Amêndoa Coberta de Moncorvo
O Céu desceu à Terra sob a forma de Doçaria
Ao certo, quer seja de carácter eloquente
apenas de consistente insinuação, pouco se sabe acerca da origem das amêndoas cobertas em Torre de Moncorvo. Carecemos de provas convincentes, ainda se disputam visibilidades […] Procuram-se fontes indígenas satisfatórias. Porém, o que é certo – demonstrado em manifestas evidências de outras atenções – é que elas estão de assento nas trocas festivas e na rotina comercial dos moncorvenses desde o início do século XIX. Já lá vão duzentos anos de espólio mercantilista. À certa, até bem mais! E à volta da mesa ou das fraquezas de outros? Ou no regalo das bodas casamenteiras em gratas ofertas! Desde quando? E que dizer da mestria das nossas cobrideiras?
também a descoberta daquele saber-fazer
a aprendizagem herdada […] a onda amodernada do chocolate e do acrónico acanelar da coberta, a serventia e o tempo das primitivas dedaleiras, o silêncio da resistência ou os segredos da popularidade do negócio [?], a comemoração e a excelência das memórias (…) são, entre tantas e tão discordantes inquietações históricas, além de requisitos à conversa, as perguntas mais devidas ao que aqui, na magnitude da «sua» Terra, queremos Honrar – a Amêndoa Coberta de Moncorvo. Dito de pronto: agrada-me, até aplaudo, tal como apadrinho, até faço birras, sobretudo advogo a razoabilidade do eventual berço das [nossas] amêndoas cobertas – por adopção circunstancial (Porque não à cata de eventuais empreendimentos?) ou de mera predisposição às tendências do gosto – nas cozinhas das famílias mais enricadas das várias casas e solares construídos entre o período maneirista e o culto do arcadismo setecentista, (entre a plenitude da Real Feitoria de Antuérpia e os nacionalismos emergentes das “revoluções francesas”), que àquela época tão doceira pontuavam o burgo moncorvense. Estávamos em período áureo da [futura] Doçaria Conventual
arte etérea, mágica, feminina, Manifestação pecaminosa!
ofício exuberante, diabrura sedutora, frenética, misteriosa, e pelo encanto dos portugueses com confeitos, gulodices, amêndoas e amendoados. Ainda hoje – indisciplinados nos cânones nutricionais – o aferro desta gente cisma com uma pequena brutalidade açucarada. Burguesia, clero e nobreza adulteravam condutas, viciavam prazeres [!] O povo conformava-se ou acomodava-se na disponibilidade dos apetites […] De volta ao discurso possível, às honoratas Honras, aos achados documentais (incluindo romanescos, romanceiros, fantasiosos…), à sustentabilidade das razões e – que o seja – às voltas com as intrigas da história. À genialidade da gastronomia feita libertina paixão, às instintivas excitações pelo dulcificado […] À [nossa] Amêndoa Coberta de Moncorvo.
Ainda se apresentam no mercado em três modelos
Bicudas brancas – quando só cobertas de açúcar [branco].
São as originárias, as comuns. São as progenitoras, as mais tradicionais e as preferidas pelos forasteiros ou pelos ausentes de circunstância. Foram as que diferenciaram a confeitaria moncorvense. São o nosso aplauso à imortalidade daquele labor!
Que seja da minha memória, aí pelos anos sessenta/setenta haveria poucos emigrantes moncorvenses que nas malas de retorno a França, ao Luxemburgo, Holanda, à Suíça, Alemanha, além da meia dúzia de salpicões acabados de sair do vareiro ou de guarda no azeite das talhas, um bom molho de grelos, Até a vassoura de piaçaba! não aconchegam-se um, dois ou mais pacotes de amêndoas cobertas, quase sempre das bicudas – também uma garrafa de Porto «Três Velhotes» (tinto), de aguentar o ano inteiro, um «Lágrima de Cristo» (branco), gordo e adamado, de meter no frigorífico e fazer uso nos períodos já mais aquentados, uma outra da «Ramos Pinto» para oferta especial – em rostos de melancolia e sorrisos de saudade. A diáspora moncorvense sempre arranjou jeito de louvar as suas cobrideiras e memoriar as coisas da [sua] Terra.
Morenas – além de abraçadas pela respectiva calda de açúcar
também levam à mistura chocolate [só a partir dos anos 40], ou cacau em pó, e/ou canela [desde sempre (?), dizem alguns, sendo, no fim do século XIX, nomeadas de escuras ou amêndoas dos ricos] ou – apenas – calda de chocolate na fase final da sua confecção.
Em relação ao uso do chocolate, recordava [-me] a minha tia Rosa: «foi depois da Guerra, mais ano menos ano, por aí, (talvez) aquando da abertura dos Correios ou (terá sido?) pela festa de inauguração do Cinema (…)» Continuando. «Há quem diga que foram os muitos pedidos dos que vinham da cidade, até dos estudantes em Coimbra, que – por grandeza – exigiam que as amêndoas fossem cobertas de chocolate, como faziam por lá. Eram feitas só de encomenda (…) E pegou moda prás bicudas!»
Peladinhas – quando o grão é revestido por uma ligeira [íssima]
camada de açúcar que não chega a evidenciar os bicos característicos das outras versões – bicos incipientes ou inexistentes.
eram as primeiras ou as cobertas pelas aprendizes do ofício e – de amiúdo – as amêndoas do desenrasque, quando o negócio apertava e havia necessidade de produções mais apressadas
[Também] Que me deite à lembrança
muito por culpa das [tais] conversas comestíveis que fui mantendo ao longo dos anos, legitimadas por algumas das intérpretes da arte, Até há bem pouco tempo ainda se aproveitava uma pequena escolha de amêndoa amarga para cobrir, a Amara, que era utilizada – não por muitos, certamente – à saída da mesa para atenuar o efeito de uns copitos a mais, enfeitar a espiritualidade e favorecer a digestão das petiscadas mais abelhudas. Na opinião deles, experimentada – dizem as histórias taberneiras da Terra, e digo-o eu – evocadora das propriedades sedativas, anestésicas e inebriantes, daquela ascética especialidade
as amaras com a dose certa de vinho fino
aquecido e temperado de canela, numa espécie de hyppocras medieval, eram bem melhores que os alívios apressados dos Alka-Seltzer! Serão estas terapêuticas as primogénitas amêndoas cobertas em Moncorvo? Claro que não! Nem para os confeiteiros flamengos! A tradição curandeira da amêndoa amarga, reportada a problemas digestivos, a desarranjos abusivos, ressacas e dores de cabeça, tratamento de espasmos (…) fazia-se com «amargas» ou amaras – não cobertas de açúcar, em grão simples ou em cozedura – nunca mais de quatro a cinco por dia e num período muito curto de tempo, devido à sua toxicidade. É saber de retoma recente!? Quando muito estas «amaras» – de Rhazes – poderão estar na origem das cobertas [doces] dos gostos açucarados nas cortes abássidas e saladinas dos séculos IX-XII! Por cá e por toda a Europa renascentista, quando tal saber arribou, veio já em plena doçura – drupa mais cobertura.
Modo de saber fazer
Se a minha memória e a dos meus interlocutores
a quem fui sacando informações [e aclaramentos] ao longo dos [últimos] anos, ainda não se atrapalharam demasiado com o multiplicar dos anos nem com os contratempos de outras adversidades, era assim que a minha tia Rosa as fazia […] era assim que as cobriam.
Rosa Monteiro [1927-2002], reguense de nascimento [Sedielos], a viver em Torre de Moncorvo desde 1935, entre outros negócios que assumiu, foi doceira de amêndoas cobertas até à Páscoa de 1977, com “cacos” num baixo da Rua Manuel Seixas (a antiga Rua da Salgada, quase em frente à revivalista «casa do brasileiro» – a Casa da Avó) e venda à porta no Largo do Rocio (a Praça das Regateiras), em parceria com a sazonalidade de outra doçaria
Escaldava os grãos em água fervente, sem os deixar cozer, pelava-os, ficavam a secar dois a três dias e, de seguida, torrava-os no forno em latas apropriadas – tabuleiros armados em folha-de-flandres. Finda esta operação, descomplicada, espalhava-os numa bacia de cobre redonda [«do tamanho das minhas braçadas»] assente num alguidar de barro grosso cheio de rescaldo – o “caco”, à medida da bacia – em que a arte de controlo da temperatura do borralho não era saber de qualquer uma. Benzia-se e benzia a bacia e, pouco a pouco, em ritmo de volteio e de bom toque para quem passasse na rua, remexia-os, remexia-os, cuidadosamente, com os dedos protegidos pelos dedais da costura
não só de protecção às falangetas dos calores dos borralhos e do encosto às quenturas do cobre, ou a outras contingências do ofício, também de moldagem aos [clássicos] bicos – técnica que poderá ter-se iniciado junto das confeitarias flamengas ainda no decorrer do século XVI ou já nos primeiros anos do século XVII, (admissível, apenas, porque a pintura da época não o retrata claramente), pela história de fabrico dos dedais e [certos] formatos adquiridos pelos confeitos
regando-os de açúcar em ponto – ponto de pinga lenta, ponto de pérola, que é outro dos segredos das cobertas, mais ou menos um quilo de açúcar por cada litro de água, em água recolhida na mítica Fonte de Santo António (pelos vistos, sabe-se lá porquê, outras doceiras preferiam águas mais férreas – das águas do Chafariz de Lamelas), calda nem sempre clarificada com claras de ovo – com ou sem aromas, a intervalos de colheradas de sopa. Uma baciada das boas levava pelo menos sete dias de trabalho sofrido […] Contado [também] por ela, pela tia Lurdes e pela minha mãe que nos períodos de maior aflição davam uma ajuda aos negócios, e ainda com as expeditas achegas da vizinha Filomena Souteira (…) para o exercício de cobrideira encartada bastava ter o imposto de selo pago, o boletim individual de saúde em dia, a obrigatoriedade da prova da tuberculina e BCG, ter os apetrechos necessários
a bacia de fabrico e a caldeira de cobre para a fervura da água e do açúcar, o caco de barro prás cinzas com umas brasas de aquecimento e um trempe de ferro, a lata da torra, uma colher da sopa e uma concha, um caneco e um coador, oito dedais de costureira, mais um banco de assento, um avental branco de peitilho e um lenço de amarrar o penteado
algum dinheiro para pagar o terrado das festas, «trocar o chumbo nos baixos do Tribunal» – a aferição das balanças pelos serviços camarários – pagar a contribuição industrial à Fazenda, a compra do corredor de enchimento e dos sacos de celofane, em substituição dos cartuchos de papel e da venda a granel nos taleigos de linho grosso e estopa, e – claro está – a matéria-prima
açúcar, chocolate, ou cacau, canela e água (…) Quanto ao grão, quanto às amêndoas, sem ser as que vinham da «União» ou as que comprava aos Mesquitas da Corredoura, a minha tia, tal como as outras de porta aberta todo o ano, preferia as Verdeais e as Romeiras dos cantoneiros, também podiam ser as Aleixas por serem adocicadas, e distinguia-as bem pela prova, porque eram as melhores. (Hoje sabe-se que isso é verdade).
Qualquer um de nós, rapazolas, já em período de férias, lá tratávamos de organizar os nossos amigos na brecha aos amendoais mais massacrados nestas aventuras empresariais, para venda do grão às doceiras mais apalavradas (ou a pequenos ajuntadores que ocultavam as nossas identidades), e assegurar as maquias necessárias para ter à mão umas boas coboiadas ou fazer figura de homens num dos Cafés da vila […] Certezas que muito ajudaram a estruturar a história e a manutenção social destes abicados.
Os confétis, os biquinhos que se partiam nas braçadas
das principiantes ou nas pressas dos volteios, escombros artísticos ou rebotalhos da inabilidade, ficavam para mim e para os meus companheiros. (Ou para outros sortudos.) Guardava-os numa bolsinha que a minha tia me arranjara, os sacos de celofane eram barulhentos no mexer dos bolsos! Que bem sabiam com uma golada de generoso! Ou com uma escorropichada às sobras do enchimento das garrafas de licor de canela! Que é feito [?] de outras certezas de apelo aos embaraços destas estórias que fazem das cobrideiras moncorvenses as guardiãs de tão delicados e memoráveis legados dos confeitos da doçaria barroca.
Diziam que o licor de canela da Ti Antoninha Biló, mãe da enorme escritora que é Júlia de Barros Biló – daqueles tão alicorados contos ao luar de Agosto da [nossa] Corredoura, daquele linguajar de olvido e silêncio – era o melhor! Talvez! O da Adélia Caranca, da Xica do Porto, Áurea Lapa, Maria Júlia Nunes, Maria do Heitor (…) da Lígia mãe do Teófilo ou da Filomena Souteira – históricas doceiras moncorvenses – também não eram maus! Ainda puxam saudades! Mas, que bem recordo!, (para que fique de indício à disputa das memórias), quando a menina Lucília Ceguinha – que seria prima do escritor argentino Jorge Luís Borges – levava o oratório de culto à «Sagrada Família» a casa das minhas tias e sem ser necessário perguntar-lhe, em vez do protocolar vinho fino por tarefa tão aguardada, lá requestava e botava a baixo um bom copo de licor de canela com a inevitável súplica e meia mão de peladinhas pró retorno.
Não é que o Céu desceu à Terra!
Embora muito mais se pudesse reafirmar em loas
à “Amêndoa coberta de Moncorvo”, aos seus percursos e apegos à Terra, também acerca de outras figuras da dinâmica social e empresarial que [muito] devem ter contribuído para a sua subsistência, resguardo e divulgação
do imperial empresário que foi António Caetano de Oliveira ao sendinês Amadeu Ferreira que se aprazava de as ofertar nos seus locais de trabalho e me obrigou a escrever este texto […] Todos, à sua maneira, as ilustram de memórias e as estimam no gosto
sobre a notabilidade da doçaria [conventual] portuguesa e da imoderada paixão freirática pelo açúcar, ovos e amêndoas, acerca do mito da confeitaria pós-renascentista, barroca e modernista, das cismas históricas e do orgulho de arte tão identitária, fico-me por aqui, antes que os pés das pacientes cobrideiras
sejam eles, agora, de Deolinda Morais, a quem tributo cortesias de reconhecimento e agradeço relatos de vivências, de Maria Palmira e Sílvia Dinis, Mª Júlia Rodrigues, Cândida Carvalho, Lurdes Caetano (…) ou da veterana Elsa Martinho, que continuam a refrescar ancestralidades e a estimular saberes, botem inchadura, à certa arranjem umas estaporadas hérnias nos costados ou umas artroses na leveza das ossaduras, levem com alguma escaldadela no encosto ao caco ou no descuido dos dedos desprotegidos, porque este labor amiserável é bem capaz disso tudo, e o aroma destas delícias inofensivas ainda um dia destes a elevar a «Maravilha» da doçaria portuguesa ou a património cultural imaterial da Humanidade pela UNESCO
me activem imoderadamente a circulação
promovam apetites mais descuidados e mais ferozes! Bem hajam! Agora só falta o verde dos amendrucos [e o engano do licor de canela!].
O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico