Ouvir e falar com os nossos olhos?

O papel da máscara na equitação terapêutica


Surgiu de modo inesperado e inusitado… Revolucionou as logísticas rotineiras de entrada em casa, os sábados de supermercado e os domingos de notícias… A imperativa de “ficar em casa”, a minimização dos contactos sociais e o uso obrigatório da máscara, que trouxe mudanças significativas à forma como as pessoas se relacionam, com consequências na sua saúde mental. O ser humano como criatura social, para comunicar com o outro, recorre à linguagem verbal e não-verbal, sendo a expressão facial, um cartão de visita que permite “ler o outro”. Esta leitura, além de ser influenciada pelos diferentes contextos sociais e culturais, também depende de um conjunto de competências, nomeadamente ao nível do reconhecimento emocional facial. Para pessoas com dificuldades específicas na comunicação e na relação, como é o caso das pessoas com perturbação do espectro autista (PEA), a máscara, além de ser um acessório incómodo, tem vindo a dificultar esta interação, sendo sentida pelos técnicos como geradora de ruído na comunicação bilateral.

São vários os técnicos de diferentes modalidades terapêuticas, que dão conta deste impacto na sua atuação, nomeadamente na equitação psicoeducacional. Este modelo de intervenção tem comprovado ser muito eficaz junto de pessoas com PEA, revelando-se este contacto da criança/jovem com o animal, um contexto único, autêntico e promotor do vínculo relacional. O contacto corporal potencia esta conexão – sendo que o cavalo funciona como elo, facilitador da relação terapêutica. Vários benefícios são observados na aplicação desta terapia, nomeadamente, a diminuição da frequência cardíaca, melhorias ao nível cognitivo, na linguagem, e na interação com o próprio e com o mundo, entre outros. A situação pandémica atual modificou e trouxe desafios acrescidos à intervenção terapêutica neste contexto. Uma vez que a máscara oculta cerca de 60-70% do rosto humano, privilegia-se os olhos e a voz como principais vias de comunicação das emoções – isto é, passámos também a “ouvir e falar com os nossos olhos” – ocorrendo uma diminuição da receção de grande parte da informação, por falta de acesso à leitura labial e ao estado emocional do outro, com várias repercussões nas diferentes áreas do desenvolvimento.

Diversos estudos têm indicado que a máscara acarreta desafios específicos no tratamento de pessoas com PEA, tendo impacto na interação social e na qualidade das intervenções terapêuticas, e particularmente, aquelas que recorrem ao contacto/proximidade física e à expressividade emocional, como é o caso da equitação psicoeducacional. Em muitas ocasiões, o uso da máscara torna-se um meio pouco viável para estas pessoas, pelas suas caraterísticas. Relativamente ao trabalho junto das famílias, este envolve, entre outros, a função de suporte e de recurso para minimizar o seu isolamento social que, em muitos casos, se acentuou.

Torna-se relevante, assim, refletir sobre outros aspetos: poderá a máscara funcionar, simultaneamente, como um meio de proteção da saúde e de barreira na relação com o outro? O não permitir reconhecer as caraterísticas do rosto do outro, afetará o nível de conexão, e tornará o contacto menos humanizado? Que outros recursos teremos de mobilizar para superar estas dificuldades?

No teatro, a máscara simboliza uma persona, o ocultar da verdadeira identidade. Na relação terapêutica, a máscara descarateriza a identidade do técnico, podendo constituir uma barreira psicológica na construção da relação terapêutica. Pode-se pensar em alguns meios alternativos auxiliares, para minimizar os impactos do uso da máscara, tais como: apontar para pistas visuais ou “sorrir com o olhar”, e a utilização de máscaras faciais transparentes, sempre que possível. Importa reforçar que o técnico deve sempre sobrelevar o vínculo terapêutico, baseado numa relação de empatia, genuinidade e aceitação das particularidades individuais. Contudo, embora essenciais, estes aspetos têm o potencial de, por vezes, serem insuficientes.

Em suma, a máscara alterou, de facto, o contexto e a forma de nos relacionamos, e trouxe outros desafios à intervenção da equitação psicoeducacional, com as crianças/jovens com perturbação do espetro autista (PEA) e as suas famílias. É inegável o proeminente papel da máscara facial nos contextos atuais, e vários estudos têm reconhecido o impacto negativo no reconhecimento emocional e estabelecimento da relação, nas pessoas com PEA, tornando-se relevante pensar e ponderar estratégias que tentem minimizar as consequências do uso da máscara.

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