Obra de Capa

Maestro

Com a invenção do Tempo, o Homem, seu criador, carreou nele as suas inquietudes e os seus feitos. Nele se alinha a sua vida, entre o foi, o hoje e o devir. Compete também à Arte, na sua Humanidade, anular o Tempo, quer porque o imobiliza em tela, ou pedra ou outro material, quer porque se lhe sobrepõe, desprezando-o, produzindo objectos que estão para além dele… e do Homem.

No Espaço, esse bem conhecido por todos os seres, acontecem os factos. Memorizado, é com a nossa rosa-dos-ventos que viajamos, reconhecemos locais e chegamos a casa.

Com descaso pelo Tempo e em anónimo Espaço, Sónia Aniceto oferece-nos uma figuração mitigada, mas preciosa, de rosto indefinido de mulher e de duas mãos nervosas. Pressente-se uma deslocação sem fito, um cinetismo adivinhado em paisagem que tanto pode ser – o “pode ser” é infinito! – de montanhas nevadas como de profundezas magmâmicas, com laivos de purgatórios penalizantes da condição feminina:

Ó Mulher! Como és fraca e como és forte!

Como sabes ser doce e desgraçada!

Como sabes fingir quando em teu peito

A tua alma se estorce amargurada![1]

Há uma tensão ínsita no papel que não lhe advém apenas da grafite, do lápis de cor e do óleo. O fio de algodão, cosido, materializa mais essa impressão de inquietação, que as rugas e quebras do próprio suporte amplificam.

Se “há poucas pessoas que amam as paisagens que não existem”[2], é porque não entendem que uma pintura não é como um copo, cuja única utilidade lhe advém do vazio do seu interior. É precisamente porque na obra de arte não existem interior e exterior e da sua inutilidade aparente é que é possível amar este trabalho de Sónia.

Da figura da mulher se infere também uma regência da vida, uma postura de indicação de sentido, matricial, difusamente na linha de Courbet e da sua “Origem do Mundo”, isto é, de uma cosmogonia feminina que explicará porventura o título da obra.

Das evocações que nos dá, das intuições que provoca, da originalidade temática, da impossível indiferença do nosso olhar, retiramos o húmus com que alimentamos a nossa própria maneira.

Afinal o que procuramos na Arte?

Beleza?

É pouco!

Interrogações, estímulos, perspectivas renovadas, alertas para o que nos rodeia e indícios do porvir, entre outros.

Sónia Aniceto tem um caminho. Segui-lo de perto é prova de acerto e de vida própria.


[1] Florbela Espanca.

[2] Fernando Pessoa.

Texto: Joaquim Pinto da Silva (escritor e activista cultural)

O Autor não aderiu ao acordo ortográfico



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