O peixe das tréguas

Não sei se a gana dos portugueses ao bacalhau foi consequência das aventuras marítimas,
da procura de novos lugares… ou se terá sido o inverso! Como não sou historiógrafo nem cronista habilitado, fio-me tão-somente nas minhas regradas leituras de alguma História, nas muitas conversas escutadas e… principalmente no meu infinito prazer bacalhoeiro para vos fabular acerca deste simplório mestre peixeiro… Que já foi peixe-pau para o povo viking, por ser seco ao frio glacial e quedar-se que nem uma tábua ressequida… peixe da rocha para os escandinavos noruegueses, por ser seco nos empedrados costeiros… carne da Quaresma nos tempos da devoção religiosa extremada, por suprir as ausências da carne terrestre nos dias de abstinência… peixe dos pobres porque a burguesia era tantas vezes de esperteza limitada… peixe dos marinheiros porque a conserva salgada, seca ou fumada, era a provisão mais facilitada ao martírio imprevisível das viagens mareantes… continuando a ser o nosso mais fiel amigo pela prontidão e constância gastronómica. Historicamente — apenas na perspectiva do apetite e dos embaraços fisiológicos —entendo-o como o peixe das tréguas aos jejuns desnecessários, insensatos e injustos.

Às voltas com a história
Recuando no tempo… Este peixe —meio ingénuo, apalermado e de matraca sempre aberta —oferecia-se de barato aos anzóis e às iscas matreiras, e sorte a nossa pelas imposições abstinentes que fariam dele, em sociedade limitada a outros pescados, a solução razoável da angústia gástrica e da cobiçosa gula. Esta moda regimentada, a partir dos séculos X/XII e nas contas opinativas de escribas de agora, teve suporte na imagem bíblica dos “pescadores de homens”, nos milagres da multiplicação, na pureza do seu habitat aquático e na preferência dada por Jesus ao provar uma posta de peixe quando visitou os seus incrédulos Apóstolos após a prometida Ressurreição. Agrada-me tão aceitoso argumento!Para outros, aquelas explicações teológicas também poderão estar associadas à actividade piscatória da maioria dos doze apóstolos e, segundo Frei Herculano Alves, ao acróstico que formam as letras da palavra peixe em grego – iktus. [Iesus: Jesus; Kristus: Cristo; Theou (de): Deus; Uiós: Filho; Sotér: Salvador – Jesus Cristo de Deus Filho Salvador.]
Por várias vezes, nas inúmeras representações da Última Ceia
essencialmente na arte paleocristã da fase catacumbária, chegou mesmo a sanear-se o pacato cordeiro pascal pelo sortalhudo peixe. Mas, na falta de qualquer documento probatório e nas minhas crenças dedutivas, a razão mais fácil de aceitar esta absoluta soberania peixeira é o misticismo reitorado da castidade e da penitência. A carne era o símbolo da violência e da morte, da natureza física e da sexualidade animalesca; o peixe era o credo da espiritualidade, da sexualidade perfeita e maternal, sem luxúrias e sem o prazer da cópula (…) Regressando ao bacalhau, que não é um peixe qualquer e é o desígnio deste cibo de conversa, admito-lhe percursos diversos e versáteis: a rota do sal percorrida pelos lendários vikings até à ria aveirense e às salinas sadinas; posteriormente, a rota casamenteira, política e comercial, de alguma nobreza portuguesa e castelhana, acertada até aos reinos dinamarqueses; e não são de excluir as corridas baleeiras na esperança do aprovisionamento do toucinho da Quaresma. Outra conjectura introdutória poderá ter sido o resultado da troca de experiências marítimas com o enigmático povo basco, mestres bem sabidos na arte da captura à baleia, que, pelos vistos, já se tinham cruzado à bruta com os seus homólogos vikings. Porque não a consequência da mera aventura coincidente com o período dos descobrimentos? Ou, então, pela necessidade criada em encontrar produtos alimentares pouco perecíveis? Aliás, a nossa atracção pelo mar era natural: nas costas tínhamos os «malteses», de onde “nem bom vento, nem bom casamento”, e as querelas eram frequentes; em frente estavam o mistério da ousadia e a riqueza plausível… a sede da proeza e a atracção pela conquista.

Certo é que Portugal, a partir do fim do século XV
é um país bacalhoeiro, mesmo que o provável primeiro livro de gastronomia português, já do século XVII, não lhe faça qualquer registo. A primeira referência na escrita gastronómica, assim o creio, surge no manuscrito do médico Francisco Borges Henriques no ano de 1715, Receita dos milhores doces e de alguns guizados…, no preparado que designou como Frigideiras de Bacalhau, parelho do actual Bacalhau à Braz. Uns anos mais tarde, aí por volta de 1780, Lucas Rigaud, outro cozinheiro da realeza, no Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha, já nos oferece três receitas afrancesadas de bacalhau: à Provençal, à Bechamel e Assado nas Brasas (…) Era comida plebeia, apropriada para os suprimentos quotidianos e das grandes viagens marítimas, e nesta época seria impensável que alguém retratasse os comeres populares ou da sobrevivência. Até o médico mirandelense de D. João V considerava que comer bacalhau gerava «humores melancólicos e mal depurados das suas partes excrementícias» (…) Portugal era, desde essa época de «tempos modernos», uma terra de barcos e pescadores – de sardinha… e bacalhau. É também no ano da morte do venturoso manuelino que a literatura portuguesa regista o consumo de bacalhau [In Auto “Cortes de Jupiter” de Gil Vicente]. Todavia, é engano pensar-se que o idílio da satisfação gastronómica com o providente bacalhau tenha sido de fartura continuada. As guerras que se fazem por tudo e por nada —quer pela bestialidade ou pela liberdade, quer pela conquista de uma donzela ou por infidelidades de alcofa, com o excesso de vinho ou com os azeites entornados, até pelo ordinário bacalhau — foram o quotidiano inútil, mas histórico e sucedido.

A primeira briga séria, com este peixe de permeio
deve ter ocorrido no seio da própria família viking; a segunda entreteve ingleses e alemães da Liga Hanseática pela disputa dos direitos piscatórios nas águas islandesas; mais tarde, já no último quarto do século dezasseis, foi a vez de espanhóis e ingleses se aliviarem à pancada. Portugal que nesta famigerada época aturava o mal-amado reinado filipino vê-se envolvido naquela fangueirada com a requisição das suas frotas para integrar a tão afamada Armada Invencível. Acontece que uma simples tempestade e a ignorância dos capitães espanhóis, a arte marinheira e a matreirice dos ilhéus britânicos, humilharam o orgulho patético deste rei pouco sábio e da sua insensata “grande y felecísima” armada. Infelizmente, como uma desgraça nunca vem só nem bem acompanhada, os corsários ingleses tiveram permissão gloriana de alargarem os estragos aos barcos lusos que cruzassem o mais recôndito dos mares, assim como, aos portos de domínio ou de influência portuguesa. Até os laparotos dos holandeses, oportunistas da desgraça alheia, se sentiram no direito de molhar o bico e contribuírem para a ruína do nosso poderio marítimo.Nesses sessenta anos filipinos, a frota mercante portuguesa ficou numa lastimada lástima que se reflectiu na regularidade de abastecimento do dito peixe das tréguas.

Vivia-se o período mais negro e tenebroso da Igreja…
da “Santa” e ignóbil Inquisição que ditava o rigor dos cumprimentos religiosos e as respectivas punições. Acentuou-se, naturalmente, o exercício da abstinência — os dias de magro do Advento e da Quaresma, as cinquenta e quatro sextas-feiras e as vésperas dos principais Dias Santos. Eram quase cento e sessenta dias de larica e penúria gastronómica (…) Por esta altura de forte observância religiosa e social, o jejum das tréguas à gulodice teve a contemporização da febre do bacalhau, inaugurada no século anterior com o achado da Terra Verde ou Terra Nova, conhecida por Terra D’El Rei de Portugal, pelo açoriano Gaspar Corte-Real, que haveria de baralhar os arrumos das descobertas históricas para o Novo Mundo (…) A abstinência, com bula ou sem indulto, acabou por ser o melhor empurrão à indústria pesqueira e ao consumo bacalhoeiro e de outros peixes conserváveis.

«Ele disse que devia ser sexta-feira, dia em que não podia vender nada, excepto pratos de um peixe conhecido, em Castela, como badejo ou, na Andaluzia, como bacalhau.»
[Miguel de Cervantes – Dom Quixote de la Mancha, 1605-1616.]

O pescado marítimo fresco era exclusivamente para os litóreos e ribeirinhos. No interior provinciano a miragem pantagruélica da míngua periodiqueira só era possível com esses seres marinhos salgados, secos ou fumados —sardinha, arenque, polvo e bacalhau… —os peixes espinhentos e moles das águas doces ou com as carnes oleosas de rãs, caracóis e lontras que a Igreja tolerava. Os vizinhos do mar, esses sortudos!, ainda engrossavam o prazer gastrófilo com as afrodisíacas ostras, os prolíferos caranguejos (…) as tartarugas de parição fácil(que até nos tanques de alguns mosteiros se procriavam). O impedimento religioso era extensível aos ovos, leite e queijo, por serem de origem animal, acabando esta proibição por ser revogada no decurso do século XVII. Porém, para muitos larpeiros do período renascentista, esta reposição ao despropositado veto alimentar haveria de se transformar numa alegria gastronómica. Provocou o abuso do leite nos “manjares de porcelana” dos cozinheiros gauleses, que conceberam o bacalhau com natas, fingiram o bacalhau com queijo e tramaram o escabeche de bacalhau com leite natado.Contudo, mesmo na tribo peixeira reinou a balbúrdia zoológica e a trapalhada teológica. Enquanto o rodovalho suscitava dúvidas moralistas por ser tão gordo, pelo contrário, o salmão, um peixe também gordalhudo, não levantava a mínima suspeita clerical e gozava de regalias como esta: “o sermão e o salmão, pela Quaresma, estão na perfeição”. Enigmas zoo-teológicos de difícil compreensão!Isto para não falar dos mistérios do prostituir peixe e carne na mesma refeição. Todavia, estes preceitos doutrinários não foram acatados geograficamente com idêntica obediência e resignação. Por exemplo, os povos das sestas do sol mediterrânico e de vocação cristã admitiram bem a invasão peixeira a que a dieta da “limpeza da alma” obrigava, aliás, completaram-na com mais este raçudo peixe facilmente conservável; por sua vez, os povos sombrios do centro e norte europeu, de temperamento tristonho e hábitos carnívoros, não acolheram pacatamente estes excessos proibitivos, principalmente as abstinências dos inúmeros dias de vigília.
Revoltas — silenciosas ou efectivas —não faltaram
castigos e perseguições também não se rogaram. Já Carlos Magno, tornado primeiro Imperador do Sacro Império Romano pelo Papa Leão III, bem antes das imposições régio-papais, mandava sentenciar a pena de morte para os pecadores deste inocente acto gastronómico, e o poder religioso polaco prescrevia o desdentar dos pobres culpados desta ingénua desobediência. Por cá, mesmo no tempo do reinado da diabólica Inquisição, quase três séculos de torpidades, não havia regras certas nem nada democráticas: tanto podia ser a morte gratuita para xardos e cristãos-novos, a fogueira pírica para os amadores da alquimia, a excomunhão besta dos intelectuais e dos apoucados,como o perdão interesseiro dos«heróis da pátria», matronas da corte, aristocracia e burgueses apatacados. Por isso, não foram de estranhar as ideias esconjurantes do monge alemão – Martinho Lutero – contra os jejuns decretados pela Igreja Católica Romana. No seu entender, esta interdição era irracional, desleal e mercantilista, quer pela venda permitida de Bulas e Indultos aos beatos endinheirados, quer pela protecção ao negócio pesqueiro capitalista.

Voltando ao peixe-bacalhau…
É aceitável que o jejum, a abstinência e a interdição carnívora sejam os pressupostos do crescimento bacalhoeiro e o infortúnio do pobre peixe. Pescadores, barcos e frotas, multiplicaram-se e reproduziram-se quase sem fim, incluindo nos países reformistas ainda hesitantes entre o consumo interno e a oportunidade de exportação para os povos de vassalagem papal… entre a engorda capitalista ou o mero equilíbrio das respectivas balanças comerciais. Enfim, a Europa cada vez mais empestava a peixe e Portugal a bacalhau – «cozido, assado ou estragado», para os odores do Rei Carlos I. [Durante o curto reinado deste diplomata, extravagante e azarado rei, numa obra editada no Porto e coordenada por Michaella Brites de Sá Carneiro, O Cosinheiro popular dos pobres e ricos ou moderno tesouro do cozinheiro, encontramos vinte e duas receitas de bacalhau; no primeiro compêndio de cozinha portuguesa,Tratado Completo de Cozinha e Copa, publicado por Carlos Bentoda Maia, aparecem vinte e seis receitas bacalhoeiras, muitas das quais com continuidade assegurada no receituário dos nossos dias. No entanto, naquele que é considerado o primeiro livro em que a cozinha é associada à nacionalidade, Cosinha Portugueza ou Arte Culinária Nacional, publicado por um “grupo de senhoras” de Coimbra, já constavam trinta e sete receitas de bacalhau, entre as quais o bacalhau cozido e com grão.]

«Os meus romances, no fundo, são franceses, como eu sou, em quase tudo, um francês – excepto num certo fundo sincero de tristeza lírica que é uma característica portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho, e no justo amor do bacalhau de cebolada!»
Eça de Queiroz (1845-1900) – carta a Oliveira Martins.

Ilusões, pantominices e artimanhas

Perante aquele destino abstémio e mortificante…
freiras e monges, graças à disponibilidade de tempo, arrumaram os produtos permitidos (legumes e hortaliças), os admitidos (ovos, leites e queijos), as técnicas culinárias conhecidas, e legaram-nos uma infinidade de manjares bacalhoeiros, acrescentados por uma outra infinidade de receitas das cozinhas quotidianas e festeiras. Inventariá-las seria inglório, escusado, aborrecido, mesmo que se ordenasse à imaginação uma paragem paciente para essa recontagem irrealista. Registo, no entanto, a tentativa de alguns amancebados deste fiel amigo para o agrupamento das diferentes confecções, em famílias afins…O bacalhau das profissões – à alfaiate, à prostituta (ou bacalhau com todos)… dos lagareiros; o bacalhau dos estados de alma e do corpo– da mulher da vida, à landraia, pensado na cama…; o bacalhau dos petiscos – em bolinhos, pastéis, rissóis, pataniscas…; o bacalhau dos fidalgos – à aristocrata, à Conde ou à Marquês (daqui ou dacolá) …; o bacalhau da vida citadina – à Congregado, à Conselheiro, à Deputado…; o bacalhau das individualidades – à Salazar, à Castro Ferraz, à Afonso Costa…; o bacalhau da popularidade – à Brás, à Gomes de Sá, ao Zé do Pipo…; o bacalhau da família – da avó Deolinda, da tia Helena, da mãe Rita, da madrinha Joaquina…; o bacalhau com outros – assado em folhas de couve, de cervejada, apimentado… com castanhas ou com cogumelos; o bacalhau regional – à Portuense, à moda do Douro… à transmontana; o bacalhau dos feitiços – à bruxa de Valpaços, à mil diabos… à sogra; etc… etc. Vale a pena sugerir a alternativa intelectual a estas mentes esforçadas: o bacalhau podredas terras barrosãs, o bacalhau assado com pão centeio, as migas de bacalhau dos moncorvenses ou o saforado bacalhau ciumento, porque, afinal, a versatilidade é tanta e tão permissiva que do bacalhau quase tudo se faz, até o odioso óleo de fígado da minha infância [a inesquecível emulsão Scott] para fortalecer os pulmões e outras doenças definhadoras. Ah! Como eram boas as peles de bacalhau assadas na brasa!Infelizmente, com honrosas excepções de que ainda vos falarei, nas nossas bibliotecas e dos nossos ilustres académicos, não abundam os escritos bacalhoeiros sistematizados para se evitarem coisas de outros nada sensatos e pouco preocupados com os factos, tão varredoras do prestimoso contributo dos portugueses na arte marinheira e piscatória do mundo ocidental.

Quanto à etimologia da palavra-produto
remeto-vos para os lexicologistas sabedores deste ofício, que acreditam que tem origem no latim baccalaureu, no basco bakailoa, no francês cabillaud ou no neerlandês kabeljauw, não esquecendo que o falar popular lhe destinou outros atributos: pessoa magra e esguia, madeira de pinho escaveirada, colarinhos excessivamente engomados, fatias de renda ou de cambraia branca pendentes do pescoço ao peito, cumprimento através de um aperto de mão… Bem! “Para quem é, bacalhau basta!” E para que não se fique “em águas de bacalhau”, atente-se à observação mariola de um citadino à passagem de uma mulher janguista e bem arreada de arronchos: “tanta chicha e eu comendo bacalhau”.

Pegilhos e condutos – transmontanices

O encanto lúbrico da palavra, ou este discurso encantatório
também poderá ser espelhado nas práticas gastronómicas — na tal dúzia e meia de transmontanices. Por exemplo, com um bacalhau entalado, prelúdio de uma fantasiosa noite nupcial quando emparelhado com um vinho espumante de frescura sensual – isto na sabedoria de uma bela e atrevida mulher de virtude, mogadourense de corpo desabusado e alma assanhada… bem sabida nos feitiços gastronómicos! Parece, porque o escutei da boca dela, que é encalacrado desta forma… Em água gelada demolhe as postas de bacalhau, de um dia para o outro. Depois de retiradas as peles, que vão para uma assadura, desince-as das espinhas estorvantes e transforme-as em lascas amaneiradas. Descasque e corte uma cebola grande avermelhada, em rodelas finas, além de uma batata média por cada um dos «conversados». No fundo do tacho acomode o rodelado da cebola, salsa bem picadinha, dentes de alhos laminados, cabeças de cravinho, malagueta ou colorau picante, sal e pimenta preta, as lascas bem desfiadas e as batatas brancas também rodeladas.

Regue, azeitando à farta, e leve a lume brando, até cozer, abanando o caçoulo de vez em quando para que o bacalhau fique bem entalado. Antes de servir, enfeite com as peles assadas e azeitonas alcaparradas ou quartilhadas e pétalas de silva-macha cristalizadas. Depois da companhia do espumante, termine com um doce de laranja xaropado de escaramujos. Agora, as outras e demais fantasias são por vossa conta (…) Dona Clotilde Eugénia Coelhoso, uma ilustre senhora de Vila Verdinho, Mirandela, herdou um “bacalhau de sua mãe” e através do seu filho, primata do petisco, transmitiu-me a base deste bacalhau de escabeche… Demolhe o bacalhau partido em pequenos tagalhos, em quantidade a seu gosto e em porções regulares. Afervente-os e retire-lhe as peles… e as espinhas que puder. Coloque bastante azeite numa frigideira e, enquanto este fica bem quente, bata ovos suficientes para envolver todo as postas e para que ainda fiquem sobejos dos ovos batidos. Frite todo o bacalhau, coloque-o numa terrina funda e reserve o restante da gemada. Descasque uma boa cebola, corte-a para o azeite da fritura e deixe-a alourar; quando bem loura, deite vinagre de vinho branco a gosto sobre a batida dos ovos guardada. Retire do lume a frigideira, ainda com a cebola, verta tudo sobre o dito até ficar mergulhado no azeite e guarde o escabechado durante pelo menos dois dias. Antes de servir, como petisco, no aconselhamento de uma outra benemérita senhora, experimente besuntá-lo com uma pasta amendoada, como faziam com os peixes do rio nas casas ricas de algumas quintas vinhateiras do Vale do Douro (…) Não sei, nem me importa, como outros forasteiros aprenderam ou criaram os “bacalhaus” com legumes. O que sei é que por toda a Terra Fria Transmontana ainda se faz um bacalhau greleiro sem os molhos salamaleques da francesice e das fantasias da nouvelle cuisine… Atestem-no com um vinho bastardo de adega aldeã e verão que o bacalhau é como o fado, tão poupado na pauta e tão esbanjador na garganta.Mas, emterras de soutos e castinçais, felizmente, ainda é costumeiro adornar desta forma o bacalhau com as bufas – o bacalhau com castanhas…E no Douro Vinhateiro, das lendas e dos encantos das essências caloríficas, ganhou lugar a doçura de um bacalhau melado…

Neste rosário de contas incertas
seria insensato da minha parte não elogiar a alma da arte bacalhoeira e sentimentalista dos transmontanos. Deixo-vos, por isso, a súmula dos produtos hortejos, das arcas e das tulhas despenseiras, das adegas miraculosas e dos almoços requintados, em toda a região – o bacalhau à transmontana, tal como sempre o vi fazer de Torre de Moncorvo a Valpaços… aromatizado ou não de vinho fino (…) Demolhado o bacalhau, tire-lhe as peles e as espinhas; abra as postas ao meio para as entremear com uma fatia de presunto, também demolhado. A seguir unte a assadeira com azeite e acomode as postas recheadas. Cubra-as com rodelas finas de cebola, alouradas num estrugido de azeite; misture-lhe, na fritura sobrante da cebola, o tomate aos cubinhos (se for tempo dele), alho picado e um pouco de farinha diluída em vinho branco. Tempere o molho conseguido com uma pitada de sal e pimenta preta moída; junte-lhe uma cheirada de vinho generoso e folhas de louro. Com este adubo bem azeitado regue as postas de bacalhau já colocadas no caçoulo forneiro. Polvilhe com salsa picada e abafe este preparado com puré de batata; pincele com a gemada das marelas batidas. Leve ao forno e, quando estiver tostado ou estaladiço, volte a polvilhar com mais salsa picada e rodelas de ovo cozido. Sirva ainda quente.

Bom! Antes que as pataniscas do Jorge da Raia
— que muitos vila-realenses afirmam serem as melhores dos “arredores do mundo” —fiquem alvoroçadas, o bacalhau da bruxa de Valpaços se envirote, as roupas velhas abusem do grão-de-bico, aquele inesquecível arroz de bacalhau da saudosa Estalagem do Caçadorfaça augar os teimosos ignorantes da dieta alimentar dos portugueses, as ganas às papas de bacalhau faça reviver pelintrices de outrora, o bacalhau podre dos barrosões se abaste de um qualquer azeite transmontano ou as massadas de bacalhau dos durienses atestem o paladar dos beirões… ou o bacalhau entalado da morena Elisa atice os apetites mais lunáticos… testemunho e insisto que o bacalhau, cá entre nós, é e sempre foi com muito azeite e alho.
(…) À partida dos lugres bacalhoeiros, um apelo angustioso: – Tragam-me bacalhau e do bom
e, se puderem, “pesquem” também um bocadinho de azeite (…)
Manchete do bi-semanário «Os Ridículos», de 5 de Junho de 1945, Ano 39, nº 3893.
Que gente sábia!
E o meu bacalhau favorito é, depois do bacalhau no borralho
… o bacalhau dos camponeses nas sopas rijadas da segada.
(…) Sempre que vi fazer este bacalhau de borralhada, a pedido ou de circunstância, os recados das cozinheiras eram semelhantes: “há que aproveitar o lume!”; “as panelas são para o caldo e para a cozedura das batatas e dos grelos”; “as folhas das couves têm que ser rijas”; “atenção ao chiado”… Puxava-se uma borralhada, ainda bem atiçada, para um dos lados da lareira. As postas do bacalhau, previamente demolhadas e bem enxutas, eram encaixadas uma a uma entre duas fatias o mais finas possível de presunto atoucinhado, embrulhadas em folhas de couve penca ou galega e atadas com um fio da atadura das alheiras. A seguir iam para a lareira e eram cobertas com a borralhada apartada – “uma boa agasalhada de cinzas e brasas vivas”. Mal se sentisse o chiar do bacalhau era sinal de que já estava assado. Com a tenaz retiravam-se os embrulhos, abriam-se e ficavam só as postas de bacalhau. Numa travessa de ir à mesa, arranjavam-se as postas de pele virada para baixo, regavam-se com azeite até entranhar e alindavam-se com cebola crua às rodelas. O acompanhamento, também bem regado de azeite, era com batatas cozidas com pele ou batatas a murro e grelos cozidos. “Haverá coisa mais simples e melhor do que isto?” (…)
Antes de concluir esta conversa, que pretendi aligeirada
mas de estímulo ao debate, anoto estes dois derradeiros registos contraditórios. Auguste Escoffier, mestre incontestável da cozinha moderna do século XX e escritor de obras marcantes, escreveu a este propósito: (…) «Devemos aos portugueses o reconhecimento por terem sido os primeiros a introduzir, na alimentação, este peixe precioso, universalmente conhecido e apreciado»; Mark Kurlansky, jornalista e escritor, na [sua] biografia do peixe que mudou o mundo conseguiu retratar (!) a dieta alimentar bacalhoeira dos países lusófonos apenas com uns «sonhos de bacalhau» açorianos e um «bacalhau com leite de coco» brasileiro – É obra! Com um bocadinho mais de tempo acredito que o dramaturgo americano tivesse tido a oportunidade de dar uma pequena espreitadela às obras de Mário Moutinho, Álvaro Garrido, José Ferreira dos Santos, Jorge Simões, Manuel de Oliveira Martins, Manuel Luciano da Silva, Valdemar Aveiro (…) Carlos Consiglieri e Marília Abel… Saberia, então, que Portugal é o primeiro consumidor mundial de bacalhau salgado e seco, muito à frente dos outros grandes consumidores… Com mais alguma disponibilidade talvez lhe fosse possível visitar o Museu Marítimo de Ílhavo que alberga uma vasta colecção de objectos relacionados com a pesca à linha do bacalhau. Com mais um ligeiro esforço certamente teria o prazer de proviscar algumas das infinitas maneiras de cozinhar o bacalhau pelos portugueses… Enfim! Admito-lhe, por isso, a falta de tempo para estes esquecimentos. Como não faço menção de lhe emprestar algum do meu tempo,dedico-lhe o relambório do “bacalhau quer alho” do pequeno Saúl Ricardo … [e]que se amanhe!Por último, espantem-se os salamurdos albardeiros, as seringonas resinadas, principalmente, os matutos ignorantes que esgotaram a minha paciência e ousaram desassossegar a minha ingénua tolerância, e todos os arautos do apedeutismo moinante que ainda pensam que o assunto bacalhau está esgotado. Experimentem aquele bacalhau de escabeche amendoado, aconcheguem-se no borralho do bacalhau e atrevam-se com aquela transmontanice de apresuntar em vinho cheirante o pobre peixe e verão que o bacalhau pensado na cama será bem melhor que as bacalhoadas de tantas individualidades.

Conheço-te, bacalhau, mesmo que venhas disfarçado.
Provérbio cubano

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

Deixe um Comentário

Your email address will not be published.

Start typing and press Enter to search