Comer sem azeite é comer miudinho
lastros de abertura

A alimentação e a gastronomia
reportadas às tradições culinárias da região de Trás-os-Montes e Alto Douro
até ao desenfreado fluxo migratório dos anos sessenta, fizeram-se sempre ao ritmo dos ciclos da natureza e – naturalmente – do recheio das bolsas e adegas despenseiras de cada um. Eram primárias pela ambiência, diferentes de local para local — do Alto Barroso à Beira Transmontana — variadas pela pluralidade dos produtos cultivados, recolectados e transformados, mas saborosas pela simplicidade da confecção… quer as cozinhas do quotidiano quer dos dias de festas e romarias (…). O pão — seja ele centeeiro, trigueiro, centeninho ou amilharado — o vinho e o porco são os anéis da cadeia que unem a arqueologia dos costumes com a alimentação regional, e estão na base da história e das muitas estórias da nossa gastronomia (…). O transmontano — duriense, mirandês, barrosão, raiano ou beirão… moncorvense ou flaviense — consumia sem reservas o que a terra e o céu lhe ofereciam — das ervadas dos agueiros aos passarecos dos palumbares — e as águas dos rios disponibilizavam, como em todas as zonas rurais do interior do país. Acrescia-lhe os poucos pescados do mar que por cá chegavam — bacalhau, sardinhas, polvo, carapaus, fanecas, congro… — o queijo enrijado das churras e o mole das cabradas, carnes de galináceos que criava nos cortinheiros à beira de casa, ovos muitos, carnes do monte que quase sempre caçava às escondidas, outras carnes de criação — cabrito, borrego e marrã — que ia comprar ao açougue, uma vez que só os ricos e os menos pobres tinham acesso à carne de vaca…
A capoeira e o cortelho eram o talho do pobre!
E tratava tudo consoante o tempo dos sóis e das luas, as necessidades de sobrevivência diária, os costumes da memória dos seus, a paciência e a imaginação arranjadas no momento. Ser mulher boa cozinheira era uma honra! Até a nomeada dos produtos e cozinhados conseguidos ajustou à simplicidade dos falares e às agruras do dia-a-dia: folianos, tarimbolins, mômas, vilões, larotas, azedos, chabianos, melícias, moadas, pildrachos… arroz de tropeções, macarrão da velha, bacalhau constipado, tripas de convite, bazulaque, sopa de tchis, canelos fumados, pato dos galegos ricos, coelho de lapada, riça mourisca, caldeirada de tudo, fritada de rabecos, tomatada de alguidar, ervilhas espertas, batatas sem dono, casulas, lúparos, cornipos, aguadinhos, sopa gata, água de unto… tarecos, orelhas-de-abade, falachas, milharaques, santóros, canelões, covilhetes, cristas de galo, viuvinhas, matrafões, mascotos, desgovernados, fálgaros, rochedos, carriços, arrepelados… garrobas, grabincho, fusco miúdo, chicharranete, feijão chicote, couve de poda, faveca, geriboila… tomate Santulhano, pimento Quatro Narizes, ginja Garrafal, cereja Rabicha, uvas Borrado das Moscas e Brincos de Princesa, oliveiras Zamborina e Chorona, amêndoas Zagaleira e Trovisca, castanhas Rebordona e Patacuda, figos Bacorinho e Três-ao-Prato, maçãs Samartinha e Serapica, peras Malheira e Invernosa de Rabo Torto… Até a ponte medieval sobre o rio Ôlo – Ermelo – abençoou com a nomeada de Ponte dos Presuntos e a primeira pandorcada gastronómica, ainda no séc. XVI, como Confraria do Burraço!
E o azeite e as azeitonas?
Como e quando chegaram de assento definitivo à cozinha
… e à mesa dos transmontano-durienses?
A resposta parece-me simples: depois do arrumar da cultura da oliveira às terras que lhe são devidas, já na parte final do século XIX, logo que foi necessário encontrar alternativa para as litradas consumidas de azeite-combustível. A partir daí não mais abandonaram “a mesa do camponês, nem o banquete do burguês”! E com douta sapiência, o nosso povo também foi assegurando que “a melhor cozinheira é a azeiteira”, porque fez da prática diária do azeite: – não uma insólita extravagância senão a consequência de uma solene e unânime convicção. Inclusive acreditou, e ainda acredita, que o chá de folhas das Verdascas é mesmo bom para os apertos do coração e o bochechar com a água da cura das azeitonas para qualquer dor de dentes.
Aproveitando as muitas conversas tidas e o rol de estórias escutadas,
a dose de prelecções proferidas e as notas que por aí fui recolhendo ao longo dos últimos anos… que já me serviram de suporte às publicações “Crónicas Comestíveis – Contando histórias de comeres, Estórias do Azeite, O Azeite e as Azeitonas – Receitas da Rota do Azeite de Trás-os-Montes e Palavras do Olival … além de outros créditos familiares e vivências mais recentes, vamos, então, e em jeito de preferências pessoais, à minha convicção de que “comer sem azeite é comer miudinho” com algumas das tradições gastronómicas azeitadas de Trás-os-Montes e Alto Douro, práticas mais arredadas do nosso quotidiano e certos saberes ainda de trato local ou familiar, deixando de parte comedorias de outras prosas e para outras prosas. «Haja fartura que a fome ninguém a atura!»
Entrar na refeição – Lastros de abertura
Fazer a boca e afiar o dente à comezaina, alancar e dar entrada às assaduras de leitão, cabrito e perú, do guisado de borrego e da potada de galo, era, nas nossas casas rurais e vileiras, o início daquelas refeições festeiras mais ritualizadas… A familiaridade oferecida aos convidados, o compasso de espera aos retardados, a demonstração do bem receber e da riqueza conseguida, o prenúncio de um fausto manjar e a manifestação de vida organizada. Caso não houvesse sopa ou um migado qualquer, nem um daqueles caldos de pôr a colher em sentido, mais certo e mais abundante seria o conduto aviado para fazer o tal lastro de abertura. Comeres de entrada, petisqueiros, merendeiros, ou apenas de lambisco, tanto dá!
O dia nas terras quentes mais abeiradas ao Douro olivícola
e em redor do pastoreiro Sabor-Maçãs-Côa começava com o mordico da manhã, o dito dejejuar do afidalgado ou o popular mata-bicho das terras de montanha, fosse ele de trabalho ou de merecido descanso; era substanciado antes do pico do sol; passava pela merenda do meio da tarde e terminava com uma ceia de abasto ou uma sobre-ceia de aconchego. (Já lá vai o tempo das parvas matinais de aguardente destemperada com um nadinha de água, que efectivamente matavam o raio do bicho, um caneco de café de saco e um cibo de carne gorda, cebolas rachadas ao meio, uma côdea de pão centeio e figos secos e das ceatas reforçadas a castanha. «Quem se deita sem cear, passa a noite a rabear.») Mas nos tais dias de comeres de celebração e agradecimento, quando o acolheite dos anfitriões e a arte da cozinheira eram postos à prova, de provisco era bem possível que os convivas fossem presenteados de outros paparicos que não o mero encher de góldres. Enfim…
em terra de tantos olivais e oliveiras
que se aventuram até às portas de Montesinho, e quantas vezes de vizinhança com o friorento castanheiro, posto de lado o reportório de fumados regionais, tirar de poulo o estômago ainda agora é feito com o condão do azeite e das azeitonas e consoante as posses caseiras, como não poderia deixar de o ser. Por isso, antes que São Lourenço – patrono dos Cozinheiros – arrelie ainda mais o estuporado prefeito de Roma, vamos lá às tais evidências de que comer sem azeite é comer miudinho!
As torradinhas lagareiras
eram torradas merendinhas, preferencialmente de pão centeeiro, escuro e de poucos olhos, amanhadas nas brasas da fornalha do lagar ao começo da noite e mergulhadas no azeite acabadinho de fazer; eram a merenda mais do que merecida dos mestres e ajudantes lagareiros, também a primeira prova do azeite novo, o convívio comensal com os visitantes azeitoneiros logo a seguir ao acerto das maquias… um gesto de simpatia do patrão. Podiam, ou não, ser esfregadas com dentes de alho arrancados da pendura da trança adegueira, polvilhadas de sal grosso ou açúcar amarelo no caso dos mais gulosos e de alguma garotada. Tornaram-se, em parceria com as outras lagaradas de polvo e de bacalhau, numa prática generalizada a toda a região olivícola, principalmente na Terra Quente Transmontana e Vale do Douro Superior, e numa referência de arranque aos banquetes invernais.
A pasta de azeitonas
Preparada a partir das desprezáveis “sapateiras” — azeitonas velhas, moles e com um ligeiro sabor a couro — foi, basicamente, consumida em cadorno de pão barrado e como tempero dos refogados mais caprichados ou, apenas, de presumido apuro em assados de peru, borregos e leitões. Esta pasta, pastada ou massa de azeitonas para outros, [É uma papa grosseira aprontada a partir da moenda das ditas azeitonas avelhentadas, depois de descaroçadas, com um arranjo de sumo de limão e azeite de aproveitamento, temperada de tomilho e engrossada com miolo miudinho de pão fresco.] era, em tempos de míngua, muito utilizada pelos guardadores de gado nos pastoreios de percurso e segadores que se ausentavam de casa por períodos mais ou menos longos, e as azeitonas novas ainda não tinham saído da árvore ou não estavam prontas para a cura das alcaparras. Quando a patroa-cozinheira pretendia transformá-la em comer de substância, para uma das refeições do dia-a-dia e dotar comeres de jornada, ajuntava-lhe um migado de atum de lata e, tantas vezes, um quarto de tomate seco de conserva azeitada, confecção a lembrar a das míticas tapenades da Provence francesa.
O pão de companhia
No Vale do Douro Superior, aí pela chegada do meio-dia ou ao primeiro descanso do trabalho jornaleiro dos picos de verão, comia-se pão seco com cebola crua, uma fatia de toucinho ou um pedacito de chouriça de talha e uma mão cheia de azeitonas de cura no retardo. E bebia-se uma [reconfortante] esguichada da bota odreira ou da cabaça do vinho. Era o pão de companhia. Às vezes lá calhava levar-se com um naco de tomate ressecado ao sol. Por sua vez, na casa de alguns patrões freixenistas, pelo tempo da apanha da amêndoa e das vindimas, quando a refeição tinha propósitos comemorativos ou de envaidecimento fazendeiro, o pão do dia anterior podia ser esfregado com um toque de alho, humedecido com sumo de tomate [O tomate “coração de boi” diziam ser o melhor.], regado ao de leve com azeite novo, e o toucinho seboso substituído por presunto meado de magro. Era o pão de tomate ou pão de alguma coisa, já de tratamento muito próximo ao tradicional companatico da Itália sulista.
As amêndoas com azeite
Quanto a esta receita — amêndoas esmagadas num almofariz juntamente com um bom tantunho de alhos, azeite adicionado pouco a pouco, água à certa, um bom avio de sumo de limão, miolo de pão do dia, tudo refrescado durante algum tempo… — trata-se de um comer campesino, assim o creio, associado a períodos de fome e privação, também referido por alguns aldeões jornaleiros como amêndoas alhadas ou pasta de amêndoas. É, muito provavelmente, comer de origens judaico-arabistas, cristianizado (?) posteriormente com a introdução do pão migado e vinagre de vinho branco para suprir as carências de limão, em que as amêndoas tinham que ser colhidas ainda algo leitosas, mas já de grão feito e bem acastanhado, para um esmagamento mais facilitado. E a variedade eleita era quase sempre a Verdeal, conhecida popularmente por “amendoeira dos cantoneiros”, tal como o é a deslembrada Romeira, por ser uma árvore que marginava os caminhos e estradas locais, de crescimento rápido, grande vigor vegetativo, não muito cediça e de grão atractivo com bons rendimentos à britagem. Hoje sabe-se que aquela variedade autóctone é das mais equilibradas e com melhor valor nutritivo.
As sopas de água fria
Em alguns locais do Baixo Sabor, este antigo ensopado de amêndoas azeitadas também foi um bom merendico de verão para o redobrar de forças. E em redor de Alfândega da Fé rivalizava ou acrescia às tradicionais sopas de água fria — os tão refrescantes aguadinhos dos povoados da Villaricia, aparentados dos tradicionais gaspachos alentejanos e arjamolhos algarvios — quando os jeireiros das aldeias cumeeiras desciam ao vale para as ceifas, malhadas, apanha da amêndoa ou pelas vindimas.
A salada de laranja
Comer de ricalhada! — dito pelos rogados durienses que lhe ajustavam outra sentença: “fidalguia sem boa comedoria é como gaita que não assobia”. Preparado a partir de um bom amanho de gomos de laranja, inteiriços e descaroçados, principalmente das laranjas de sangue, às vezes das de prata, também das menos adocicadas ou de início de época, e rodelas finas de cebola queimosa, de marinada num molho de vinagre de vinho branco, azeite de época e erva-cidreira picada, enricada de lascas de presunto velho ou de salpicão de guarda em talha… seria mais uma das possíveis entradas às refeições de cortesia que certas famílias mais abastadas do Douro Vinhateiro destinavam aos seus convidados se o manjar fosse de peru ou pato no forno, borrego, cabrito e leitão assados na brasa. Algumas das cozinheiras serviçais daquelas casas quinteiras preferiam denominá-la por salada de rei, julgo eu, pelo exotismo da preparação ou então pelo nome atribuído à erva-cidreira de “coroa de rei”.
O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico