que podem e devem colaborar e essa colaboração faz parte dos seus deveres.

Como podemos melhorar o sistema judicial para garantir que os responsáveis sejam responsabilizados? Quais são as mudanças legislativas necessárias para fortalecer a resposta contra a corrupção em Portugal?

Acho que devemos trabalhar mais o lado da prevenção, do que propriamente o lado da condenação. Eu não quero ver grandes números de condenados. Quero ver números com a certeza de que a prevenção está a funcionar. E neste momento, sei que não está como deveria. Temos número baixos, isso é certo, mas esses números baixos são o reflexo de que o sistema não está a conseguir detetar casos. É reflexo de que as situações não estão a ser reportadas. E isso não é nada bom.
Neste momento, não sugeriria muitas mais alterações na legislação. O nosso quadro legislativo está em dia e temos praticamente tudo aquilo que precisamos. No entanto, há que distinguir o que são medidas legislativas da esfera penal, do que são medidas legislativas de regulação da ética na política. Regimes de financiamentos políticos, regimes de incompatibilidades e incumprimentos, regimes de declarações patrimoniais, que visam regular comportamentos nas instituições públicas, são efetivamente regimes em que tem havido retrocessos. Tem-se verificado uma atuação deliberada de reduzir os mecanismos de controlo criados no âmbito desses regimes.
É inegável que afinações precisam de ser feitas, mas para mim o principal problema que existe é o fator humano. O principal problema é quem é que metemos à frente dessas entidades que fiscalizam o cumprimento destes vários regimes de regulação da ética política.

A falta de condenações efetivas leva a que muitos portugueses vejam a corrupção como uma prática normal no país. Aliás, dados do Eurobarómetro indicam que a corrupção é vista como prática generalizada no nosso país por parte de 93% dos portugueses, um número que coloca Portugal como o terceiro país na União Europeia (UE) onde a perceção deste crime é maior. Neste campo, Portugal fica apenas atrás da Croácia com 96% e da Grécia, que lidera com 97%, sendo que a média da União Europeia (EU) é de 70%. Por sua vez, 66% dos inquiridos consideram que, nos últimos três anos, o nível de corrupção aumentou, um aumento de 15% face a 2022, com 25% a declararem que acham que a corrupção continua “a mesma”. Ou seja, o impacto da corrupção na confiança da população nas instituições governamentais e no sistema judicial é notório. Como podemos abordar essa questão e reconstruir a confiança dos portugueses?

Só há uma forma: tem de haver a demonstração e o compromisso credível da parte das instituições que têm competência nesta matéria. As pessoas têm de lutar para mostrar que de facto estão a trabalhar e a conseguir resultados. Se não houver essa demonstração, nada feito. Podemos até ter limitações, mas temos de mostrar que estamos a trabalhar e que vamos dar o nosso melhor. Com os recursos possíveis, vamos fazer o possível e o impossível. Se não transmitirmos isso, não há forma de contrariarmos essa tendência de perda de confiança da opinião pública.
Outra questão tem também a ver com o compromisso credível em matéria de prevenção e combate à corrupção. Por isso digo que as instituições políticas não se podem demitir da sua responsabilidade de disciplinar eticamente os seus membros.
Se não o fizerem, é porta aberta para uma data de problemas, para uma data de escândalos.

Nos últimos tempos, temos visto diversos casos de corrupção serem noticiados. Qual é a sua análise sobre esses eventos e como a sociedade pode aprender com essas situações?

Essa quantidade de casos é sobretudo fruto de má gestão, muito má gestão da parte dos partidos. Na maioria dos casos, sejam eles de conflitos de interesse ou abuso da confiança pessoal, houve uma má gestão a todos os níveis. Houve uma má gestão até das próprias escolhas que se fazem para as listas, para determinados cargos, sem qualquer escrutínio prévio da idoneidade, do rigor.

Existe atualmente algum partido que, na sua opinião, apresente medidas/propostas concretas e eficazes no que diz respeito ao combate à corrupção?

Saímos de uma situação em que nenhum partido ligava ao assunto da corrupção. Pontualmente víamos alguns líderes a tomarem posições sobre isso, mas geralmente eram figuras cinzentas no partido, pessoas delegadas para a terceira fila, que não eram propriamente ‘cabeças de cartaz’. É claro que também há exceções, como é exemplo o caso do António José Seguro, há uns anos no PS. No entanto, eram raras as exceções e isso, como sabemos, infelizmente, não abonava a favor dos partidos.
Nos últimos anos, o tema da corrupção ganhou uma dimensão tal que hoje já temos uma organização da sociedade civil que se debate para uma maior transparência e integridade do sistema político, temos uma maior atenção por parte da comunicação social, temos uma série de atores que têm feito pressão para que as coisas mudem. Hoje, fala-se muito do Chega, mas antes dele já os partidos convencionais foram introduzindo nos seus manifestos eleitorais promessas de prevenção e combate à corrupção e de regulação da ética na política. Mas o detalhe continua a ser parco. Não basta mencionar que se quer combater a corrupção, é necessário dizer como, apresentar ideias concretas.
De facto, o Chega tem sido uma formação partidária que tem feito da luta contra a corrupção um cavalo-de-batalha, mas apenas da boca para fora. Há que distinguir o combate feito por organizações governamentais e da sociedade civil, que olham para a corrupção como um problema social, que deve ter uma resposta política adequada, e para o qual deve ser criada uma política pública, dos que utilizam o tema como arma de arremesso, como assunto de mobilização eleitoral, que lhes permite contestar os adversários. Essa utilização populista do tema não tem nada a ver com a utilização em termos de política pública. São duas abordagens diferentes.
Recentemente, fizemos uma avaliação, a nível europeu, daquilo que os partidos estão a fazer em matéria de autorregulaçao da ética dentro das próprias organizações. Posso dizer que os partidos radicais de direita, que geralmente são os partidos que fazem do combate à corrupção e da ética na política os seus cavalos-de-batalha, são os que menos avançaram em matéria de autorregulação da ética. São os que menos fizeram dentro das próprias organizações. Em termos nacionais, e apenas do ponto de vista formal e não necessariamente da prática, o partido que mais avanços fez em matéria de autoregulação da ética foi o LIVRE, sendo que, recentemente, o PSD também anunciou que iria criar na revisão estatutária um código de ética para dirigentes e representantes partidários. Sinto que aos poucos as coisas estão a mudar, ou que pelo menos há uma predisposição para isso.

É autor do livro “Corrupção”, onde aborda diversas temáticas, tais como “se tem desenvolvido o combate à corrupção em Portugal?”. Olhando para trás, desde 2011, ano em que publicou o livro, sente que há melhorias notáveis ou desafios persistentes no combate à corrupção em Portugal?

Há melhorias, mais formais do que substantivas e desafios persistentes. Hoje temos uma estratégia nacional anticorrupção (ENAC), que define um conjunto de prioridades e metas no domínio da prevenção e combate à corrupção, temos um regime geral de prevenção da corrupção, que estabelece um conjunto de obrigações de compliance para o setor público e privado, um quadro sancionatório para assegurar o seu cumprimento, e um mecanismo anticorrupção (MENAC), responsável pela implementação desse regime de conformidade e também pela elaboração de um relatório nacional anticorrupção. Persistem os problemas de sempre: ausência de um compromisso político credível neste domínio, o que tem dado espaço a todo o tipo de retórica populista; leis imperfeitas, com lacunas ou cosméticas, com aplicabilidade fictícia, tanto em termos preventivos como disciplinares; vulnerabilidades ao nível do desenho, operacionalização e capacitação de entidades especializadas, sobretudo no domínio da prevenção; e uma ausência de escrutínio e avaliação do trabalho destas mesmas entidades. Isto é válido não só em relação ao MENAC como também em relação às duas entidades de fiscalização da ética política junto do Tribunal Constitucional: a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos e a nova Entidade para a Transparência. Temos de exigir mais destas entidades, e acompanhar o seu trabalho, algo que compete não só à sociedade civil e à comunicação social, como também ao próprio parlamento.

As instituições políticas e empresariais reúnem também a desconfiança dos portugueses, com 85% a responderem que consideram que “as relações muito estreitas entre as empresas e a política em Portugal conduzem à corrupção”. Além disto, 78% reconhecem que “os casos de alta corrupção não são suficientemente processados em Portugal”, com 84% a acharem que “em Portugal, o favoritismo e a corrupção prejudicam a concorrência empresarial”. Em todos estes parâmetros, a percentagem aumentou face a 2022. Considera que de facto o acesso privilegiado de certas empresas às esferas políticas cria um ambiente propício para práticas questionáveis?

Sim, práticas essas que acarretam um dano reputacional para o clima de negócios e a imagem do país. A corrupção que choca a opinião pública não é propriamente o suborno puro e duro, que existe, mas não é sistémico, mas a influência indevida sobre os processos de decisão, que perverte as regras do jogo democrático e da livre concorrência, para benefício de determinados grupos económicos. Esta corrupção, por regra, não é crime, desenvolve-se sob uma áurea de legalidade e é travestida de compromisso social, de imperativo de desenvolvimento, o que ajuda à normalização da subjugação do interesse público a interesses privados.

O ano de 2023 ficará marcado pelo fracasso do Estado português no combate à corrupção, com suspeitas sobre o Governo e o Presidente da República. Dito isto, quais são os desafios específicos que surgem no contexto das próximas eleições?

É preciso que os partidos políticos digam claramente o que pretendem fazer nesse domínio e que fixem objetivos concretos e não se fiquem por boas intenções ou retóricas populistas.

1 Comment

  • A. Filipe Gonçalves
    7 meses ago Reply

    Excelente entrevista, com um ponto de vista muito interessante por parte de alguém que sabe o que diz.
    Muito bom, mesmo.

Leave a Comment

Your email address will not be published.

Start typing and press Enter to search