Espargos-Bravos
Complemento frutuário nas dietas rurais
Aqueles brotos saídos da terra, as ditas corrudas da brava ruralidade
de coroar toleiras e catas imperdíveis de muitos transmontanos
espárragos, aspáragos, aspargos, espargueiras, esparregueiras
apenas formas gráficas variantes, incomuns (…) amargos, bravios, silvestres, os trigueiros, os espargos do monte, outras fonias ― inconvenientes ao exercício agrícola e de recolha bem arrelienta, até torturante quando se perfilam nos matagais
os Asparagus acutifolius L., que aparecem por toda a região de particularidades mediterrânicas, A. aphyllus L., diferenciando-se dos outros por apresentarem caules cobertos de espinhos desiguais, normalmente o central de cada fascículo mais comprido e mais grosso que os restantes, e A. albus L., apenas referenciados no Vale do Douro Superior
são uma das iguarias mais antigas nas mesas familiares da região alto-duriense [e alentejana], e dos vegetais silvestres desde sempre recolectados na orla mediterrânica ou em locais de características agro-climáticas similares. E são estes espargos ainda indomáveis aos caprichos agronómicos que aqui têm o consequente estatuto de identidade gastronómica ― em omeletas, tortas e tortilhas, ovos mexidos, quebrados, em migas verdes, caldos, sopas secas, empadões (…) e arrozes.
Recatos do passado
Teofrasto, filósofo peripatético na Grécia Antiga
é bem capaz de ter sido o primeiro dos sábios a escrever acerca dos préstimos dos espargos na [sua] História das Plantas, um século antes do início da romanização da península. Penélope Ody, conhecida herbalista dos nossos dias, in O Guia Completo das Plantas Medicinais, transcreveu [-nos], entre outras, estas citações espargueiras do escritor naturalista Plínio, o Velho
«(…) o espargo é um dos alimentos mais benéficos para o estômago»; «melhora a visão, activa os intestinos, é afrodisíaco, muito útil como diurético e alivia a dor nos rins»; «…se um homem for esfregado com uma mistura de espargo triturado e óleo, diz-se que nunca será picado por uma abelha».
Eloquências alquimistas que manifestam bem a paixão por tal “verdura dos deuses”. Certamente existirão outras, tão ou mais eloquentes, próximas ou mesmo anteriores ― do primórdio da dieta mediterrânica associada aos herbae que servem de medicamentos e de incentivo ao prazer, das conservas tipo pickle sugeridas por Columella ou dos louvores sermonários de Dioscórides — não só de autores e costumes greco-romanos! Já lá vão quase dois mil anos! Também o médico de D. João V, o mirandelense Francisco da Fonseca Henriques, há mais de trezentos anos, na obra Anchora Medicinal… e, cem anos depois, o profº da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, o foz-coense Jeronymo Joaquim de Figueiredo, in Flora pharmaceutica e alimentar portugueza …, lhe resumem tão factíveis qualidades medicinais.
Acerca dos outros, os espargos de horta
Asparagus officinalis L., domados pelo desejo, deitados ao gosto pelo formato fálico, amansados pela persistência humana, parecem ter origem nas regiões mediterrâneas ou [algures] nos solos em torno do rio Jordão ou do Nilo, onde foram desbravados há mais de 2 5000 anos. E talvez tenham sido os antigos egípcios o primeiro dos povos a cultivá-los pelas afamadas propriedades medicinais que lhe iam acrescentando, registando-os em frescos e pinturas de monumentos fúnebres como oferenda aos deuses.
Na antiga China, falando igualmente de há 2 000 anos atrás
já em tempos mais achegados aos dias de hoje, eram apenas utilizados em comeres terapêuticos, para tratar tosses secas e fortalecer pulmões debilitados. Eram (dizem que ainda o são) destinados aos tísicos! […] Sabe-se que os gregos dos idos socráticos também os apreciavam em desempenhos atípicos, para espantar tristezas conjugais, e os romanos – que tanto lhe destinaram feitos de dimensão sobrenatural – foram os grandes dinamizadores do seu consumo gastronómico e a eles se deve a responsabilidade da introdução do seu cultivo até às costas do Mar Báltico, por onde passaram e demonstraram poder. Os árabes, povo mais pragmático que criativo, também eles mestres dos meandros culinários, que desde cedo os comercializaram para consumo em cru, seguindo os preceitos da lei das semelhanças, ter-lhe-ão elevado mais os supostos atributos afrodisíacos do que as suas reais virtudes nutricionais. A este propósito, vejam-se os sorrisos poéticos da obra Jardim Perfumado [lendário manual de caracter sexual, escrito pelo xequeMuhammad Al-Nafzawi no início do séc. XV], sobejamente conhecida e já bem esmiuçada pelos estudiosos das artes de excitação da mente, em que exalta as façanhas daqueles tão milagreiros turiões.
Sistematizando. Após as invasões bárbaras do séc. VIII/IX
com o fim da [primeira] Pequena Idade do Gelo, desaparecem praticamente das rotinas agrárias ocidentais — recolecção e/ou amanho. Conservaram-se somente na Espanha arabizada até finais da Idade Média (reajustaram-se às novas condições climáticas?) voltando a ser dinamizados, os espargos de cultivo, no centro e norte da Europa durante os séc.ˢ XVI-XVIII. Quer à boleia da cozinha italiana que emergia das consequências sociais do período renascentista, em simultâneo com a moda dos ajardinados hortos levada para França por Catarina de Médicis, que – posteriormente – haveria de engrossar a alimentação nas cortes luisianas, não só para satisfazer prazeres gastronómicos como – à semelhança do orgulho francês de Madame de Pompadour – inspirar e requintar desejos de amor, inclusive nas mesas da corte portuguesa influenciada pela consorte Mª Francisca Isabel de Saboia, quer pela manienta extravagância de comer [em salada] rebentos, qualquer renovo aparentemente comestível, como foram as gavinhas de parreiras e os brotos do cervejeiro lúpulo. Excentricidades, modas e manias que a história da mesa viu estimuladas até aos nossos dias.
As alterações das técnicas culturais que ocorreram a partir do início do séc. XIX e a revolução da indústria conserveira alemã trouxeram definitivamente o cultivo e os predicados dos espargos para a discussão agro-alimentar da contemporaneidade.
E é certo que a esta data ― diga-se que ao tempo em que o aristocrata, misantropo frustrado e filósofo dos prazeres, Grimod de La Reynière, lhe argumentava proezas de exercitar a líbido feminina, ao tempo em que o militarista Otto von Bismarck se assumia como um glutão de ‘espargos com carne de acompanhamento’, o poeta Pierre Louÿs parodiava com as voltas secretas de um espargo na boca de uma jovem casadoira, outros desancados pelo devaneio afirmavam desmascarar supostos amantes através do aroma deixado à solta no bacio depois de um afrodisíaco manjar de espargos (…) ao tempo em que às noivas da ruralidade francesa serviam ‘três pratos de espargos’ no jantar pré-nupcial como augúrio de enlace reprodutivo ― a Alemanha e a França eram os grandes produtores versus consumidores. Agora as coisas mudaram, mudam a um ritmo demasiado precipitado para a ambiência agro-rural.
Estes espargos desbravados, estas anómalas hortaliças
como seria previsível pelo passado alegórico que acumulam, aparecem como planta que simboliza o casamento na obra de Miguel de Cervantes, são tema recorrente – por tudo e por nada – ao longo do [estranho] romance Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust, e fala neles, ao de leve, Eça de Queirós, in A Cidade e as Serras. Na pintura conheço-lhe registos de encanto (além das ilustrações do Tacuinum Sanitatis, séc. XIV). Os mais afamados, ambos do polémico Édouard Manet [1880], são Molho de Espargos e Espargo Branco (ofertado ao colecionador de arte Charles Ephrussi) que terá inspirado Proust para moldar a figura de Swann; o mais antigo será uma das miniaturas da pintora fruteira Giovanna Garzoni ou Natura Morta do barroquista Giovanni Martinelli [?] Adriaen Coorte, o esquecido pintor holandês do fim do séc. XVII, com várias telas dedicadas ao tema, talvez seja o mais profícuo; [em 1864] Paul Lacroix compõe em linhas sóbrias um belíssimo mólho de Espargos com tomates; François Bonvin [1867] deixa-nos uma Natureza morta com espargos simples e austera; também a aguarelista holandesa Maria Vos [1878], o austríaco realista Carl Eduard Schuch, o americano impressionista Guy Rose (…) Ou o porta-espargos de Christofle ― peça em prata [1900] do Museu da Presidência da República [Lisboa]. Todos espargos amansados pela mão do homem!
Súmulas da botânica
O Asparagus acutifolius L. [1753]
com sinonímias em fartura, o que mais coloniza a região transmontano-duriense e o que deles demonstra maior valor nutricional (e mais-valia gastronómica)
é um pequeno arbusto de crescimento escandente
erva arbustiva, inconfundível, que pode elevar-se até mais ou menos um metro e meio – muito associado a terrenos incultos, mortórios de cultivos, matos e culturas de carácter mediterrânico – planta vivaz, lianóide, e fortemente espinhosa. Os caules são lenhosos, ramificados, verdes ou glaucos, quase cinéreos, com folhas alternas escamiformes, triangulares, com uma banda central parda e cladódios [espinhos] agrupados em fascículos, relativamente finos, aciculares ou cilíndricos, secção semicircular a subcircular ou elíptica, com um a vários nervos proeminentes. É uma espécie dioica, ou seja, com pequenas flores unissexuadas, masculinas e femininas, em indivíduos diferentes (…) As bagas apresentam-se em estrutura esférica, são pequenas e duras, inicialmente verdes e depois negras na plena maturação, com uma ou duas sementes.
De opinião generalizada, aceita-se que o termo clássicoasparagus
significando «rebento», provém do latim medieval sparagus [asparãgus] que, por sua vez, derivará dos vocábulos gregos sparasso («rasgar») [aspharagos, asparàgu] e – anteriormente – do persa asparag, querendo, este, dizer «gomo» ou «broto». Em espargo [Portugal] e espárrago [Galiza] sofrem evolução fonética e em aspargo [Brasil] mantém uma maior proximidade com seu étimo grego de origem. Existem outras variedades dialectais – aspárago e aspárago – muito pouco utilizadas pelos falantes de português, e espargueira, (além de outras), só que adjectivadas, para se referirem quase sempre à planta e não ao turião […] Corrudam, libycum e ornium foram designações romanas para nomear [apenas] os espargos-bravos, principalmente os que abundavam na região napolitana – os preferidos de Plínio.
Aphyllus [Asparagus aphyllus L.] refere-se ao facto de ser uma planta espinhosa; albus [Asparagus albus L.] por apresentar caules e ramos brancos; e acutifolius [Asparagus acutifolius L.] por ter as folhas [folium, folia] transformadas em pontas aguçadas ou pontiagudas [acutus, acuta], em agulhas [acus], espécie de aguilhão ou ferrão [aquileo um derivado de aculeus].
Razões, e rotinas culinárias
Os espargos-bravos têm um sabor amargo intenso
individualizado no conjunto da prova, são diuréticos quanto baste ― por isso há muito boa gente que não lhe deita boa cara. (Resquícios dos odores de infância?) No entanto, em seu abono, tal como para os seus familiares amansados, nas dietas alimentares representam um baixo valor energético e um baixíssimo teor de sódio, também não contêm gorduras de atrapalhar silhuetas femininas e apresentam-se como fontes abastadas de proteínas, ainda de fibras dietéticas de valor apreciável, vitaminas, minerais e antioxidantes (…) É pelo seu teor significativo em ácido fólico que se distinguem, que reforçam a sua personalização, configurando mais de 85% do valor de referência do nutriente [VRN]. Além da relevância daqueles compostos contêm asparagina (um aminoácido não-essencial) e ácido asparagúsico (a origem do mau odor na urina), sendo, também, uma fonte alimentar de glutationa e clorofila. São indiscutivelmente vegetais de uso saudável e de excelência gastronómica.
Migas verdes
Cortam-se os espargos em pequenos pedaços, em trochos ainda a sentirem-se nos dentes ― dizem, os beneméritos deste prazer, que um pouco menos de meio quilo dá para meia dúzia de comilões educados. Lavam-se e escaldam-se em água fervente. Entretanto, num tacho normal coloca-se uma cebola pequena cortada às rodelas finas, 2 ou 3 dentes de alho picadinhos e azeite quanto baste para o refogado não queimar nem torrar os temperos. Depois, quando a cebola começar a quebrar, deita-se «p’ra lá» um caneco de água quente e – se ainda os houver de guarda ou, agora, dos enlatados – pelo menos 3 tomates pelados. Junta-se quase a mesma quantidade de bacalhau [bem] desfiado, ou um nadinha menos, deixando estufar um pouco mais. Acrescentam-se os espargos, pimenta a juntar aos outros adobos, piripiri que seja do bravo e de botar abanador à entrada da boca, mais um cibo de água morna e sal de acerto, para, de seguida, lhe acomodar uma batata por cada dois papantes ― também picada de grosso ou partida aos quadradinhos. Deixa-se ferver, até a cozedura das batatas ficar arrumada, completa-se com um pouco de água quente e deitam-se os ovos (um por pessoa) para o meio do caldo, lentamente, mexendo sempre. Por fim adicionam-se as fatias do pão de mistura – pão de há dois dias atrás – já cortado em fatias finas, remexe-se, enfeita-se com salsa e deixa-se repousar até serem servidas em pratos sopeiros.
Sopa de espargos
Faz-se assim. Num tacho, ou que seja numa frigideira de fogão,frita-se mais ou menos ¼ kg de toucinho gordo e um pouco menos de linguiça cortados em troços pequenos. Retirar e guardar na panela que vai servir para o acabamento da sopa. Na gordura que ficou de fundo refogam-se umas rodelas de cebola (não é preciso serem muito finas), 4 dentes de alho esmagados a grosso, pimenta branca ou preta e colorau a gosto. Temperar de sal. À parte escalda-se um manhuço de espargos dos bravos talhados aos bocadinhos e juntam-se ao refogado, dando-lhe 2 a 3 voltas. Depois mete-se tudo na panela, adiciona-se a água já a ferver e à medida dos 4 ou 5 que vão à mesa, deixando aferventar mais 2 a 3 minutos, não mais. Antes de servir, misturam-se os ovos batidos – quase sempre um ovo por cada duas pessoas – e uma fatia avantajada de pão frito partida aos quadradinhos.
Omeleta de espargos
Depois de descabeçar os espargos e traçar as partes menos rijas, primeiro à dobra com os dedos as mais tamanhinhas e a cutelo as outras, porque o resto vai (ia) direitinho para a vianda dos recos, escaldam-se em água saleira e vão a saltear em azeite, tiras de presunto com um cibinho de gordo e pimenta preta de tempero ― de adianto vão as cabeças e só depois as partes restantes. Retiram-se, misturam-se, e ficam de espera. Consoante o tamanho, ou o número de preparos, batem-se os ovos com umas areias de sal e uns pós de pimenta, e faz-se a omeleta em três fases: [1ª] põe-se uma porção de ovos batidos e dobra-se, deita-se uma [2ª] dose sobre a qual se acamam os troços de espargos, vira-se novamente, envolvendo, [por fim] coloca-se o que sobeja dos ovos e arruma-se a parte restante dos espargos, enrola-se até ao fim, e deixa alourar-se pelos dois lados.
Não sei se é o formato mais corriqueiro, redonda do tamanho da sertã ou de um prato normal. Não sei se é a metodologia mais vulgarizada. Não sei se alguém na minha terra não as sabia preparar. Sei, no entanto, que amanhar omeletas, além de tortas e tortilhas, um pouco por todo o Vale do Douro Superior, é tão usual como preparar um cozido ou um assado para um dia de festa.
Ovos quebrados de espargos
Retira-se a parte mais rija dos espargos, que vai – quando não há vianda p’rá cria – para amontoar nos desperdícios da horta a curtir para ajeitar estrume, e lava-se a restante em água corrente. Depois de partir os troços que ficaram em bocadinhos pequenos, o mais pequeno possível, mergulham-se em água a ferver – escaldam-se e escorrem-se – e temperam-se de sal. Entretanto, numa malga ou num prato sopeiro batem-se os ovos consoante o número de pessoas a sentar à mesa, e reservam-se. Pica-se a cebola, não muita e ligeiramente grosseira, os dentes de alho, também bem picadinhos, e salteiam-se na frigideira com um pouco de azeite. Quando a cebola e o alho estiverem alourados juntam-se os ovos com uns farrapos de salsa e os espargos já escorridos. No fim é só mexer, mexer, mexer…
A par da omeleta é certamente o método mais frequente de arranjar estes bravos espargos e – para quem sabe de outras erveiras – quebrá-los de norças (…) ou com umas rodelas de chouriço gordo.
Arroz de espargos com sardinhas de lata
«(…) Como se fosse prá gente da tua casa! Pegas na arrozeira e fazes o estrugido com um fundo de azeite, meia cebola cortada às rodelas finas, 2 ou 3 dentes de alho laminados, um bom tomate esmagado ou que seja ½ pimento verde às tiras miudinhas ― se ainda os houver na planta, de guarda ou à venda no sóto. Juntas-lhe duas chávenas de água a ferver, uma chávena de arroz malandrinho e outra das pontas e dos troços tenros dos espargos [já] escaldados. Acertas o sal e deixas ferver mais ou menos ¼ de hora. Não mais! De seguida colocas as sardinhas escorridas de três latas em tomate picante por cima do arroz, e torna a [re] ferver mais um pouco – um pouquinho. É simples, não é? (…)
Era comer do findar do Inverno, para os dias de abstinência! Também podia ser receita certa para o tempo da ripa da azeitona, principalmente nas recolhas do Outono. Foi moda que pegou aquando os «brasileiros da Brandão» andavam pela zona atrás de azeitona, amêndoa (…) Chegavam a pagar com latas de atum, e de sardinha! […]
Outras práticas culinárias poderiam aqui ser mencionadas
talvez algumas dezenas, sempre de referência rural, sempre do tempo dos pais ou dos avós de quem conta. Esta fazem parte das memórias dietéticas dos catadores de espargos da minha terra. Por último, sabe-se pelas experiências adquiridas, vagueadas por outros ao longo dos séculos, pelos conhecimentos científicos mais recentes, pelos deslumbramentos que a dita erva provoca
além de alimento tradicional de gratos benefícios funcionais
é um vegetal que promove uma alimentação diversificada, envolvente (…) é indiscutivelmente um complemento frutuário naquelas dietas caracterizadoras das nossas cordiais relações com a Natureza!
O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico