Modos de estranheza: escritores e diplomatas
A variante do escritor-diplomata faz confusão. Que quer esse estranho animal de duas cabeças? Não lhe bastaria uma, como aos outros mortais? Mas se contamos na literatura universal negociantes de vinhos, inspetores dos monumentos históricos, caçadores de baleias, jogadores cobertos de dívidas, empregados de seguros, detetives privados e mesmo grandes criminosos, porque seria negado esse privilégio aos diplomatas?
Embaixador-escritor italiano Maurizio Serra
Os sucessos na carreira e êxitos diplomáticos destes seres bicéfalos têm sido muito diversos e variáveis. Para não citar o caso extremo de Dante, que, após a missão diplomática que conduziu em Roma, foi condenado pela sua cidade de Florença a ser queimado vivo, sorte a que escapou pelo exílio, encontramos percursos bem diferenciados, desde Chateaubriand, que foi embaixador na Santa Sé e depois Ministro dos Negócios Estrangeiros de França, grandezas a que ele não nos poupa nas suas vaidosas, mas geniais, Mémoires d’Outre Tombe, a Stendhal, que nunca passou de cônsul em Civitavecchia e era azedamente repreendido quando era apanhado pelo seu ministro em Paris, fora do posto (o que aconteceu muitas vezes).
Mas para além das diferentes apreciações que o poder político faça dos seus diplomatas-escritores (que, como vemos, podem oscilar entre a imolação pelo fogo e a atribuição das maiores honrarias e responsabilidades) existe do outro lado o juízo que a comunidade literária (os pares escritores do diplomata- escritor) tende a fazer destas figuras. E essa valoração é também bem diferenciada.
Para começar com um caso sugestivo, tomemos como ponto de partida uma frase de um manifesto surrealista de 1925 que, ao atacar um grande poeta francês, Paul Claudel, então embaixador no Japão, tecia as seguintes considerações:
Para nós não pode haver equilíbrio nem grande arte. Há muito que a ideia de Beleza está caduca. Só fica de pé uma ideia moral, como por exemplo que não se pode ser ao mesmo tempo embaixador e poeta.
E este manifesto lembra-nos que, apesar de Octavio Paz e de João Cabral de Melo Neto, de Paul Claudel e de Pablo Neruda, a ideia de um poeta a exercer funções de representação do Estado provoca ainda resistências e reacções “dos dois lados da barricada”, por assim dizer. Para uns, a ideia de “poeta” remete para uma conotação estereotipada a um irresponsável que vive no mundo dos sonhos e das ilusões e que não revela assim capacidade para assumir a defesa rigorosa e pragmática dos interesses políticos, económicos e sociais do Estado, que um diplomata tem por missão…
Para outros, o poeta só pode ser um “maldito”. Avesso aos ritos e às normas sociais, em oposição radical a todos os poderes e instituições, ele (ou ela) só pode viver à margem, junto do excesso, da marginalidade ou da loucura. Dessa concepção faz-se eco o manifesto surrealista acima citado. Que Wallace Stevens tenha sido diretor de uma companhia de seguros, Fernando Pessoa empregado de comércio, T.S. Eliot funcionário de um banco ou Gottfried Benn médico de um hospital não os interessa nem demove desta ideia, digna de um ultra-romantismo exacerbado, mas que os surrealistas de 1925 (e eram Aragon, Breton, Éluard, Artaud, Bousquet, Desnos, alguns dos maiores poetas franceses do século passado) perfilharam, ao ponto de responderem o seguinte a Claudel, depois de ele, justamente para mostrar que um poeta pode ser também um homem prático, gabar os êxitos da sua, como se diria hoje, “diplomacia económica”:
Nós declaramos considerar a traição tudo o que, de uma forma ou outra, possa atingir a segurança do Estado, bem mais conciliável com a poesia do que a venda de “grandes quantidades de toucinho” por conta de uma nação de porcos e de cães.
E, com efeito, na entrevista a que este manifesto reagia, o poeta-embaixador Paul Claudel, para mostrar bem a sua capacidade e eficiência nesta área económica, que sempre foi importante na vida diplomática (nós não inventámos nada), dizia expressamente:
Durante a guerra, fui à América do Sul (esteve em posto no Rio de Janeiro) para comprar trigo, carne em conserva e toucinho para o nosso Exército e fiz ganhar ao meu país duzentos milhões.
Não é fácil, portanto, ser aceite pelos dois mundos. Para um lado da barricada, uns “parvos duns poetas ou uns loucos” (citando a “Gazetilha” de Pessoa/Campos) que vieram meter-se em assuntos de gente séria. Para o outro lado, qualquer diplomata que exerça funções públicas está forçosamente comprometido com o poder, corrompido pelo Estado e pelas suas mordomias, constituindo assim exatamente o inverso da imagem aurática da poesia concebida por esses poetas. E ai dele se vai a ministro!

Não se diga, porém, que os diplomatas beneficiaram na sua carreira com o estatuto de escritores ou os escritores aumentaram o seu êxito com a qualidade de diplomatas. Começando pela nossa casa, como veremos adiante, Garrett teve uma carreira conturbada pelas suas opções políticas, Eça teve uma normal carreira de cônsul, que começou por um dos piores postos (Havana) e terminou no melhor (Paris), António Feijó passou quase toda a sua vida diplomática em Estocolmo, após ter sido brevemente e sem entusiasmo cônsul no Brasil e António Patrício teve igualmente uma carreira mediana, entre Cantão e Caracas, passando brevemente por Londres e não chegando a ocupar, por morte, o lugar de ministro em Pequim – mas essa mediania conheceu o sobressalto da perseguição política, quando a ditadura de Sidónio Pais o afastou temporariamente da carreira diplomática.
Com excepção do Quai d’Orsay no período entre as duas guerras, onde, na sequência de Claudel, os chamados “Berthelot boys” (Paul Morand, Jean
Giraudoux e, sobretudo, Alexis Léger, conhecido enquanto poeta como Saint-John Perse), sob a égide do secretário-geral Philippe Berthelot, constituíram um real grupo de poder e influência dentro do Ministério e deram até origem a uma moda literária que o crítico da época Albert Thibaudet qualificou como “littérature à la valise” (referindo-se por esta expressão à “mala diplomática” ) e com excepção também da América Latina, onde grandes escritores como o já citado Octavio Paz, mas também Ruben Dário, Miguel Angel Astúrias, Gabriela Mistral, Pablo Neruda, Alejo Carpentier, Jorge Edwards, foram prestigiados embaixadores dos seus países, não vemos que as duas cabeças (na expressão de Maurizio Serra) se ajudem muito uma à outra. Com excepções de peso – certamente Claudel, mas sobretudo Saint-John Perse.
Ao ler a exaustiva biografia que lhe foi dedicada por Renauld Meltz, não ficamos com qualquer dúvida de que o embaixador Alexis Léger e o poeta Saint-John Perse souberam muito bem estender a escada um ao outro – Léger longos anos como secretário-geral do Quai d’Orsay, sucedendo a Berthelot, mas não querendo seguir o seu antecessor no incentivo aos escritores da diplomacia, antes pelo contrário; Saint-John Perse a dever sem dúvida em alguma coisa o Prémio Nobel da Literatura às pressões diplomáticas do seu amigo Secretário-Geral das Nações Unidas, o sueco Dag Hammarskjold.
Ao contrário de outros diplomatas, como Morand, que escolheram Pétain e a colaboração, Alexis Léger emigrou durante a Segunda Grande Guerra para os Estados Unidos, onde cometeu um erro político fatal para a sua carreira: frontalmente hostil a De Gaulle, veio influenciar Roosevelt na funda hostilidade que o Presidente americano sempre sentiu pelo líder da Resistência e futuro Presidente da França, hostilidade que só a influência de Churchill (que não era um incondicional, longe disso, do general De Gaulle, mas que queria, com realismo e visão, manter a França como potência europeia aliada no pós-guerra) logrou demover. Naturalmente, após a libertação da França, Léger, embora nunca tenha sido um colaboracionista, afastou-se da diplomacia, por ser radicalmente incompatível com Charles de Gaulle.

Compreende-se que poucos anos depois do regresso de De Gaulle ao poder e com o gaullista André Malraux candidato ao mesmo Prémio Nobel, a decisão da Academia Sueca, sempre avessa às influências diretas das capitais, de premiar Saint-John Perse não tenha caído bem junto do governo francês. Este poeta-diplomata podia estar em desgraça como diplomata, mas ficou em graça como poeta.
O Brasil teve no Itamaraty aquele que é, a meu ver, o maior prosador da língua portuguesa no século XX, João Guimarães Rosa. Rosa era diplomata de carreira, foi cônsul em Hamburgo e depois ocupou altas funções no Ministério. Também dois dos maiores poetas de sempre da língua portuguesa, João Cabral de Melo Neto (que foi embaixador em Dakar e cônsul no Porto e me aconselhou pessoalmente a ser sempre cônsul e nunca embaixador, a bem da poesia) e Vinicius de Moraes (expulso da carreira pela ditadura militar) foram membros da carreira diplomática brasileira.
Em Portugal, a ligação entre diplomacia e literatura aponta-nos sempre em primeiro lugar para a figura do ilustre membro da carreira consular (na altura separada da carreira diplomática) José Maria Eça de Queirós. Quis sempre ser cônsul, recusou uma hipótese (aliás, remota) de vir a ser embaixador no Brasil e António Nobre, que o visitou em Paris, descreveu a sua atividade consular como resumida a vir assinar o expediente ao consulado no fim da manhã. Trata-se, a meu ver, de uma injustiça. Eça levou muito mais a sério a profissão do que se pensa geralmente e quer os relatórios consulares que escreveu, quer a correspondência sobre o empréstimo que foi negociar a Londres estão aí para o testemunhar. O que se passou foi que Eça não escondeu o seu pouco interesse pela poesia de Nobre – e isso é algo que um poeta nunca pode perdoar!
Grande amigo de António Nobre, coube ao poeta e diplomata Alberto de Oliveira, fundador do chamado “neo-garrettismo”, vingar-se da geração de Eça no seu livro muito crítico Eça de Queirós (1919).
Quanto a Almeida Garrett, por pouco tempo encarregado de negócios em Bruxelas e autor de uma inteligente análise de política internacional que é o Portugal na Balança da Europa, a sua hostilidade aos cartistas e à Rainha D Maria II afastou-o de mais altos voos na diplomacia. Tinha acabado em 1835 de ser transferido de Bruxelas (onde foi completamente afastado das negociações relativas ao casamento da Rainha D. Maria II, o que sofreu com amargura) para ser colocado em Copenhaga, quando a Rainha, num seco despacho, o demitiu sumariamente. Mais tarde, chegou a ser ministro dos Negócios Estrangeiros num governo de Saldanha, mas apenas durante exatamente treze dias, de 4 a 17 de Agosto de 1852. Teve uma ativa e brilhante vida pública, mas arredada da diplomacia.
Foram muitos os portugueses que uniram as condições de escritores e diplomatas, desde o Padre António Vieira e a Marquesa de Alorna, passando por Alberto de Oliveira, Guerra Junqueiro, Manuel Teixeira Gomes, Abel Botelho (estes três últimos nomeados embaixadores em 1911, pela recém-instaurada República Portuguesa), António Patrício, António Feijó, António Ferro, Guilherme de Castilho, Armando Martins Janeira, Albano Nogueira, Marcello Mathias/Pablo La Noche, Marcello Duarte Mathias, Álvaro Guerra, José Fernandes Fafe, José Augusto Seabra, Paulo Castilho.
Há que distinguir, porém, entre os escritores cuja profissão foi a diplomacia e os escritores chamados a exercer funções diplomáticas pelo seu prestígio literário ou pelo seu perfil político. Eça tinha a carreira como ganha-pão, Garrett foi diplomata enquanto político ativo.
Em ambos os casos temos personalidades de escritores confrontados com a experiência da vida diplomática em todas as suas servidões e grandezas.

Não se diga que estas criaturas escolheram como modo de vida essa ociosidade paga que o jovem Eça de Queirós nas Farpas considerava ser a vida diplomática (mal paga embora, como numa outra Farpa ele reconhece). A experiência sempre incide na escrita, mesmo que se não queira mostrar.
Seguindo, porém, o critério de ligação profissional à diplomacia, teríamos de distinguir os casos de Eça de Queirós, Alberto de Oliveira, António Patrício, António Feijó, Guilherme de Castilho, Armando Martins Janeira, Albano Nogueira, Marcello Mathias/Pablo la Noche, Marcello Duarte Mathias e Paulo Castilho (escritores-diplomatas por opção profissional) dos demais nomes acima referidos (escritores-diplomatas por nomeação política).
Mas qualquer que tenha sido o seu modo de nomeação, o escritor que é ao mesmo tempo diplomata ganha uma experiência de mutação e estranhamento que forçosamente se irá repercutir na sua escrita, mesmo que não o queira fazer transparecer.
Temos de reconhecer, porém, que é mais naqueles que tiveram a diplomacia como escolha de vida profissional que essa experiência veio produzir efeitos mais duradouros nas suas obras.
Assim, na poesia de António Patrício e de António Feijó o “estranhamento” surge através da transposição poética ora de um cosmopolitismo com ares de Europa (Patrício) ora de um exotismo oriental (o Feijó do Cancioneiro Chinês), ambos bem enraizados na estética finissecular que ambos autores partilham.
Certamente não é privilégio dos diplomatas, antes comum aos “estrangeirados”, ganhar a capacidade de olhar de fora para dentro como quem sabe que está ao mesmo tempo fora e dentro e em nenhum lugar totalmente. O mesmo “estranhamento” encontramos num Fernando Pessoa (é verdade que enteado de um cônsul e por isso educado na África do Sul…), num Rodrigues Miguéis, num Jorge de Sena. O mesmo “estranhamento” que encontramos na poesia de Patrício e Feijó, nos romances de Paulo Castilho, nos diários e memórias de Marcello Duarte Mathias.
Que nos dá a carreira de diplomata que a estranheza da nossa distância de nós próprios nos não tenha já oferecido (e por isso escrevemos)? Talvez um olhar mais ciente e cúmplice do mundo dos outros e da identidade dos homens por cima de todas as suas diferenças. O olhar de compreensão profunda, que nos aparece como premonitória, de um Claudel na China ou a identificação de um António Feijó com os poemas chineses que traduziu a partir de uma outra tradução – tudo são modos de aprender a olhar a partir do olhar dos outros, aprendizagem a que a carreira diplomática obriga, mesmo que muitos a não alcancem. Porque, afinal, como nos lembra o grande poeta espanhol António Machado:
El ojo que ves no es
ojo porque tú lo veas
es ojo porque te ve
Luís Filipe Castro Mendes, Embaixador