Carnes de pasto
De criação caseira e do monte

«Até que enfim! Vem aí a chicha. Agora é que vamos comer!».
Era das frases relambórias mais escutadas na região.
Depois do lastro dos primeiros mordicos
da malga de caldo ou da sopa, dos pescados mais de regrado do que substância, a segundar vinham as carnes chichadas — de vitela ou vaca laraita, porco ou leitão, cabra velha ou cabrito mamão, carneiro ou borrego, perus, frangos e galinhas… e de caça, mesmo que não fosse tempo dela. O rezulho da sua cozedura ficava para dar gosto aos ditos caldos e o surricho do fundo para ensopar o pão de retardo.
A caça. Como sempre se caçou de tudo o que fosse possível desde que o tamanho pagasse o chumbo, os ichós tivessem armadura conseguida e as aludas cevassem as pescoceiras, ou a necessidade assim o exigisse, facilmente se engrossaram os nossos receituários de perdizes e perdigotos, lebres e lebrotos, coelhos e caçapos, patos bravos, galinholas, narcejas, pombos, rolas, codornizes, tordos, estorninhos … raposas e zorrinhos, javalis, corços e veados. Desenvolveram-se comeres infindáveis, tantas vezes associados a lendas de mouras encantadas, outros de feitiços crentes, redescobertas familiares, quase todos de preparação mortificada para que a carne amaciasse e o besunho desaparecesse. Se não resultaram de criatividade própria, são, com certeza, de origens arabizadas, galaicas, castelhanas ou leonesas (…). São as populares sopas de caldeiro da Poiares freixenista – à base de pão, batata e a caça disponível, – as empadas de perdiz de aproveito e os pastelões ou empadões de caça das casas afidalgadas de muitas quintas durienses, a perdiz [dita] à moda do Douro e de escabeche, a galinha e galinhola encantadas
A bragançana galinhola afidalgada com uma molhada de tomilho de recheio, barrada com uma pasta de mel e pimenta preta moída, em que o azeite serve apenas para a untadura do tabuleiro de ir ao forno, e a galinhola em martírio — receita atribuída à família de Ayres da Castanheira [Vidago, 1826-1905] — conseguida em “brasas pouco espertas”, sem pinga de azeite, mas uma boa bica de manteiga barrosã, são das confecções galináceas que mais admiro…
o coelho frito e a coelhada à moda da bruxa de Valpaços [São várias as receitas assacadas a esta famosa “bruxa”, a “louca” para outros, nascida no século XIX e mais conhecida pelas suas qualidades gastronómicas do que pelas «feitiçarias». A sua arte de cozinhar, que não dispensava o azeite em qualquer das receitas que lhe outorgam, espalhou-se rapidamente por todo o Trás-os-Montes. Realidade ou mito? Mito, certamente…], o magriço coelho bravo com arroz de carqueja do Hotel Rural de Penedono, o coelho do monte e o faisão à moda da tabuacense Adega da Tarraxa ou o coelho bravo à Monsenhor e o faisão com castanhas com que a Dona Ana Maria Baptista do Solar Bragançano arrebata pasmos e momentos de assombro [para não falar do insólito javali estufado com repolho e maçã frita ou da sobrenatural perdiz com uvas brancas], o caçapo roubado confeccionado no campo nos dias de caça, a lebre estufada e o arroz de lebre, as muitas lebradas de arranjo familiar [a lebre à Serafim – à moda do couteiro do Morgado de Mateus], a simplicidade da perdiz em rojão dos mirandeses e assada à moda dos galegos, os pombos afogados no vinho e os borrachos da vindima, os tordos de aguardente ou assados de peito aberto na brasa, as costeletas de javali no pote e o javali de romaria no caldeiro, o pernil de raposa no espeto que os montesinos faziam como se tratasse de uma perna de cabrito… as narcejas

quando as havia e o caçador lhe botava o chumbo certeiro, esta ave bicuda e de voo meio atabalhoado era adobada de azeite à mistura com banha de reco, na ida ao forno, e temperada de aguardente e uma esmagada de bagas zimbreiras, a meio da cozedura…
e as paspalhaças em martírio — comer de pavonada vileira, a lembrarem-me as tão excêntricas “cailles en sarcophage à la sauce perigourdine” de Babette Harsant, no filme «A Festa de Babette» — os impressionantes peitos de rola à moda do Morgado de Mateus ou as costeletas de veado que o académico Visconde de Vilarinho de S. Romão disse serem “à Jaime de Albuquerque”… das fresquitas merendeiras do Peso [guisado de qualquer caça apanhada no próprio dia] às antigas fritadas dos passarinheiros vendidas porta a porta no tempo da guerra … Com excepção das supostas rolas de agasalho, raramente excluem o azeite e o alho no salteio, quase sempre adobam numa vinhaça de generoso, branco, tinto, aguardente bagaceira, e continuamente se arreiam de condimentos variados: canela, cravinho, pimentas, noz-moscada, coloraus, malaguetas e piri-piris, poejos, tomilhos, etc.
E os tordos assinalam o perpetuar da apanha da azeitona!
Talvez, mas não pelos seus apetites azeitoneiros! Destes, são as tordeiras ruivas [Turdus iliacus L.], tordas ou tordinhos brancos [T. philomelos Brehm] e as tordonhas, tordeiras ou tordoveias [T. viscivorus L.], quem mais se passeiam pelos campos e olivais regionais. Para o agricultor são indesejáveis e larápios, para o caçador, alvos de prazer e para os gastrónomos, conforto dionisíaco. Nas brasas, às vezes logo por cima delas, abertos ao meio, só com uma pitada de sal e regados na travessa com um molho queimoso… as fritadas em azeite e o arroz deles num bom refogado, também azeitado, ou num guisado com umas batatas cozidas de acompanho… são o correntio culinário desta pequena ave migratória. Comeres de simplotes e de trabalheira escusada!, para quem não os queira depenar (…). Muita outra caça de penas — da rola ao pato bravo ou do tralhão à paspalha, de chumbo ou de armadilha — também faz o gosto ao improviso gastronómico, arreigando-se desde sempre nos nossos hábitos alimentares. Apenas ficaram de fora aqueles passarecos que de tão pequenos que são não mereciam o trabalho do arranjo – folecras lavandiscas – ou outros que ganharam algum misticismo e repúdio ao abate – as calhandrinas.
Ah! Estes não são pássaros, porque ainda não sabem voar.
São borrachos para fritar… ou fazer de tomatada!
Este despacho, quantas vezes o escutei de ls palomeiros de l Praino Mirandés quando se referiam àquelas pequenas aves. Efectivamente, além do vulgar arroz de pombos, a sertã sempre foi o destino mais comum e experimentado na região. Embora, algumas casas familiares também lhe consagrassem outros registos um pouco mais elaborados: recheados com presunto e azeitonas, afogados no vinho, de escabeche, guisados…
A moda dos pombais para produção do pombinho [o estrume dos alfobres e do chão para as hortícolas] e fornecimento de carne [os pombos e os “borrachos”], num contexto de economia de auto-abastecimento, principalmente nas terras de vinhas, olivais e amendoais do Douro Internacional e Vale do Douro Superior, é bastante recente – do fim do séc. XIX – retomando uma antiga tradição das terras e atalaias para albergar pombas, já referida pelo historiador romano, Plínio, o Velho. Praticamente desapareceram da nossa rotina, agrícola e gastronómica, a partir da fuga migratório dos anos sessenta do séc. XX. Ficaram memórias alimentares e conjuntos arquitectónicos de inegável valia histórica.

Dizem que esta é uma lebrada castelhana, acredito!
porque terão sido as cozinheiras refugiadas da guerra civil espanhola que a deram a conhecer às casas dos raianos nordestino-durienses que as acoitaram. É só perguntar aos antigos contrabandistas daquelas arrojadas e aflitivas trocas comerciais nocturnas! No entanto, noutros locais do Vale do Douro, nomeadamente no Vale da Vilariça, Foz do Tua e Peso da Régua é mais comum denominá-la de lebre ou lebrada das vindimas. E nesta terra reguense e nos termos lamecenses, onde já foi tradição nos domingos de vindima, os mais enricados avantajavam-se com uma coelhada – coelho das vindimas – que, além de outras particularidades no preparo, como cozinhá-la em mosto de vinho tinto, levava um bom recheio de bagos de uvas brancas salpicados de pimenta preta.
A dita lebrada “castelhana”…
Faça uma marinada com o sangue do lebréu, podendo ser de outro animal de caça ou de capoeira, vinho tinto que não tem que ser do melhor, azeite do bom, cebola a dar para o queimoso, cenourinhas e nabada às rodelas, folhas de louro, uma ramada de bela-luz e rosmaninho, salsa à fartura, pimenta preta em grão, alho sem exageros e sal grosso a gosto, onde a bicha fica a mortificar pelo menos durante dois dias. Depois, num tacho com azeite quente, refogue bem as hortaliças picadas da marinada e a lebre cortada aos pedaços bem escorridos. Passado um quarto de hora, mais coisa menos coisa, junte um pouco de farinha trigueira, volteando constantemente. Acrescente de aguardente velha e do mesmo vinho tinto, ou só de vinho fino, e do líquido da adoba. Deixe assim alguns minutos e deite mais louro, bela-luz e mais umas farripas de salsa. Tempere de sal e pimenta, ficando em lume brando aí umas duas horas. Entretanto prepare alguns cogumelos de época, regando-os com sumo de limão, e salteie-os, em azeite, numa sertã em conjunto com a cebola em rodelas finas. Quando a cebola estiver alourada, junte tudo ao tacho da lebrada. Rectifique de sal e acrescente de caldo para o acabamento da fervura.
Esta receita escabechada, lebre de escabeche
vem das terras de Murça, que a família de Belmiro Vaz de Castro herdou de uma velha senhora lá da terra. A lebre é desmembrada em pequenas partes, que vão a cozer apenas em água e sal. Depois são envolvidas em farinha trigueira e ovo batido… e fritas em azeite. No sobrante da fritura, faz-se um refogado de cebola às rodelas muito finas, alhos picados, louro e salsa em abundância; à medida que vão alourando (a cebola e o alho), juntam-se uns golinhos de água e vinagre de vinho a gosto. A seguir, ainda com o molho quente, deita-se por cima das partes da lebre que só deve ser consumida passado quatro a cinco dias. É, também, muito semelhante a uma terrina de lebre com referências a algumas famílias mogadourenses (…). Ambas as receitas fazem parte daquelas cozinhas há bem mais de cem anos.

«É saber e comida de homem! (…).
Só lhe conheço estas nomeadas: caldeirada, simplesmente, porque era feita num caldeiro; caldeirada à ribeireiro, ou dos meloeiros, porque só eles a sabiam ajeitar; caldeirada à moda da Ribeira, porque era por lá, na ribeira da Vilariça, que eles se botavam a fazê-la… O mais importante é a caça dos restolhos. As vagens e os cornipos dos rasteiros até se dispensavam!»
Antigamente, a caldeirada à ribeireiro — a denominação mais consensual junto dos antigos ribeireiros — era preparada num caldeiro colocado na fogueira que se fazia numa poça à beira do rio Sabor ou da ribeira da Vilariça, com a caça vil mais utilitária, os produtos das hortas dos barrais e a arte de cada ribeireiro – do Ti Antoninho Totó ao carrascalenho Alberto Major, do Ti César Carmachinho ao Manel da Portela… O João Rato, também ele «Major» e muitas vezes ribeireiro, e o Ti Joaquim dos Chibos, mais ajuntador meloeiro do que ribeireiro praticante, preferiam designá-la por “caldeirada dos meloeiros”; e o Beto Castelo, arqueólogo praticante da gastronomia moncorvense e filho do ribeireiro-taberneiro Júlio Ferrador, foi, mais recentemente, o guardião e divulgador desta receita sempre inacabada.
Com as actuais condicionantes da caça, a perdiz e o coelho bravo são muitas vezes substituídos pelo frango e coelho manso – o popular coelho gatorro – mas ainda assim de paladar apurado que justificam a gratidão deste manjar campestre. Bem! O ideal é que pelo menos uma boa charrela nunca lhe falte.

Depois de amanhar a perdiz — o coelho ou a lebre, a codorniz ou a rola, o que o caçador de serviço conseguir arranjar — e as vagens tenras das chicharreiras, leve-as a cozer numa panela com bastante água saleira e deixe cozer bem. Junte-lhe, às ditas, o presunto às tiras, em vez do sal de acerto, uns nacos de chouriça gorda, colorau doce e malaguetas bufantes, ficando tudo a cozer mais alguns minutos. Quando a cozedura das carnes estiver no ponto, retire-as, desosse-as e desfie-as o melhor possível; na calda da cozedura deite metade de pão trigo e outra metade de pão centeio, previamente fatiado, e deixe apurar; volte a pôr as carnes já desfiadas, as chicharreiras, regue com bastante azeite cru, mexa bem e rectifique os temperos, principalmente o picante. (No tempo dos espargos bravos, eram estes que faziam as honras das chicharreiras.)
Venha a outra chicha!
E porque gosto muito de cabaçéus, ladeie o lombo da vitela com presunto cortado em tiras adelgaçadas, esfregue-o bem com sal grosso e deixe-o assim durante pelo menos duas horas. A seguir tire a vitela do descanso e leve-a a assar em brasas vivas, vire-a constantemente e, quando estiver assada, ponha-a num tacho à medida. Corte, depois, cebolas em rodelas finas para cima do lombo e regue de azeite. Tape e abafe a panela. Antes de servir, apare a carne em fatias, regue-as com um pouco mais de azeite e o sumo largado. Entretanto, após tirar a casca e as pevides à abóbora, retalhe-a em pequenos pedaços, e faça um refogado de cebola picada em bastante azeite. Deixe refogar lentamente, acrescentando a abóbora e, caso seja necessário, junte um pouco mais de água. Atenção: este cabaçote deve ficar a ferver em lume brando, não muito tempo, adicionando-lhe de imediato os tomates. Nesta altura, tempere de sal e, quando os legumes estiverem cozidos, engrosse com fatias de pão trigo (…) O ideal, para esta vitela com cabaçote guisado, é a vitela ser proveniente dos lameiros do Planalto Mirandês ou da Terra Fria Transmontana e a hortaliça das hortas de São Martinho de Angueira (cebola chata, tomate chepa e abóbora sopeira) ou das courelas ribeirinhas de Nuzedo de Baixo (cebola riscada, tomate coração e abóbora galega). E diz-se, também, por estas bandas, que este acompanhamento é de “cabaçote à espanhola”. Aliás era vulgar para muitas das confecções alimentares que envolvessem vários condutos e aviamentos – tipo caldeirada ou guisado – apelidá-las de “à espanhola”.

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico




