Porque mudam as línguas?

As mudanças são, quase sempre, muito subtis. Aparecem porque cada um de nós diz cada som de forma ligeiramente diferente — temos bocas e gargantas diferentes e ouvimos as palavras também de maneira ligeiramente diferente. Se pedirmos a cem pessoas para dizer a letra «e» e se analisarmos com atenção cada som, veremos que são todos ligeiramente diferentes. E, no entanto, reconhecemos essa nuvem de sons diferentes que saem das bocas dos falantes como o mesmo som, o que nos permite construir palavras que partilhamos com os outros (as línguas vivem nesta permanente tensão entre o que é individual e o que é colectivo).
Ora, essa nuvem de sons vai mudando ao longo do tempo — e no espaço. Os sons que ouvimos em determinada época para representar a mesma letra (uma letra será a representação gráfica dessa nuvem) não serão os mesmos. Usando os termos comuns na linguística, a nuvem de fones em redor de cada fonema vai mudando ao longo do tempo. Pense o leitor na miríade de maneiras de dizer o som «v» em todo o país. Se reparar bem, há muitas leituras possíveis. Pois bem: os sons mudam, mas continuamos a reconhecer o mesmo fonema, ou seja, a mesma unidade. (Já agora, uma nota: a ortografia tende a representar a fonologia da língua e não a fonética. Se representasse a fonética, teria de ser diferente de região para região, de época para época…)
Bem, voltemos à nossa pergunta: porque mudam as línguas? Este é um facto das línguas pouco conhecido e muito interessante: a mudança ao longo do tempo acontece porque existe variação entre os falantes — e isto acontece inevitavelmente, porque não há dois falantes iguais, com corpos iguais e vidas iguais. Falo de algo concreto, físico: cada som é dito de maneira diferente porque as gargantas e as bocas de cada falante são diferentes — e a maneira como aprendemos o som também é sempre diferente (somos todos ensinados por um conjunto de pessoas diferente).
Ora, as tendências de determinados falantes ou regiões vão ganhando força, substituindo as tendências de outros falantes ou regiões — num jogo muito complexo e imperceptível ao «ouvido nu», este ou aquele som são trazidos para a frente do palco linguístico. Só um exemplo concreto: o som «tch» era muito comum no país inteiro. Por caminhos que são impossíveis de reconstruir, começou a recuar, a ser substituído pelo som «ch», que já existia, mas era usado apenas em certas palavras. Desta forma, perdeu-se a distinção que ainda hoje vemos, na ortografia, na diferença entre a letra «x» e o dígrafo «ch».
Estas mudanças não são apenas sonoras: acontecem no significado das palavras; na conotação que damos a cada palavra; nas nossas atitudes perante cada palavra (ou conjunto de palavras). Tudo isso muda ao longo do tempo — porque é ligeiramente diferente em cada falante. Na contínua negociação do significado das palavras, vamos sublinhando este significado e vamos apagando o outro; vamos começando a achar que esta palavra é menos aceitável — ou que afinal já podemos dizer esta outra palavra em qualquer situação. É um jogo subtil, complexo, difícil de descrever.
Como é que tão poucos reparam nesta mudança contínua?
Primeiro, porque a escrita e a existência de uma norma leva-nos a crer que a boa língua é a língua que existe, parada, nos dicionários e gramáticas na estante. Ora, nem nos dicionários nem nas gramáticas ela está parada, mas muitos estão convencidos de que sim. Mais do que isso: estas mudanças, que arrepiam tanta gente, fazem-se de forma lenta, ao longo de décadas ou séculos.
Depois, quando de facto notamos algumas das mudanças, um mecanismo mental que me parece existir em todas as sociedades leva-nos a crer que a mudança é sempre um erro. Como ainda há pouco tempo ouvi um linguista a dizer, com muita graça, todos nós aceitamos que a língua muda — só não gostamos da maneira como ela muda…
E, no entanto, ela muda! Continuando a olhar para os sons, podemos ver como o «r» português está a mudar neste preciso momento! E também podemos ver como a qualidade das vogais nas sílabas átonas é muito diferente da pintura que nos dá a escrita — não só o «o» se lê «u» em muitas sílabas átonas, como, em muitos casos, esse «u» tem já uma leitura muito mais sumida do que pensamos — numa conversa normal, o último «o» de «todo» já é uma vogal quase desaparecida.
Isto são apenas exemplos. Basta ouvir o discurso de um falante de 70 anos e outro de 17 anos numa qualquer terra portuguesa para vermos diferenças entre falantes vivos. Aliás, voltando atrás, basta ouvir dois falantes quaisquer para vermos como a língua não é igual em duas bocas…
Enfim, há palavras que ficam iguais durante muito tempo, outras que mudam rapidamente. Há sons que sofrem alterações que levam a mudanças noutros sons. As vogais, por exemplo, estão sempre a dançar um pouco, nunca estão fixas, pois o seu timbre depende da exacta forma que damos à boca e, por isso, ninguém produz uma vogal exactamente igual a outra pessoa. Quando a nuvem de sons em redor de uma letra vogal começa a aproximar-se de outra vogal, esta desloca-se para manter o mesmo grau de diferença (um mecanismo inconsciente que encontramos em várias línguas).
Quando uma língua tem uma norma escrita, a mudança irá desacelerar — a norma é uma força que tende a uniformizar a língua entre os falantes de cada época e, assim, pela lógica exposta acima, acaba por actuar como travão da mudança ao longo do tempo. No entanto, a norma não é um travão a fundo. A língua continua a mudar — e, com ela, a norma. O processo de mudança da norma costuma ser ligeiramente mais consciente e, por vezes, tem cariz político (e muito arbitrário). Já o processo praticamente invisível de constante desbaste e reconstrução das palavras — esse é suave, imperceptível, visível apenas quando olhamos para trás, para os séculos, e percebemos as diferenças nas fotografias tiradas no momento do registo escrito das palavras.
O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico