Margarida Lages

Chefe de Divisão do Arquivo e Biblioteca do Instituto Diplomático

© Descendências/Tiago Ribeiro

Há mais de uma década ao serviço da memória diplomática portuguesa, Margarida Lages conhece como poucos os bastidores onde se guarda a história do país – dos telegramas que moldaram decisões políticas às correspondências que revelam o pulsar das relações internacionais. Profundamente dedicada à causa pública, Margarida Lages lidera um arquivo que é simultaneamente guardião do passado e ferramenta estratégica do presente. Nesta entrevista, revela como se preserva um património documental único, os desafios colocados pelo digital, a importância da cooperação internacional e o que significa, hoje, defender a memória do Estado num mundo onde a informação se perde tão depressa quanto circula.

© Descendências/Tiago Ribeiro

A sua formação combina uma licenciatura em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, uma pós-graduação em Gestão das Artes pelo Instituto de Estudos Europeus de Macau e um Diploma de Estudos Avançados em Estudos Portugueses, na variante de Estudos de Cultura – uma fusão pouco comum, que alia rigor histórico e sensibilidade cultural. Em que momento percebeu que a História e os Arquivos não seriam apenas uma opção académica, mas uma verdadeira missão profissional?

Percebi muito cedo que os arquivos são essenciais, praticamente desde que comecei a estudar História. Na altura frequentava a Torre do Tombo, ainda instalada no Palácio de São Bento, e isso marcou-me profundamente. Os arquivos tornaram-se uma referência constante. Porquê? Porque fazem parte da nossa vida quotidiana: guardamos cartas e postais, tiramos um bilhete de identidade, precisamos de uma certidão de nascimento. Se esses documentos não existirem, de certa forma, nós próprios também não existimos. É tão simples quanto isso.
A minha ligação mais direta ao arquivo surgiu, no entanto, por circunstâncias muito específicas. Ao longo da vida fiz muitas coisas diferentes e, em 2004, fui para o Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento. Fiquei então no Centro de Informação e Investigação, que tinha uma dependência na Rua da Junqueira onde se encontrava parte do antigo Arquivo Colonial, herdado do Ministério das Obras Públicas e Comunicações. Deparei-me com documentação dispersa, pouco organizada, com poucos recursos humanos. E eu tenho uma certa compulsão para estas questões. Comecei a arrumar, a interessar-me, e pouco depois surgiu um problema sério: o Instituto não tinha arquivo organizado, nem plano de classificação. Eu já tinha tentado fazer algo semelhante no Instituto Camões, nos anos 90.
O problema agravou-se quando antigos cooperantes, sobretudo da Guiné e logo após o 25 de Abril, precisaram de comprovar, para fins de reforma, que tinham tido contrato e que o Instituto, na altura chamado Instituto da Cooperação, tinha pago a parte devida pelo empregador. Ninguém encontrava essa informação. Para a recuperar, foi necessário organizar todo o arquivo. A partir desse momento dediquei-me inteiramente à organização documental do Instituto de Apoio ao Desenvolvimento.
Na vida nós deixamos sempre rasto, e na administração pública esse rasto é o arquivo. Além disso, os arquivos são património nacional. Como sabemos que pertencemos à União Europeia? Porque tivemos determinados problemas com a Inglaterra? Como conhecemos verdadeiramente a nossa história? Como construo a minha noção de pertença a Portugal? Tudo isso está documentado no arquivo.

É reconhecida como uma das vozes mais experientes na preservação da memória diplomática portuguesa. Para além do cargo, quem é “Margarida Lages”? Que três palavras ou ideias escolheria para descrever a sua forma de estar e de trabalhar, e como se refletem essas ideias na sua relação com a documentação, a diplomacia e a memória institucional?

Sou uma pessoa normal. Tenho três filhos, sou casada há 40 anos. Gosto de ler policiais, ver séries, cozinhar e detesto trabalhos de casa. Essa simplicidade também se reflete na minha relação com a documentação: gosto de ler, gosto de conhecer, e tenho um gosto enorme por biografias e por correspondência. Talvez por isso sinta tanta proximidade com os arquivos. Aquilo que procuro nas pessoas, procuro também nos documentos – histórias, percursos, vidas que se revelam.

© Descendências/Tiago Araújo
© Descendências/Tiago Araújo

O arquivo diplomático português é um repositório de séculos de relações internacionais, decisões políticas e correspondência entre Portugal e o mundo. No desempenho do seu cargo, houve certamente projetos que ultrapassaram a gestão documental para se tornarem verdadeiros marcos. Poderia partilhar alguns exemplos de iniciativas que tenham sido particularmente transformadoras – seja pela sua importância histórica, impacto institucional ou capacidade de abrir o arquivo à sociedade?

O arquivo era consultado por muito poucas pessoas, porque simplesmente não tinha catálogo online. O único conteúdo disponível na internet eram os acordos certificados por nós, aqueles em que confirmamos que o documento está depositado no arquivo e que, posteriormente, são publicados em Diário da República.
Na prática, o “arquivo” que as pessoas imaginavam correspondia apenas ao chamado arquivo histórico. Hoje, porém, todo o arquivo que aqui temos é histórico. Sempre que realizamos missões às embaixadas para recolher documentação, fazemos de imediato a avaliação: organizamos, eliminamos o que já não tem valor probatório e trazemos apenas o que deve ser preservado. Guardamos o que é para guardar e, paralelamente, elaboramos um auto de eliminação onde registamos aquilo que foi destruído. Esse documento fica arquivado e é assinado pelo chefe de posto ou por mim.
Também aqui fazemos avaliação interna. E muita coisa já foi eliminada por não fazer qualquer sentido manter. Quando cheguei, a primeira tarefa foi, literalmente, arrumar. E foi difícil, porque o Convento do Sacramento, onde hoje está o Professor Cavaco Silva, antigo Presidente da República, estava completamente cheio de documentação desorganizada. Pelo Ministério encontrava caixas com documentos originais destinados à eliminação, tudo sem critério. O arquivo estava caótico.
Vim para cá com alguém que tinha uma visão muito clara do que era preciso fazer: a Embaixadora Manuela Franco. Com ela e com a equipa do arquivo, que trabalhou incansavelmente, pusemos mãos à obra. Conseguimos que nos fossem atribuídos armazéns adicionais e transformámos o catálogo, inicialmente criado apenas para a biblioteca, num catálogo também para o arquivo.
O principal obstáculo para publicar o catálogo online eram as regras de segurança do Ministério. Chegaram a dizer-me que “os hackers entrariam por ali”. Criámos então um servidor distinto e, em paralelo, desenvolvemos uma presença online no site do Instituto, permitindo divulgar não só as iniciativas do próprio Instituto como também o arquivo.
A reorganização envolveu igualmente a biblioteca. A Embaixadora Manuela Franco teve uma visão muito clara: criar uma única sala de leitura. Assim o fizemos – uma sala comum para arquivo e biblioteca. Ao integrar ambos no mesmo catálogo, conseguimos ainda criar uma página inicial onde, após cada pesquisa, surgem os resultados da biblioteca e os do arquivo, com o número de exemplares ou documentos relacionados com o tema pesquisado.
Outra prioridade foi reforçar a presença da biblioteca dentro do Ministério. Temos um fundo antigo de grande valor, organizado e estudado por quem hoje é subdiretor e diretor da Biblioteca Nacional, o Professor Ramada Curto e a Professora Paula Gonçalves. Ela identificou todo o fundo antigo e ele fez o respetivo estudo. São documentos adquiridos pelo Ministério, com livros desde o século XVI ao XVIII, todos devidamente inventariados e de enorme relevância.
Consolidada esta primeira fase, tornou-se essencial “amarrar” o arquivo ao Ministério, para que deixasse de existir a ideia de que isto são apenas “papéis velhos” destinados ao lixo. Muitos diziam que era “arquivo morto”. Na verdade, o único arquivo verdadeiramente vivo é o arquivo histórico, porque é esse que continua a ser alimentado e preservado. O que está morto é aquilo que eu escrevo no dia a dia e que, inevitavelmente, vai para o lixo. Esta noção não era evidente para muitos.
Foi, portanto, necessário criar regras claras para todo o Ministério, sobretudo para as embaixadas: nada pode ser eliminado sem o nosso conhecimento e aprovação. Se existe alguma dificuldade com documentação, somos imediatamente contactados. Começámos também a realizar formações nos postos, para que estes pudessem organizar e eliminar no local de forma correta. Vamos lá, deixamos tudo organizado, aquilo que é para eliminar sai com o nosso auto de eliminação e o que vem para cá entra diretamente nas estantes.
Outra iniciativa que implementámos foi a realização de exposições mensais, associadas a efemérides ou temas de atualidade. Sempre que recebemos um espólio, por exemplo, fazemos questão de o assinalar. Um dos casos foi o do Embaixador Futscher Pereira, que nos ofereceu o espólio do pai, antigo ministro e embaixador. Realizámos uma sessão sobre esse espólio e sobre o percurso do pai. Conseguimos também que a filha do Embaixador Franco Nogueira nos oferecesse o arquivo do pai: mais de 200 caixas, atualmente em fase de identificação e tratamento, para futura incorporação no catálogo.

No artigo “Arquivo Diplomático: para além da Administração Pública”, defende que o arquivo não deve ser visto apenas como um serviço interno do Estado, mas como um espaço com impacto cultural e estratégico. O que significa, na prática, olhar para o arquivo diplomático para além das suas funções administrativas? De que forma essa visão transforma a forma como gere, valoriza e comunica a memória diplomática portuguesa?

Significa reconhecer que o arquivo conserva um fundo essencial para estudar não só as relações diplomáticas entre Portugal e outros países, mas também o contexto mais amplo em que o país se movimenta. Muitas vezes, é a partir desta documentação que retiramos ensinamentos sobre a forma como construímos e conduzimos as nossas relações com os outros. O conhecimento que o arquivo oferece pode evitar erros, orientar decisões e, sobretudo, garantir a compreensão e a preservação da memória do país – do que fomos, do que somos e do que poderemos vir a ser.

Num tempo em que o digital domina, continua a defender que “o digital nunca substituirá completamente o papel”, sublinhando que certos documentos exigem a formalidade do suporte físico. Como se gere este equilíbrio entre tradição e modernidade? Quais são, no seu entender, os critérios essenciais para preservar o suporte físico, sem perder a aposta na digitalização, na interoperabilidade internacional e no acesso remoto?

O meu problema é precisamente esse. A questão do digital é muito mais complexa do que normalmente se pensa. Para digitalizar documentos, é fundamental perceber primeiro por que razão o vamos fazer, porque isso implica criar dois arquivos paralelos. E convém lembrar que o espaço digital não é infinito, apesar de agora se dizer que a nuvem resolve tudo. Além disso, os custos são elevadíssimos. Digitalizar é realmente muito, muito caro. E, como podem imaginar, no orçamento do Ministério dos Negócios Estrangeiros a prioridade não é, de todo, o arquivo.
Por isso, não existe necessidade de digitalizar tudo. Aliás, eu não preciso de conservar todo o arquivo. Daqui a dez anos, elimino faturas, livros de ponto, registos de assiduidade e documentação semelhante. Para quê digitalizar esses materiais, se já os tenho em papel e sei que serão descartados?

Os arquivos diplomáticos são, simultaneamente, património histórico e instrumento de política externa – guardam a memória do Estado, mas também servem a sua imagem e legitimidade. Considera que este papel estratégico é plenamente reconhecido dentro do próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros e pela sociedade em geral? O que falta para que os arquivos diplomáticos passem a ser vistos como um ativo central da diplomacia portuguesa?

Amplamente reconhecido não sei… mas valorizado, sem dúvida. Sobretudo no meio académico, tanto nacional como internacional, os arquivos diplomáticos são hoje reconhecidos como uma fonte primária imprescindível para o estudo da História, das Relações Internacionais e das dinâmicas políticas.

De que forma é feita a triagem entre a documentação que deve ser digitalizada – por razões de preservação, consulta ou valor histórico – e aquela que pode permanecer exclusivamente em papel? Que critérios orientam essa decisão e como é que o Ministério tem organizado este processo num contexto em que os recursos, tanto técnicos como financeiros, são sempre limitados?

Nós definimos prioridades muito claras. Fizemos um projeto no âmbito do PRR dedicado à documentação mais antiga, ainda manuscrita, que abrange o período desde cerca de 1850 até ao início da Primeira Grande Guerra. Esta documentação estava guardada num espaço que sempre teve ar condicionado, mas que, quando cheguei, estava em péssimas condições: batia-se a porta e caía o teto, havia caixas acumuladas e muita desorganização. Esse espaço foi entretanto recuperado graças à secretária-geral Ana Martinho, que também recuperou a biblioteca da Rainha, onde se encontram as caixas com o arquivo mais antigo. Decidimos avançar com a digitalização desta correspondência, trocada entre o Ministério e as legações ou consulados no mundo inteiro, porque, sendo manuscrita, degrada-se facilmente com o simples manuseamento. Além disso, as caixas são muito pesadas, e o transporte constante para consulta se tornava trabalhoso e arriscado. A digitalização, nestes casos, é uma forma de garantir a preservação e facilitar o acesso. Antes deste projeto, houve ainda uma iniciativa nacional muito importante: o programa “Nunca Esquecer”, dedicado à memória do Holocausto e da Segunda Guerra Mundial, coordenado pela doutora Marta Santos Pais. Nesse contexto, a FCT abriu um concurso para arquivos e nós concorremos com o acervo do Gabinete dos Assuntos Consulares, onde tinham sido recebidos os pedidos de visto durante o Holocausto. Digitalizámos essa documentação e articulámo-la com um arquivo extraordinário: o da Cruz Vermelha Portuguesa, que inclui fotografias de chegadas de feridos, encomendas e muitos outros registos visuais. Selecionámos um conjunto de imagens que ajuda a “dar vida” aos documentos que digitalizámos.
Digitalizámos também materiais muito procurados, como os anuários diplomáticos, e colocámos igualmente disponíveis os relatórios antigos de cónsules e embaixadores. Documentos que, no passado, eram fundamentais para progressões na carreira ou simplesmente para transmitir análises regulares sobre os países onde estavam colocados.

Portugal tem vindo a afirmar-se também através da diplomacia cultural, da língua e da memória partilhada. Nesse sentido, como vê o papel da Biblioteca e do Arquivo do Instituto Diplomático como pontes entre a diplomacia tradicional e o chamado “soft power”? Que iniciativas têm procurado articular património documental, cultura e presença internacional?

Procurei sempre que o Arquivo Diplomático português ganhasse reconhecimento internacional. Para isso, comecei por participar em diversas reuniões e redes especializadas. A primeira foi a dos editores de documentos diplomáticos. Mais tarde, integrei o Grupo Europeu de Arquivos Diplomáticos (EDA – European Diplomatic Archives), onde procurei contribuir ativamente: sempre que era necessário desenvolver algum trabalho, oferecíamos a nossa colaboração e participávamos em várias iniciativas – exposições, relatórios, projetos conjuntos, entre outros. Paralelamente, passei também a participar nas reuniões da Rede de Arquivos Diplomáticos Ibero-Americanos (RADI).
Ao mesmo tempo, fizemos um esforço de divulgação nos Estados Unidos, através da FLAD e de várias universidades. O resultado é que, hoje, recebemos praticamente tantas solicitações internacionais quanto nacionais. Há picos claros de procura, sobretudo em épocas de trabalhos académicos, e contamos com professores que nos visitam regularmente, além de muitos pedidos vindos do estrangeiro.
Uma parte particularmente significativa das solicitações diz respeito à busca de antepassados. Recebemos com frequência perguntas do género: “O meu avô passou por Portugal com um visto do Aristides de Sousa Mendes; existe algum documento onde apareça o nome dele?”. A procura relacionada com a reconstrução das histórias familiares tem sido enorme. Por isso mesmo, e porque este tema nos chegava constantemente, criámos uma relação com a Sousa Mendes Foundation, dirigida por uma descendente de um refugiado que beneficiou de um desses vistos. Todos os anos, a fundação organiza uma espécie de peregrinação pelos locais emblemáticos ligados ao percurso dos refugiados – Vilar Formoso, Cabanas de Viriato, Figueira da Foz, Caldas da Rainha, Ericeira – e terminam quase sempre aqui, comigo, a consultar o livro de registo do Consulado-Geral de Portugal em Bordéus.
Recordo sempre um momento muito marcante: um jovem de pouco mais de vinte anos pediu-me que procurasse o nome do avô. Quando lho mostrei no livro, começou a beijar-me as mãos. Eu expliquei-lhe que nada tinha feito, apenas lhe mostrara o registo. E ele respondeu: “Mas se não fosse Portugal e Aristides de Sousa Mendes, eu não teria nascido.” É com situações como esta que lidamos e que nos comovem profundamente. Temos também um conjunto vastíssimo de documentação sobre os portugueses na Segunda Guerra Mundial, muito estudado pela professora Cláudia Ninhos. Inclui, por exemplo, registos de portugueses nos campos de concentração. No âmbito do programa “Nunca Esquecer”, que visita regularmente os campos, em Mauthausen encontram-se lá os nomes desses portugueses, hoje documentados e identificados. No Ministério foi igualmente feita uma homenagem não apenas a Aristides de Sousa Mendes, mas a todos os diplomatas que salvaram vidas durante a guerra. Temos dois diplomatas reconhecidos pelo Yad Vashem como “Justos entre as Nações”: Aristides de Sousa Mendes e Sampaio Garrido. Há ainda um terceiro, Teixeira Branquinho, que acredito firmemente que também deveria receber essa distinção, tendo já enviado ao Yad Vashem documentação que ajude a reavaliar o caso. Com todo este trabalho, com a articulação internacional que construímos e com o reconhecimento crescente, é hoje muito difícil imaginar o Arquivo Diplomático português a regredir para o estado em que estava. Neste momento, é um arquivo conhecido e integrado nas redes e debates internacionais.

© Descendências/Tiago Araújo
© Descendências/Tiago Araújo

Sabemos que tem tido um papel relevante na Rede de Arquivos Diplomáticos Ibero-Americanos, onde a cooperação e a troca de experiências são fundamentais. Que balanço faz dessa colaboração? Quais têm sido os principais ganhos, obstáculos e desafios na construção de uma memória diplomática partilhada entre países ibero-americanos?

O balanço é extremamente positivo. A pertença a esta rede permitiu-nos ganhar visibilidade num espaço geográfico onde, de outra forma, seria difícil criar parcerias. Além disso, beneficiámos de vários projetos financiados pela própria Rede, que têm contribuído para divulgar a nossa história comum, não apenas com o Brasil, mas com todo o espaço ibero-americano. O facto de ter assumido a presidência da Rede também facilitou o desenvolvimento de iniciativas conjuntas que reforçaram essa presença internacional. Temos participado ativamente em projetos de digitalização, organização e catalogação documental, no âmbito dos Arquivos Diplomáticos Ibero-Americanos. Já concluímos três ou quatro projetos centrados em documentação do Rio de Janeiro, incluindo a digitalização integral dos acordos latino-americanos, hoje disponíveis online.
O último projeto terminou recentemente e o próximo dedicará atenção ao acervo do Consulado em São Paulo.

A experiência acumulada ao longo de mais de quatro décadas na função pública, somada ao profundo conhecimento técnico e institucional que adquiriu, coloca inevitavelmente uma questão central: como é que todo esse saber, esses métodos de trabalho e esse olhar especializado sobre a documentação diplomática estão a ser transmitidos e preservados dentro do próprio Ministério?

Eu tento transmitir esse conhecimento, embora nem sempre saiba se ele é realmente assimilado. Há muitas coisas que acabo por fazer sozinha, não por falta de vontade de ensinar, mas porque estou na função pública há 43 anos e com tantos anos de experiência faço mais depressa e já tenho um método muito consolidado.
Quando é necessário tomar decisões ou movimentar documentação, o trabalho nunca é totalmente solitário. Para avaliações, por exemplo, vou sempre acompanhada de uma colega, e já enviei outros colegas a missões onde eu não pude ir. No caso das Embaixadas, faço questão de ir pessoalmente, porque o arquivo diplomático é particularmente complexo e muito pouco tipificado. A forma como é organizado depende muitas vezes do próprio embaixador e das condições locais.
Há casos muito paradigmáticos: numa Embaixada encontrei telegramas organizados por temas e o restante arquivo por números. Ou seja, uma lógica completamente incoerente. Todo aquele esforço acabou por não ter utilidade e parte da documentação teve de ser eliminada. A organização arquivística tem de seguir regras, e essas regras são emanadas pela Torre do Tombo e pela Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, que coordena a política arquivística em Portugal.
Além disso, a documentação diplomática está sujeita a regras específicas relacionadas com segurança e defesa do Estado. Para aceder a determinados conjuntos documentais – NATO, defesa, segurança – é preciso credenciação. Temos aqui documentação classificada que só pode ser manuseada por nós. A comunicação dessa documentação obedece a prazos e procedimentos rigorosos: só pode ser divulgada passados 30 anos sobre a data do documento. Após esse período, se for caso disso, é apresentada a uma comissão de seleção e desclassificação, normalmente presidida por um embaixador, que avalia politicamente e em função dos interesses de Portugal. Se for documentação NATO, a desclassificação tem de ser autorizada pela própria NATO. E, para além disso, temos sempre de considerar o RGPD e as regras de proteção de dados.
Depois de desclassificada, a documentação permanece acessível de forma definitiva. De resto, não temos o arquivo inteiro classificado. Apenas aquilo que, pela sua natureza, exige proteção.

Os arquivos e bibliotecas enfrentam, muitas vezes, a invisibilidade institucional e a escassez de recursos. Que medidas considera indispensáveis para reforçar o apoio político e orçamental a estas estruturas, garantindo que deixam de ser apenas “bastidores da história” para assumirem um papel central na cultura e na diplomacia nacional?

Para já, é preciso dar cultura. É preciso ensinar as pessoas a olhar para o seu passado e a desenvolver sentido crítico. E sentido crítico não é criticar; é ser capaz de perceber, de analisar e de pensar sobre aquilo que se vê.
O nosso problema é que somos imediatistas e reativos. Não somos proativos. Falta-nos estratégia. Já viu alguma estratégia pensada a longo prazo em Portugal? É difícil. É uma questão de mentalidade, de maneira de estar. Ninguém pensa no impacto futuro das decisões de hoje. E eu enfrento isso todos os dias. Dou um exemplo. Estava a falar com uma colega sobre estas questões. Hoje em dia, como é que as pessoas comunicam? Por WhatsApp. Ministros, gabinetes e diretores-gerais não escapam a isso. E o que é que ela me dizia? Quando olhamos para um documento da Idade Média, não sabemos quantas conversas, quantas discussões ou quantos problemas estiveram na sua origem. E estamos a viver uma época semelhante. A partir do momento em que um ministro, um secretário de Estado, um diretor-geral ou um funcionário resolve assuntos por WhatsApp, perde-se tudo. Não fica rasto.
O meu problema com o sistema de gestão documental é que as regras não são seguidas e ainda não tivemos condições para criar um plano de preservação digital dentro do Ministério. E o que é que isso implica? Implica atenção constante e vigilância permanente sobre tudo o que é digital.
Dou outro exemplo. Temos online uma exposição chamada “Vidas Poupadas”. A exposição “Vidas Poupadas” é sobre três diplomatas – Aristides de Sousa Mendes, Sampaio Garrido e Teixeira Branquinho – e foi criada no tempo do Dr. Jaime Gama, pela Embaixadora Manuela Franco, como forma de homenagear e dar a conhecer a ação de Aristides de Sousa Mendes, que ainda hoje não é consensual dentro do Ministério. Essa exposição foi feita em versão digital e acabou por “crashar”. Neste momento, só está acessível através do arquivo.pt, que preserva periodicamente os sites que vão sendo produzidos.

Como imagina o arquivo diplomático português daqui a uma década? Quais são os seus grandes objectivos – maior acessibilidade, modernização tecnológica, visibilidade internacional, cooperação com universidades e instituições culturais – e que obstáculos prevê no caminho para alcançar essa visão?

Imagino que, se essa valorização continuar, o arquivo permanecerá vivo, consultado e estudado. Os meus objetivos sempre foram, e continuam a ser, todos aqueles que referiu, aos quais acrescentaria a necessidade de um investimento mais robusto na sua preservação. Acredito, aliás, que a pressão dos investigadores e dos próprios utilizadores será decisiva para orientar e acelerar essa evolução.

No contexto da lusofonia, há uma oportunidade única de criar uma rede de arquivos e bibliotecas diplomáticas que espelhe a história comum dos países de língua portuguesa. Que desafios e potencialidades identifica nesta cooperação? Acredita que é possível criar uma plataforma de memória partilhada que una as várias geografias da língua portuguesa?

Tenho de admitir que a cooperação com outros países é ainda bastante limitada. Gostaria de ter mais contactos, mas não consigo estar presente em todos os lugares. Quem mantém uma colaboração mais intensa são o Instituto Camões, a Torre do Tombo e a Biblioteca Nacional. Participei, por exemplo, num projeto de identificação de documentação relacionado com o Brasil. Contudo, no caso dos países africanos, essa cooperação é bastante restrita.
O arquivo que considero fundamental para nós, tanto em termos de relações diplomáticas como de estudo da história comum, é o arquivo de Moçambique. Deve ser o melhor arquivo da África Austral. Visitei-o há muitos anos, ainda no século passado, e na minha última ida não consegui lá estar devido a sobrecarga de trabalho. Apesar disso, o arquivo mantém-se excecional, guardando documentação extremamente relevante, sobretudo sobre os movimentos de libertação e o período pré e pós-guerra.
Outro arquivo com que mantenho relações muito boas é o Arquivo Histórico Ultramarino, que também tem grande ligação com o nosso trabalho. Mas a realidade varia muito consoante o país. No caso do Brasil, por exemplo, existem dois arquivos diplomáticos: um no Rio de Janeiro, antigo, e outro no Itamaraty, em Brasília. Além disso, há a Biblioteca Nacional e inúmeras universidades. A organização arquivística e bibliográfica do Brasil é, portanto, muito diferente de qualquer outro país. Nos restantes países, o estado de evolução dos arquivos varia significativamente, muitas vezes condicionado por guerras civis, períodos de paz ou prioridades económicas que acabam por sobrepor-se à preservação documental. Atualmente, não temos nenhuma relação direta de trabalho conjunto com estes arquivos. Na CPLP houve uma tentativa de colaboração, mas não produziu resultados significativos.

Essa foi, provavelmente, a pior pergunta que me podia fazer. Não tenho um legado institucional para deixar a ninguém; o meu verdadeiro legado são os meus filhos. Espero, acima de tudo, que o que lhes transmita seja o gosto pela causa pública, pelo serviço público e a honra em ser funcionário público. Muitas vezes fala-se mal dos funcionários públicos, esquecendo que fomos educados por eles, que tivemos professores que eram funcionários públicos, que quando vamos ao médico é um funcionário público, e que o enfermeiro que nos trata ou que cuida de nós também é funcionário público. Parece que isso se esquece com facilidade. Mas estar ao serviço do público, servir a causa pública, é uma das coisas mais importantes que podemos fazer. Não digo que eu seja essencial ou insubstituível, longe disso. Há muitas pessoas que fazem coisas muito mais importantes ou duradouras. Mas aquilo que gostaria de deixar às pessoas é uma mensagem de persistência: que não baixem os braços, que não desistam. Que sejam resistentes. Tudo aquilo que consideramos importante exige luta. É preciso questionar, discutir, afirmar que não aceitamos certas situações quando chega o momento certo, seja com quem for.

© Descendências/Tiago Araújo

1 Comentário

  • Ana Martinho
    1 dia ago Publicar uma Resposta

    Bravo querida Margarida e obrigada ! Continua , é tao importante o que fazes ! Ana Martinho

Deixe um Comentário

Your email address will not be published.

Start typing and press Enter to search