Comer sem azeite é comer miudinho

lastros de abertura

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“Não me chames azeitona até que não me colhas”
– dito popular.
Adoçar azeitonas p’rá talha [Azeitonas de talha], curá-las do excesso de acidez e aromatizá-las [Azeitonas de cura] — inteiras, quartilhadas ou esquartilhadas, retalhadas, esmagadas, britadas… — por toda a região olivícola transmontano-duriense, foi uma tradição associada ao aproveitamento dos melhores frutos caídos ainda em verde e já algo grandotes… das primeiras azeitonas das árvores mais jovens e de fácil ripagem, das variedades mais precoces ou de fraco rendimento em azeite e da acção dos brécheiros, por norma os vileiros mais carenciados, principalmente no período pós-vindimas … deixadas a perder o verdor em cestos peixeiros e sacos de rede, incluindo rabudos, pardelhos e galrichos rabaçeiros, colocados de cascalheira e em contra-corrente na ribeira mais próxima (…). Desenvolveu-se, naturalmente e em especial nas zonas de maiores produções, um autêntico arraial de saberes e sabores: condimentadas e perfumadas com ervas de cultivo ou de recolha, conservadas numa salmoura de sementes de salsa, vinho e mosto cozidos e água melada, à moda dali e dacolá, azeitonas cortadas, apenas golpeadas, de descasque, fatiadas, recheadas do que fosse possível, azeitonas pretas em vinagre de vinho, azeitonas secas, azeitonas de escabeche, de sal, em mel e azeite, azeitonas britadas, alcaparradas… O importante era que durassem muito e evidenciassem a gana, o talento e a artimanha de cada curadeira. Hoje em dia é uma rotina de época, também uma actividade económica promissora, e escolhem-se sempre as melhores azeitonas e das variedades mais apropriadas para a conserva: da gordalhuda Santulhana à azeiteira Cobrançosa… e borraceira Negrinha de Freixo. E poucas já serão as mesas familiares e restaurativas que dispensem a presença de azeitonas de entrada e/ou acompanhamento a qualquer tipo de refeição.
As alcaparras transmontanas
são feitas de azeitonas verdes, quando muito a começarem a pintar.
Esmagam-se em cima de um bruíço com o auxílio de um maçóco madeireiro, retirando-lhe o caroço britado. De seguida, colocam-se as polpas em vasos de barro e lavam-se com água fervente que se retira ainda morna para ser substituída por água fria. Quantas e mais frequentes lavagens, melhor. Passados seis a oito dias, sempre a bom ritmo de banhos adoçantes, estarão, de certeza, prontas para consumo, depois de temperadas de sal na última muda de água. Também não negam o empenho de umas boas notas ervanárias.
Azeitonas de escabeche
Por sua vez, a arte de conservar as azeitonas em escabeche aromatizado de malaguetas a sério, alhos esborrachados, ramadas de orégãos e bela-luz, folhas de louro, alecrim picado e sementes de funcho e de cominhos bem esmagadas, num simples frasco de vidro, ficou-nos das vindimadeiras do Douro de influências conventuais, quando o feitor-rogador permitia a apanha das negruxas e bicudas caídas da árvore e se impunha a necessidade de fazê-las aguentar por mais uns tempinhos. (Há quem diga que esta mania de escabechar as azeitonas era coisa das galegas mais sabidas, acoutadas no Douro, vindas do sul de Espanha e ao serviço na cozinha dos quinteiros.)


Azeitonas e alcaparras queimosas ou de empenho
Queimá-las para o empenho, incluindo o britado das alcaparras, com um molho de azeite bem quente — aviado de alho laminado, orégãos não em demasia, grãos de pimenta preta, malagueta também de bufadouro e salsa esfarrapada, acabado de vinagre de vinho branco e raspas de limão pouco cascudas — foi uma prática saída da imaginação de algumas das nossas druidas de alcova, que recomendavam às ditas mulheres respeitáveis quando estas intentavam encontros furtivos com os respectivos amantes. Tanto estimulavam ganas e desejos como acompanhavam e substituíam as virtudes atribuídas ao promisso macarrão das prendadas! [Preparado de massa curta, à base de um perfumado de sorça de azeitonas alcaparradas com molho de tomate vermelho maduro, alho bem alheiro e sardinhas das mais pequenas que houver, envolto numa confecção e serviço ritualizados, a evocar o histórico spaghetti alla putanesca das napolitanas “da vida”: fortificante para elas e como chamego odorante para os seus fregueses engravatados.]
O queijo de ovelha
mais de mordisco merendeiro do que lastro à manja, tem que ser das terrinchas, porque o amojo das outras churras só dá mesmo p’rás próprias crias, e de fabrico saído das ordenhas primaveris ou dos restolhos veraneios. [A estas herdeiras da rusticidade badana e das vontades lactantes das mondegueiras, injustamente, os serviços oficiais veterinários entenderam levá-las ao registo como Churras da Terra Quente. Compreendo, no entanto, a argumentação técnica para este “baptismo administrativo”. Tudo ficou no seu a seu dono com as posteriores denominações: «Queijo Terrincho» e «Borrego Terrincho».] Pode ser de meia-cura, curado e de cura prolongada, protegido por uma pasta de pimentão azeitado e aguardente bagaceira, envelhecido e conservado em talhões de azeite ou em arcas de madeira repletas de grão centeio, acondicionado em frascos de azeite aromatizado de ervas e sabores picantes, como “queijo de família” ou como “queijo merendeiro”. Não admira, por isso, que os pastores dos termos da Adeganha aos Picões digam de amiúdo: «queijo com pão faz o homem são e deles com vinho até as nossas mulheres se lembrarão.»
Porém, entrar na refeição almoçarada sem as parçarias de um cadorno de pão
e um cacharro de vinho, nem pensar!
O pão era só pão – de triga-milha, sêmea obrada ou de quatro cantos, molego, terçado ou quartado, preto, ressuado, charrão ou borneiro, bento ou das almas, cozido em lenha de estevas ou em noite de estrelas! Quando muito, nos tais dias de festa é que poderia ser mais trabalhado e um pouco mais rebuscado: recheado de chichas gordas, entremeadas e enchidos cárneos, peixes de sal, azeitonas e alcaparras delas, ervas de cozinha e frutos secados… Ou, então, era substituído por empadas, bôlas e folares. Mesmo assim, um mordico de “pão” não podia faltar. Nunca! Nem que fosse só para empurrar a comida para cima do garfo, ajudar na merenda ou chiscar qualquer coisinha, enganar o bucho e fintar a lazeira, fazer a limpeza das beiças e das gorduras do prato, medrar o martuço do caldo e as águas da sopa, porque, «sopa sem pão nem no inferno dão» (…). Para o povo transmontano, o pão, essa bênção diária divina, sempre foi um traço de união, um episódio quotidiano e o reconforto dos apertos da vida, o refúgio da abstinência e das penitências religiosas… o princípio do caldo e da sopa. E legou-nos tantos sabores paníferos quanto o número de aldeias, o tipo de lenha utilizada e o recheio prometido. Tantas mestrias quantas cozinheiras-padeiras havia na região. Pois então…
O pão de recheio
pão ou bôla de alcaparras acabadas de curar, que já foi – apenas – de algumas casas agrícolas mais abastadas da Terra Quente Transmontana, também podia ser obrado de azeitonas pretas descaroçadas que se compravam numa das idas à vila – era o pão de azeitonas – usando-se de sortimento pimentos verdes ou amarelados de guarda avinagrada e rodelas de chouriço de carne em vez de pimentos vermelhudos e fatias de presunto lardeado. Trata-se de um pão tipicamente pascal, natalício e de entrudo, concorrente das bôlas e folares da maioria das nossas famílias e em tudo semelhante aos pequenos e ancestrais elioti ou eliopitta gregos de azeitonas conservadas em azeite. Outras famílias rurais ainda preferem trabalhá-lo como bôla meia-sovada recheada de alcaparras, normalmente alcaparras velhas escaldadas e cortadas em pequenos pedaços, sem pitada de açúcar e untada de azeite antes de ir ao forno – é o pão de aldeia.

As bôlas de azeite
são bôlas de massa sovada — pequenos pães espalmados, bem amaneirados — sem traço de fermento, ou quase nenhum, simples de fabrico e de conservação prolongada. Faziam-se, e ainda se fazem, com certa regularidade e durante o ano inteiro, por todo o Nordeste Transmontano e Terras Durienses, lembrando o pão ázimo dos marranos que confeccionavam e comiam pela época pascal. Enquanto na Terra Quente mirandelense e macedense são mais conhecidas por bôlas sovadas, também por bôlas redondas, achatadas ou salgotas, (bôlas calcadas no Alto Tâmega e Barroso), já no Vale do Douro Superior o mais vulgar é nomeá-las de bôlas abarretadas e noutros locais sempre foram tratadas como bôlas azeitadas.
Por norma, nos costumes mais popularizados,
bôlas e empadas, simples ou recheadas, nunca são doces, nem adocicadas, e raramente levam ovos. Doces são os bolos e ovos levam os folares, nem que seja só para o envernizamento do capote exterior antes da ida ao forno. As mais acreditadas excepções vão para as bôlas de bacalhau de cebolada das Terras de Bragança — a massa é feita de farinha triga e ovos de batedura, temperada com retoques de cravinho, colorau doce e pimenta preta, salsa à vontade, sal a contento, alhos e azeite a justo, e o bacalhau cozido em vinho branco — o bôlo de chouriço, também de algumas famílias brigantinas, preparado para dias de festa e guardados em caixas de folha-de-flandres, a empada de ovos e carnes fozcoense e os conhecidos santórios de Penude, presença obrigatória nas festas janeiras lamecenses de honra ao mártir S. Sebastião. Quando a massa é batida com azeite e ovos, fortalecida de aguardente bagaceira e condimentada com sementes de erva-doce, o mais comum é nomear estes elogios cerealíferos de pães de azeite e em alguns locais do Douro Internacional, por bôlas de aguardente, parentes mais avantajados dos bolos de Escalhão, mas sem pitada de açúcar. Em Vila Nova de Foz Côa e por aqueles lados abeiroados, estas bôlas, sem o acrescento abagaçado, são apenas referenciadas por bôlas ou bôlos-folares. Mas, as mais conhecidas e consumidas na região
as rainhas consortes das bôlas desde o século XIX
continuam a ser as bôlas de Lamego, recheadas, à vez, de carnes desfiadas de frango assado, outras carnes de vinha d’alhos, salpicão com alguma gordura, presunto magro e gordureiro, lascas de bacalhau ou sardinha miúda, com procedência nas receitas do antigo Convento de Lamego. São muito apreciadas como merenda e de merendinha a jantares e jantaradas de festança, sobretudo no período dos Santos Populares. Diz-se, e que fique o mito, que terá sido aquando da aclamação de D. Afonso Henriques como primeiro Rei de Portugal, no decorrer das lendárias Cortes de Lamego, por volta de 1139-1143, que pela primeira vez se produziu a “bola” de carnes de porco para fazer face às necessidades alimentares da inusitada afluência verificada ao burgo lamecense.
Também não deixam de ser uma manda gastronómica regional:
as plebeias bôlas de Tarouca, aparentadas das aristocráticas bôlas lamecenses, de bacalhau e sardinhas a rechear a massa amilharada, as populares bôlas de Favaios de carnes estufadas de frango e coelho de criação, empadas ou folares baixos de Freixo só com carnes de porco fritas em azeite, bôlos de sertã ou fritas do Planalto Mirandês e Vale do Douro Superior que poucos ovos levam, o pascalino folar de Chaves que é mais um rolo de carnes do que o tradicional folar transmontano e as empadas de Moncorvo, que só diferem dos folares de Mirandela na forma de armar e por não levarem carnes de galinha desfiadas (…) A bôla de Sabrosa de carne de anho cozida e a seguir frita em banha de porco, de Barroso [mais conhecida por bica de carne], de Bragança e os mais tradicionais pães de fumeiro e de chicha gorda, não incluem o azeite na respectiva confecção ou muito raramente e apenas nas masseiras das casas mais ricas (…).
As empadinhas ou malguinhas de carne
são uma merenda tipicamente vileira, agora mais de fabrico de café/pastelaria do que caseiro. Fazem-se por todo Trás-os-Montes e Alto Douro, à base de miudezas e/ou carnes desfiadas de aves, ou de carne de vaca, como no caso dos históricos covilhetes de Vila Real que a emblemática Pastelaria Gomes oferece diariamente a vila-realenses e forasteiros, desde 1925 — antigamente ligados às vendedeiras de rua nas festas de Santo António, do Senhor do Calvário e da Senhora da Almodena — e que devem o seu nome à pequena forma de barro preto de Bisalhães em que iam ao forno. Aqui, o azeite tinha que estar sempre presente, seja no refogado, cozedura do recheio, untadura da pedra da mesa de trabalho ou na lubrificação da faca de corte das massas. Como também naquelas meias-luas de camadas de massa folhada muito finas, recheadas com carne de vitela – os pastéis de Chaves – que a Dona Tereza Feliz Barreira, aí pelo ano de 1862, trouxe para a mesa dos flavienses para acompanharem o café matinal … e nos fradescos pastéis de entrudo de Vinhais com um enchimento de carne e aparas de vitela, presunto gordo, chouriça nova e ovos cozidos, tudo picado e temperado de sal e pimenta a gosto, que se confeccionavam no sábado magro para serem consumidas à terça-feira gorda, antes da entrada nos rigores da Quaresma (…).
À semelhança das alheiras “daqui, dali e dacolá”
(e demais enchouriçados), o folar transmontano ou bôla de carne transmontana tem artes e engenhos, graças e formas, conforme a folareira, a terra, as posses e os dotes caseiros. No entanto, pode dizer-se, pelo que todas estas manifestações têm em comum, que o nosso folar é “um pão de farinha triga, outrora saída dos grãos do trigo barbela, amassada com um caldo de carnes muito apurado, azeite e manteiga para acomodar melhor a massa; recheado de rodelas delgadinhas de salpicão e linguiça, presunto velho bem curado, toucinho para pingar de onde a onde a massa, carnes de galinha, a miúdo de coelho, peru e vitela – tudo refogado em azeite, bastante azeite, desossado e desfiado em pequenos pedaços; em formas rectangulares, quadradas, redondas ou ovais, com sete a oito centímetros de altura; muito olhudo, leve, envernizado com gema de ovo e de tamanho grande, porque, se forem pequenos chamar-se-ão de folaricos ou merendeiras”. É comedoria de faca e garfo!

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

Parte I

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