Florbela Espanca-Parte II

Alma alentejana

Quando se fala de tristeza e melancolia em Florbela, não podemos deixar de pensar na sua alma alentejana. Na influência da paisagem alentejana no seu perfil psicológico, nos seus humores, nos seus estados de alma, no seu olhar sobre a vida e o Mundo. Influência que se faz presente na sua obra. Porque a escrita de Florbela não aborda apenas os sentimentos de amor e desamor, de tristeza e paixão, de ambição e frustração, ou mesmo do seu percurso de vida. Florbela amou o seu Alentejo e daí partem muitas das suas metáforas, muitas imagens refletidas na sua expressão artística. Há uma subjetividade nos seus escritos: poesia, contos, cartas que transportam as imagens do seu Alentejo vivido, sonhado, imaginado, recriado.

São muitos os poemas e textos que Florbela lhe dedica, terra de charneca erma e de saudade, a charneca onde nasceu sua alma triste, trágica, selvagem. A charneca imensa, simples, mas bonita. Como ela mesma disse, a charneca é como ela “uma revoltada, sem gestos e sem gritos”. Misteriosa, vibrante, «… toda ela é cor, vida, chama e alvoroço, contido e encadeado por uma secreta maldição». Assim, ela se vê espelhada no seu Alentejo. A sua obra acaba por reescrever a poética dos espaços, atribuindo-lhe sentimentos, emoções e outras características humanas.

Florbela adorou o seu Alentejo, onde nasceu, cresceu e, claro, absorveu a cultura e costumes da terra em que estava inserida. Porque os nossos valores não são apenas uma coleção de sentimentos, mas são também a história da nossa vida, a história do espaço onde crescemos e, também, a história do nosso país, do seu desenvolvimento, da sua política, das suas revoluções, dos seus questionamentos sociais.

Quantas vezes o seu «Eu é o Eu do Alentejo»? Sim, porque se encontramos vezes sem conta imagens do eu na poesia e outros escritos de Florbela Espanca, reconhecemos que muitas vezes são as imagens do Alentejo transfiguradas na sua escrita, no seu esteticismo, como se descrevesse sentimentos, emoções, quadros da vida através de imagens da paisagem alentejana. Há uma espécie de identificação com a terra que a viu nascer e crescer.

«Amigo longínquo e querido:

Apresento-lhe a charneca ao entardecer, a minha triste charneca donde nasceu a minha triste alma. Selvagem e rude, patética e trágica, tem a suprema graça, cheia de amargura, dos infinitamente tristes, a quem foi negada a doçura das lágrimas. É enorme e é simples; fala e escuta. O que eu lhe tenho ouvido! O que eu lhe tenho dito! Toda morena do sol, que a queima em verões sem fim, e como eu uma revoltada, sem gestos e sem gritos. Nesta hora do entardecer, toda ela palpita em misteriosas vibrações, toda ela é cor, vida, chama e alvoroço, contido e encadeado por uma secreta maldição!
Mas como ela é bonita, a minha charneca!»
(1)

A charneca alentejana é símbolo da alma insatisfeita e revoltada de Florbela. Projeta a sua aspiração pelo ideal, pelo sonho, pelo imaginário, por esse desejo do absoluto, quer na vida em geral, quer no amor, quer em relação ao outro. Assim, como sempre desejou ver o seu eu, o culto de si mesma espelhada no outro, assim, ela se apropria das características da terra alentejana, da sua morfologia, da sua geografia, das cores, das flores, das árvores, do clima solarengo, mas que castiga, do espaço de infinitude, mas que aprisiona, que é pequeno para os que se vêm limitados pela dureza da região.

Toda esta natureza é derramada para o esteticismo da sua obra, para uma construção saudosista do Alentejo, transfigurando-os em sentimentos, em alusões ao corpo, à sensualidade, aos cheiros, aos humores e estados de alma, a beleza e aspereza da vida, aos que como ela têm uma alma que transborda de si, que deseja sempre estar para além dos limites impostos, que tem dificuldade em aceitar as regras e contingências, sobretudo no que diz respeito a uma mulher, impostas por uma sociedade reacionária e patriarcal. Por isso, foi ignorada em vida e muitas vezes após a sua morte, pelos seus pares, pelos críticos literários, pela igreja e moral católica.

Esta ligação espacial de Florbela com o Alentejo, apesar de ainda jovem ter ido para Lisboa para estudar Direito, por aproximadamente 6 anos e, ainda antes, ter ido viver para o Algarve com o seu primeiro marido, e ter depois “vagueado” por outras pequenas terras como Matosinhos, Esmoriz ou Gonça, por motivos amorosos ou de saúde é perfeitamente natural, tendo presente que foi nessa região que viveu os momentos felizes da sua infância brincando pelos campos com o seu irmão Apeles, e daí vêm as saudades que aquecem o coração, mas também os tristes e difíceis dias da adolescência.

Com efeito, é este Alentejo que vai formar a sua consciência, o seu imaginário e, que de algum modo acaba por se tornar em fonte de inspiração para a sua obra.
Esta ligação, que já é legível nas suas obras anteriores, particularmente em Sóror Saudade, torna-se mais acentuada e expressiva no seu livro Charneca em Flor, obra publicada postumamente em 1930, 1.ª edição e que terá no mesmo ano uma 2.ª ed. publicada junto com Reliquiae, por iniciativa do professor italiano Guido Battelli, grande amigo de Florbela, que a conheceu já perto da morte.
E é em Charneca em Flor que se aprofunda a descrição da paisagem alentejana numa clara fusão entre natureza e sujeito poético. Sujeito poético que, por vezes, se apresenta em perfeita harmonia com a natureza, outras vezes, em oposição e grito contra essa mesma natureza.
É já a charneca de uma Florbela desesperada, triste e doente. Uma imagem viva dos seus sentimentos dos últimos anos. De uma alma insatisfeita, uma alma sangrenta que não soube adaptar-se nem ao mundo, nem aos outros, antes pelo contrário, desejando sempre que os outros se conformassem aos seus ideais imaginados e irreais. A mesma expressão ambígua de Florbela que se manifesta na descrição da natureza, umas vezes doce, outras amarga, é também a expressão poética do seu trágico, da sua alma atormentada, sedenta e triste.

PARTE I

Charneca em Flor

Enche o meu peito, num encanto mago,
O frémito das coisas dolorosas…
Sob as urzes queimadas nascem rosas…
Nos meus olhos as lágrimas apago…

Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!

E, nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E já não sou, Amor, Soror Saudade…

Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!

Florbela Espanca, in: Charneca em Flor

(1) Espanca, Florbela, Carta da Herdade

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