Rabos de polvo das bruxas

comer enxota-diabos?

A alimentação é o contento de um aperto fisiológico,
enquanto a gastronomia permite elevar e sublimar essa função…

           Para mim, o polvo sempre foi uma paixão simples

           (sem prazeres de sofreguice nem apetites crápulas), reportada às poucas sabenças familiares, populares ou eruditas. É, no entanto, o meu ponto de partida para esta conversa acerca da receita polveira mais caprichada que me deram a conhecer [os rabos de polvo das bruxas] — a transformação do polvo num preparado enxota-diabos, diga-se dos demos libertinos!

Rabos de polvo das bruxas

           A receita

           Foi desta maneira que m’a contaram pela primeira vez.

           «(…) Limpa-se a polveira e introduz-se num tanchão sobre lume brando para uma cozedura lenta. Ao ficar adiabrada tira-se de lá com um forquilheiro. Cortam-se os rabos em pequenos pedaços, apenas sete, que vão a fritar em azeite juntamente com metade do peso do polvo desrabado de cebolas picadas… até estas ficarem douradas. A seguir acrescentam-se sete dedaladas de vinagre de vinho branco, três copos de tinto velho ou de corpo feito, tomate desgrainhado e bem esmagado, em idêntica quantidade à das cebolas, também uns ralos de tomelo fresco, uma ou duas folhas de louro, três cabeças de cravinho, um cibito de canela e mais qualquer coisa…

Dito em surdina: uma pitada de açúcar amarelo diluída em vinho fino, uma ou duas guindilhas picantes e o oitavo rabo partido em mais de vinte e um pedacinhos…

           Mexe-se bem, sem abusos… tapa-se a caçarola e fica a cozer mais um tempinho. Retiram-se os rabos destraçados, passa-se o molho por um coador e vaza-se novamente sobre os ditos (…)» Julgo que a reproduzi tal qual uma frequentada mulher de virtude de uma aldeia de Freixo de Espada à Cinta a contou. Segundo ela trata-se de uma receita enxota-diabos que pode ser tomada para devolver o desejo aos homens pelas esposas abatidas pela idade, ou pelas canseiras do dia-a-dia, e afugentar o diabo da tentação por outras mulheres mais levantadiças e bem mais retoiçadas.

           Não será antes um manjar bem apetitoso para devolver desejos a amantes tacanhos?

           Acerca do polvo

           O denominado polvo-comum [Octopus vulgaris Cuvier]

           — esse bicho omnipresente em todas as nossas mesas — é a espécie de polvo mais corriqueira na costa portuguesa e existe praticamente ao longo de toda a sua extensão. Trata-se de uma espécie com vastíssima distribuição mundial, sendo muito vulgar por toda a orla mediterrânica, Atlântico Leste, Noroeste Africano e águas nipónicas. Aliás, segundo consta nos registos estatísticos dos mercados piscatórios, só os japoneses consomem mais de metade do polvo comercializado por todo o mundo, seguindo-se a Grécia, Espanha, Portugal e Itália (…) É um animal de porte médio, podendo atingir mais de um metro de comprimento e um peso total a rondar uma dezena de quilogramas, embora a média seja de mais ou menos de três quilogramas. O seu corpo é mole, flácido e languinhento, constituído por um manto sacular e oito braços de arreio bucal, raramente excedendo o triplo do comprimento do manto, sendo o primeiro par o mais curto e o segundo e terceiro mais longos e espessos. E uma das características mais notórias que permite a sua distinção com o polvo-do-alto, [Eledone cirrhosa Lamarck], o segundo mais abundante nas zonas costeiras portuguesas, consiste na existência de duas fiadas de ventosas em todos os braços do “nosso” polvo, enquanto este “polvo-cabeçudo” só possui uma.

           A coloração destes solitários invertebrados é muito variável

           acinzentada, acastanhada ou avermelhada, de padrão mosqueado ou reticulado, dependendo do seu estado e idade. São animais de difícil localização, principalmente para os pescadores amadores e “alcatruzeiros”… são excelentes nadadores à mínima ameaça, tintureiros nas fugas apressadas e na camuflagem defensiva, zaguchos e esquivos, introvertidos, excepto durante a azarenta corte nupcial… e estão adaptados a viver em habitats muito diversos, ocupando desde recifes de coral até fundos arenosos. Aproveitam ainda pequenas fendas e buracos existentes nas zonas rochosas para se protegerem de possíveis predadores (…) Tal como a maior parte dos cefalópodes, o polvo-comum é um animal carnívoro e de grandes ganas durante todo o seu curto ciclo de vida; ou seja: alimenta-se de uma grande variedade de presas, embora a sua preferência vá para os crustáceos, especialmente caranguejos, seguindo-se os outros moluscos e, por fim, os pequenos peixes ou outros menos astutos. Por sua vez, estes apetitosos bicharocos também não deixam de ser componentes fundamentais da dieta de alguns peixes mais guichos e grandotes, dos poucos mamíferos marinhos e de certas aves mareantes – tipo ganso-patola e pardela-patagarro.

           O que nos dizem aqueles que mais sabem sobre as suas propriedades nutricionais e terapêuticas?

           Que o polvo possui baixas calorias, sendo uma [boa] fonte de proteínas e aminoácidos essenciais, como a leucina que não é produzida pelo corpo humano. Com alta concentração de zinco, é razoavelmente abastado em vitaminas do complexo B, outros sais minerais [potássio e ferro] e taurina — aminoácido não essencial que tem o poder de proteger as artérias sanguíneas, prevenindo as doenças cardíacas e cerebrais, actuando ainda no fortalecimento da actividade hepática e como desintoxicante. Por ser rico em lipoproteínas de baixa densidade (LDL), é desaconselhado a quem tem excesso de mau colesterol no sangue ou para quem sofre de processos alérgicos. E o seu consumo deve ser muito moderado quando for introduzido na alimentação das crianças ou nos regimes dietéticos das grávidas.

           De Paris às feiras transmontanas

           Com a excepção do Japão — do sashimi que devorei em Paris como sendo um sushi de peixe e polvo, servido com molho de soja e wasabi, aos takoyaki [pequenas pelotas assadas ou fritas, tipo bolinhos de bacalhau] — direi que não abundam receituários imaginativos de polvo, quer em Portugal, quer nos outros países de hábitos polveiros. Não teve os adeptos lusos do fielbacalhau e das suas mil e uma maneiras de o idolatrarem. Sorte, muita sorte mesmo, para os cozinheiros de hoje! Pese embora a minha memória se afadigar cada vez mais com o decorrer do tempo, as capacidades financeiras de agora pouco mais permitirem do que sobreviver de apontamentos passados, registo apenas algumas dessas referências gastronómicas que ainda avivam os meus créditos de jovem viajante. Por exemplo… Os polvos “à provençal” acompanhados de arroz meio maladrinho — em bourride com tomate e vinho branco, ou em daube — temperados com cognac e preparados em vinho tinto, sempre aromatizados com ervas da Provence, servidos em qualquer restaurante de Marselha a Nice, ou, depois de cozidos, fritos em azeite, alho, vinho branco e salsinha; o risotto ou a tagliatelle piccanti al polpo que recordo de Taormina e, inclusive, do Vale de Aosta, onde o mar já fica bem longe; as estimulantes saladas de Korčula, que os croatas dizem ser a terra natal de Marco Polo (?), quando a polvada vem com a ajuda de um vinho Grk — um branco bem encorpado desta ilha dálmata que atordoa qualquer incauto; os variados estufados de polvo greco-macedónicos — com uma variedade de ervas condimentares, tomate, cebolinhas, vinho branco, vinagre e canela — que não dispensam a frescura de um Retsina nem uma visita à teocracia e a tantas estórias gastronómicas do Monte Athos; os keftedes de polvo — espécie de almôndegas temperadas de orégãos, cominhos, tomilho fresco, salsa, canela e azeitonas — feitos um pouco por toda a Grécia; o chtapodopilafo, arroz de polvo, presente em qualquer restaurante da ilha de Creta; o popular polvo de salmoura servido como entrada ou a tradicional salada de polvo com tomate, azeitonas, alho e cebola, temperada de azeite, louro, orégãos ou basílico e erva-doce, limão e vinho tinto, que se encaixa bem na simpatia discreta de um Assyrtiko de Santorini…

           Por todo o Mare Nostrum é o povo grego quem melhor se entende e melhor trata este eremítico animal. E por cá? Ou pelo país vizinho? (…) Antes de listar algumas das nossas receitas polveiras mais populares, desafio-vos a um lastro merendeiro com “ovas de polvo secas” tostadas no carvão e regadas com um molho de azeite, alhos picados e folharicos de coentros, [que bem se fazem na Fuzeta ou em Olhão!], seguidas de umas “pataniscas” de polvoà maneira das terras aquilinianas.

           Com o apetite já engrolado e antes que ele destrave outros menos atilados

           vamos ao prometido elencar do alegado receituário polveiro (…) Arroz de polvo…A forma mais vulgarizada de cozinhar o polvo é na companhia do arroz. É também aquela que mais o faz render, variando a sua confecção, não de região para região mas de cozinheira para cozinheira, com a metodologia de cozedura [cozido em aguardente bagaceira, água temperada com sal ou com uma cebola inteira descascada, salsa e uma ou duas folhas de louro], o preparo do refogado [acrescentando alho e tomate], a soltura do arroz [no forno, mais ou menos solto, malandrinho ou não], o tempero da calda de suporte [com ou sem pimenta] … e por aí adiante! Filetes de polvo… Não me recordo de nenhuma vindima a que faltasse na merenda de recobro os filetes de polvo fritos envolvidos em farinha e gemas de ovos batidos. Serviam-se, ainda se servem, acompanhados de arroz de feijão vermelho, chícharos com couves, raramente com arroz do mesmo e, tantas e tantas vezes, no trato de um simples cadorno de pão. Experimentem acompanhá-los com umas migas de bispo [migas de feijão pequeno, couves-galegas ripadas e ovos mexidos à mistura] e verão que os atrevimentos da pacatez dos chícharos e dos sanocos de polvo são bem capazes de desordenarem as posturas à recepção bispal! Polvo guisado… O guisado de polvo mais acomodado, familiar e despretensioso, o mais tradicionalista nos nossos meios rurais, até à chegada dos congelados e dos supermercados, era confeccionado com polvo de meia-cura ou de meio-sal. Quando na horta se dispunha de tomates e pimentos e na despensa não faltassem cebolas, alhos e malaguetas, colorau e pimenta, não havia guisado que os dispensasse. Polvo à lagareiro (a)… Tão simples! O polvo é cozido e, em seguida, grelhado. É servido com um regado abundante de azeite bem quente, onde deverão ter sido alourados uns dentes de alhos e pequenos pedaços de cebola. Como acompanhamento, generalizado a toda a ruralidade portuguesa, são utilizadas as batatas a murro. É um dos pratos mais típico de Portugal, de norte a sul, que se faz durante todo o ano e em qualquer restaurante digno desse desígnio, sendo as lagaradas de bacalhau e polvo – comeres de inverno associados ao fabrico do azeite novo – a sua origem. Vinagretes de polvo… Era um dos petiscos merendeiros de Verão – de taberna, casa de pasto ou mesa patronal – mais usual por terras durienses. Da polveira cozida retiravam-se os rabichos e a cabeça, partiam-se em pequenos pedaços e avinagravam-se para o empurrão diáriodo inevitável copo de vinho do fim de tarde dos jornaleiros das vinhas do Douro. Polvo cozido… O polvo cozido acompanhado de batatas, ovos cozidos, salsa esfarrapada, tudo regado de azeite e vinagre, ainda é um prato natalício por todo o Trás-os-Montes e Alto Douro. Polvo no forno em vinho do Porto… Nas casas mais abonadas do Vale do Douro, das casas vileiras ou das quintas vinhateiras, a utilização do vinho fino, cheirante, tratado, generoso, mesmo nos assados de polvo, era uma constante, marcando a diferença em relação às cozinhas mais populares ou do dia-a-dia. Polvos secos… Sova-se a polveira para a amolecer, escala-se, passa-se por salmoura e seca-se ao sol. É bem agradável este polvo seco ao sol assado na brasa, [que ainda se faz em muitos locais do litoral alentejano, Nazaré, Feira das Mercês-Sintra] ou no forno, servido em alguns restaurantes algarvios de Tavira, Lagos e Ferragudo. Polvo à moda dos Açores… São várias as receitas de polvo açorianas. Muitas, mesmo! Porém, julgo que não existe um “polvo à moda dos Açores” mas variados polvos à moda ou à maneira do povo açoriano.

           Augusto Gomes, ilustre gastrónomo, escritor e jornalista terceirense, na sua obra gastronómica descreve algumas dessas receitas mais emblemáticas. No entanto, aquela que aqui tento reproduzir resulta de uma misturada de conversas gastrófilas, acabando por não reproduzir nenhuma das receitas conversadas nem por ele referidas. Todas têm os seus segredos e respectivas variantes (…) O melhor foi desafiar o apetite num Verdelho dos Biscoitos, acertar contas com um bom bife do «Alcides» na companhia de um surpreendente Terras de Lava da Ilha do Pico, e desatar a impingir-vos este pretenso resumo consensual como mais uma das receitas de polvo à moda dos Açores… Amanhe o bicho e coza-o em água e sal, cortando-o depois em pequenas rodelas. Numa frigideira funda faça um refogado com azeite e cebola picada. Logo que esta esteja dourada, acrescente o tomate já esmagado, os alhos bem picados e um pouco de salsa. Deixe apurar durante alguns minutos. Adicione ao refogado as rodelas de polvo, o vinho branco de cheiro, uma ou duas folhas de louro, mais um pouco de salsa, massa de malagueta, pimenta preta, cravinho e canela. Com o tacho tapado, tempere de sal e deixe em lume brando, durante alguns minutos até o polvo estar macio. Se necessário incorpore um pouco mais de vinho. Sirva bem quente, acompanhado de arroz ou de batatas cozidas, cortadas aos quartos, incorporadas no molho. Polvo à galega ou polvo à feira … Após a cozedura, o polvo é cortado em rodelas finas, polvilhadas com pimentão e sal grosso e regadas com azeite. Trata-se de um prato tradicional das feiras e romarias da Galiza servido em pratos de madeira, mais leves para transportar, ainda que estes tenham tendência para desaparecer por motivos de higiene. Por vezes, é acompanhado por batatas cozidas na própria água do polvo. Também é conhecido por pulpo à Ria, quando cozido em água do mar de Padrón, ou por pulpo a la palancha, em Zamora e Salamanca. Por todo Trás-os-Montes e Alto Douro, primeiro através do fluxo migratório dos galegos para trabalharem nas vinhas do Douro, depois durante o refúgio da Guerra Civil Espanhola, principalmente nas zonas mais raianas, o polvo das feiras ou polvo à galega passou a ser uma realidade na região. Lembro-me bem das nossas feiras e romarias quando se ia à tenda dos Manolos comer o dito polvo preparado pelas pulpeiras galegas!

      Rebuscos bibliográficos

           Retomando o mote que me propus abordar neste cibo de conversa 

           Rabos de polvo, comer enxota-diabos (ou manjar erótico?) – apenas “guisado de rabos de polvo”, porque «das bruxas» é um insinuante acrescento popular à receita destas mulheres de virtude… Depois de escutar da parte de quem conhece e ainda pratica a receita, com destinos e utilidades contraditórias, naturalmente que fiz o que qualquer curioso faria: bisbilhotar junto daqueles que sabem destas artes e catar mais alguma bibliografia. Acrescento que procurei e cozinhei a informação sem grandes preocupações, porque o assunto também não o justifica e a especulação, neste caso, não deixa de ser oportuna e burlesca. Por sua vez, a temática em questão pode bem cair na dinâmica dos denominados comeres afrodisíacos, quer eles sejam enxota-diabos quer sirvam para os atraírem. Além disso, não é por agora meu propósito discutir euforias da mente perante os alimentos, apetrechados ou não de elixires espevitantes às diatribices do corpo, fico-me, por isso, por esta afirmação de Isabel Allende: – “A gula é um dos caminhos mais directos para a luxúria, e se avançarmos um pouquinho mais, para a perdição da alma.” Agrada-me esta perspectiva e aceito-a como um bom donativo para esta conversa polveira; no entanto, a autora nem uma palavrinha animadora diz sobre o nosso polvo.

       Nesta procura apressada de elementos que me ajudassem a enxergar um pouco melhor os atributos cientificados, fantasiosos ou apoucados, deste apetitoso mas azarado animal, poderia anotar o desconcertante apólogo do Padre António Vieira ou outros polveiros comentários —  de Jules Verne que, na epopeia marinha Vinte mil léguas submarinas, nos faz acreditar que a culpa dos estragos provocados aos navios e embarcações seja do monstro kraken, um polvo gigante que mandava nos mares há mais de 200 milhões de anos, idêntico ao monstro da mitologia nórdica que aterrorizava os marinheiros… à saga aos quadradinhos do Homem-Aranha, onde um dos vilões mais maquiavélicos é o famoso Dr. Octopus, conhecido pela sua mente megalomaníaca e pelos seus braços criminosos de titânio, certamente inspirados na manha e destreza das “suas caçadas” (…)

           Regressando novamente à pesca de informações mais dignificantes para o nosso polvo

           recordo uma das leituras que fiz ao trabalho do psiquiatra, investigador da medicina psicossomática e divulgador da história da sexualidade, Prof. Willy Pasini – Il Cibo e l’Amore, excelente obra antropológica e clínica – onde nos oferece uma panorâmica retrospectiva das funções não-alimentares da alimentação que podem substituir o sexo. Entre as várias referências a uma multiplicidade de produtos e a outras tantas resenhas históricas acerca das funcionalidades eróticas da gastronomia, apenas cita o polvo uma única vez. (…) “Polvo à moda de Creta – a tradição de Miconos atribui aos polvos um papel importante no processo de iniciação sexual; tempera-se o polvo com funcho, rega-se abundantemente com vinho tinto, e está pronto a servir” (…) A excelência da obra não foi nada promissora para o andamento deste debate, nem o tempo bem passado naquelas duas aquentadas ilhas gregas. Porém, foram vários os livros que me vieram à memória na convicção dos valores esotéricos deste solitário animal … Mas sobre polvo! Nada, ou quase nada, digno de referência.

       Rebusquei alguns tratados de bruxos e bruxas famosas e dos seus estudiosos: – de Montse Osuna [a “bruxa ecológica”] ao sacerdote claretiano Francisco Rodríguez Pascual e à sua interessante publicação antropológica Sobre magia y brujería. Suportei potadas de palestras, imensas palradas inúteis, embusteiros quanto baste, vários disparates, algumas intervenções profícuas e relevantes, as sempre agradáveis e enciclopédicas conversas com o padre Lourenço Fontes… A mesma conclusão: sobre polvo, nada, nadinha de nada.

           Dado que o meu tempo não é assim tão esticado como isso…

           nem o desafio é suficientemente estimulante para desassossegar a minha pachorrice, desisti de espreitar as receitas aconselhadas para o amor de Ugo Tognazzi ou as cent et quelques recettes pour mettre le coeur en fête de Odile Godard, os filtros de amor de Charles D’Albi, los mejores afrodisíacos de Sara Messao Espinho (…) a magia sexual de Pascal Bewerly Randolph ou os segredos para fazer-se amar do Prof. H. Ridley, os vários guias de afrodisíacos (de Josef Neumayer a Diana Wardburton), etc., etc., em favor de outros prazeres mais voluptuosos: repetir um tal “polvo afogado em azeite com arroz de forno”.

       Mesmo sabendo de outras leituras que o polvo já era consumido pelos japoneses desde a Era Yayoi… que Aegis de Rhodes, um dos sete cozinheiros lendários da Grécia Antiga, o trouxera definitivamente para a cozinha aristocrática grega… que seria uma iguaria muito apreciada na época do Império Romano, constando como ingrediente de vários pratos de Marcus Gavius Apicius… que o famoso polvo de Yucatán continua a ser muito cobiçado em diversos mercados, principalmente no esotérico e afrodisíaco. Enfim, já tinha desistido deste intento quando vi os meus propósitos satisfeitos no livro de Emma Cohen, pseudónimo de Emmanuela Beltrán Rahola, actriz catalã que recordo dos filmes “Mambrú se fue a la guerra” e “El rey pasmado” (também com o português Joaquim de Almeida) e escritora de Hechizos, filtros e conjuros eróticos que nos dá conta do Diário de Maria Branca Dentrago, «feiticeira» espanhola assassinada na sua casa de Madrid em 1988. Escreveu, Maria Dentrago, no seu diário, a 23 de Janeiro de 1982…

       […] Quando o homem a quem dei a minha primeira fórmula musical voltou, estava eu a preparar um saboroso polvo, considerado pelos antigos como um dos afrodisíacos mais activos. Diócles, poeta ateniense que viveu no século V a.C., dizia: «Os moluscos, em geral, excitam o prazer e despertam o desejo, e do polvo, então, nem se fala.»

       O que está a preparar?

       Uma velha receita ateniense: ochtapodi krassato.

       Limpa-se o polvo e, depois de limpo, introduz-se numa caçarola sobre lume brando. Quando ficar encarnado, tira-se e corta-se aos pedaços. Entretanto, aqueço um pouco de azeite e frito ligeiramente os pedaços de polvo juntamente com meio quilo de cebolas picadas muito finamente – se o peso do polvo é de um quilo – até elas ficarem douradas. Agora, acrescento meio copo de vinagre, três copos de vinho tinto seco, meio quilo de tomate pelado e cortado em pedaços, um raminho de alecrim, uma folha de louro, uma colherzinha de canela, dois cravinhos-da-índia e uma colher bem cheia de polpa espessa de tomate. Mexo bem, e tapo a panela. Agora deixo cozer até o polvo estar bem tenro: duas a três horas. Tiro os pedaços de polvo do molho e passo-os por um passador, para depois, o deitar por cima do polvo […] As semelhanças receituárias são notórias, bastante próximas, com excepção do pequeno segredo. Mas uma velha receita ateniense? Com tanto tomate!?

O tal manjar

       O povo transmontano-duriense sempre foi um povo cheio de temores pelas forças ocultas e de fortes crendices populares, fenómeno que se tem arrastado até aos nossos dias. Ainda hoje, em muitas das nossas vilas e aldeias, existe um curandeiro (a), bruxo (a), talhadeira, mulher de virtudes, derindaina, saraçeira, benzedeira, ou alguém que se movimenta muito bem no sobrenatural e tem comunicação com o oculto. Por isso, não é de estranhar que não faltem mezinhas, esconjuros, fórmulas de atalhar (…) para qualquer maleita do corpo, da mente ou da alma! No caso da nossa receita de rabos de polvo das bruxas, da qual tenho conhecimento desde o ano de 1984, julgo não ter origem na dita “velha receita ateniense” nem no desvendado dos saberes gastronómicos de Maria Branca Dentrago. Quem m’a transmitiu, se ainda estivesse entre nós, teria hoje bem mais de cem anos de idade e, segundo ela, a receita foi-lhe legada por uma tia paterna. Pelas minhas contas, nas mãos daquela família, esta receita terá à volta de dois séculos. E, acredito que será mais um manjar de perdição de almas que pode ou não devolver desejos a amantes mesquinhos que um comer excomungador de boas tentações!

           Um bom prato e uma boa bebida sempre foram excelentes pretextos para o erotismo.

           Procure-se antes, ou depois, uma alentada, saborida e desenfadada, companhia para ambos.

           Vamos então ao acto — mezinha e benzedura — e à refeição completa para revitalizar um “casamento atrapalhado” pelas tais canseiras!

           Numa noite de Lua Nova, primaveril, após o bater das nove horas e antes da meia-noite, pegue em meio copo de água de uma fonte encantada e adicione-lhe sete colherzinhas de mel de rosmaninho, acrescente sete de vinho fino branco, sete pitadas de sal grosso e sete de pimenta preta. Junte-lhe, também, sete temperos aromáticos: orégão, sal-purinho, poejo, alecrim, sálvia, manjericão e hortelã. Deixe tudo a serenar no meio de um prato branco, em cima de uma fotografia do casamento dos cujos, até deixar de ver-se a Lua. No dia seguinte, já depois do nascer do sol, beba sete pequenos golinhos desta água de simpatia, depois verta a restante na corrente da ribeira mais próxima de casa e repita sete vezes o seguinte: “nas curvas desta ribeira/entulhos estão parados/o amor de outras vidas/se apagou, hoje é passado”. Ponha a foto casamenteira por debaixo do travesseiro do marido ou da mulher, conforme a culpa do dito cansaço, durante todo o dia, depois guarde-a normalmente. Nos almoços dos sete dias seguintes, a pessoa visada deverá comer no prato usado neste esconjuro. Repita a cada sete anos.

           Agora, o mantimento recobrador…

           Toma-se de boquejo uma boa cocharra de azeite machote para prevenir ressacas e excessos de apetite. Depois há que fazer o lastro à boca com três cebolas fritas embrulhadas em batedura de gemas de ovos pateiros e sete dedaladas de aguardente bagaceira… A seguir, e sem nenhum acompanhamento que não seja o de um ou de dois canecos de vinho tinto benzido no dia de S. Vicente, comem-se os rabos de polvo bem apurados para enxotar os tais diabos mafarricos e devolver outros mais testigos. Após a limpeza do prato comedouro, com um cadorno de pão, serve-se uma porção de compota de figos vindimos…, três amêndoas amargas e sete não amargas, peladinhas e polvilhadas de canela à fartura, tudo abuchado com vinho fino de três, sete ou treze anos. À deita deve-se inspirar o fumo suflado de um pote de cobre colocado no lado esquerdo do leito, para requebrar as dores de cabeça e os arrepios resultantes das possíveis consequências da briolada e regressar, na manhã seguinte, à vida de apetite reanimado. Ah! Este defumadouro de simpatia arranja-se “colocando treze brasas vivas no fundo do pote e, por cima, três colheres de sementes de nabiça, treze areias de sal grosso, sete folhas bentas de oliveira, três raminhos alecrinzeiros, também benzidos no Domingo de Ramos, e três doses de três tipos de azeite”. Depois assopra-se até conseguir-se a dita fumarada contra os maus-olhados.

           Creio que não resolvi o pretenso enigma, nem isso me atormenta

           … mas estou certo que vos poupei muitas horas de pesquisas bibliotecárias e mais certo estou que um dia irão atestar estas dúvidas gastrófilas, ensaiando o dito manjar polveiro. Amanhem-se!

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

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