Eça de Queiroz – Parte II

Do mais “alto lugar” queirosiano. Entre a ficção e a realidade

Tudo, neste lugar, nos fala de tudo. E se o elemento mais emblemático é a própria secretária, onde Eça escrevia de pé, lembro aqui, uma pequena estatueta, sobre o fogão da sala de estar, a que, apesar dos pés trocados – história curiosa! – do escultor Silva Gomes, dizem melhor representar o escritor, remetendo-nos para outros retratos, gravuras, caricaturas de Bordalo Pinheiro, ou para as palavras do seu, já citado, amigo Batalha Reis:

“Uma noite, junto da mesa onde escrevia o Severo, vi uma figura muito magra, muito esguia, muito encurvada, de pescoço muito alto, cabeça pequena e aguda que se mostrava inteiramente desenhada a preto intenso e amarelo desmaiado.

Cobria-a uma sobre casaca preta abotoada até ao mento, uma gravata alta e preta, umas calças pretas. Tinha as faces lívidas, magríssimas, o cabelo corredio muito preto, de que se destacava uma madeixa triangular, ondulante, na testa pálida que parecia estreita, sobre os olhos cobertos por lunetas fumadas, de aros muito grossos e muito negros. Um bigode farto, e também muito preto, caía aos lados da boca larga entreaberta onde brilhavam dentes brancos.

As mãos longas, de dedos finíssimos e cor de marfim velho, na extremidade de dois magros e longuíssimos braços, faziam gestos desusados com uma badine muito delgada e um chapéu de copa alta e cónica, mas de feltro baço, como os chapéus do século XVI nos retratos do duque de Alba, de Filipe II de Espanha, ou de Henrique III de França.
Era o Eça de Queiroz.

Contava o que quer que fosse a um tempo trágico e cómico, nervosamente, dando a espaços gargalhadas – ricanements, como se diria em francês – curtas, e sinistras”.

Passado já mais de um século, desde que, em 16 de agosto de 1900, faleceu em Paris, onde desempenhava as funções de Cônsul de Portugal, permanece a curiosidade de biógrafos e leitores do homem, assim retratado sobre a sua vida, desde o nascimento.

Fosse por modéstia, fosse por outras razões, mostrou-se ele, avesso a que lhe escrevessem a biografia, com diferentes alegações, “Eu não tenho história, sou como a República do Vale de Andorra”. Ou, simplesmente, ironizando com Pinheiro Chagas, «Mas que diabo! Você é um poeta, um orador, um lutador – e eu sou apenas um pobre homem da Póvoa de Varzim”.
Noutra ocasião, refere, em carta a Oliveira Martins (1884), “…Filho de Aveiro, educado na Costa Nova…”, considerada esta, mais tarde (1893) “um dos mais deliciosos pontos do globo”.
E vem isto também a propósito da coincidência de podermos, agora, observar, na sua Casa de Tormes, o retrato do seu avô paterno, no local onde se encontra o mobiliário do seu quarto de dormir: o conselheiro Joaquim José de Queiroz, de Verdemilho, Aveiro, onde passou a maior parte da infância.

De facto, nascido na Póvoa de Varzim, em 25 de novembro de 1845, batizado e registado em Vila do Conde, foi em casa dos seus avós paternos que “nasceu” para o aconchego de um lar que lhe deixou boas memórias de um grande afeto do quotidiano familiar.
E não é preciso – até porque seguramente discutível – invocar a caraterização altamente abonatória, no que aos valores e ao retrato afetuoso do avô do herói de uma das suas obras maiores, Afonso da Maia, na sua Quinta de Santa Olávia – aqui mesmo à nossa frente – em Resende, para dar notícia de que a família de sua mulher, além de diversas propriedades a norte do Douro e no Alentejo, tinha património nesta vila – a “Vila Clara” da “Ilustre Casa de Ramires”.

Para ali se deslocava, com frequência, à atual Quinta do Paço (e porque não Santa Olávia?), a filha do escritor, Maria d’Eça, a ocupar-se de assuntos com os caseiros e com as rendas que pagava à sua própria mãe, Emília de Castro, filha dos Condes de Resende, esposa de Eça. A mesma filha que, primeiro, tornou Vila Nova habitável.
De resto, tendo o escritor viajado, ao que se diz, pela primeira vez, à sua Casa de Vila Nova (Tormes), em maio de 1892, como seria possível conhecer tantos outros lugares na outra margem, pelas encostas do Montemuro, como a paróquia de “Feirão”, por onde começou, muitos anos antes! – as três versões de “O Crime do Padre Amaro”, da dita “segunda fase”? Ou “Oliveira? Ou “Craquede”? Ou “Ramires”, freguesia de Cinfães do Douro, em frente da “Torre da Lagariça”?
Não será indiferente o facto de, independentemente, do casamento com a herdeira dos “Resendes”, muitos anos depois, os seus companheiros mais próximos, de infância e de juventude, tinham sido os irmãos Manuel e Luís, com o primeiro dos quais, viria, aliás, a conhecer o Oriente, por convite à inauguração do Canal do Suez.

Perguntas, aquelas, de aparente pouco interesse para quem poderia esperar aqui um “resumo” biográfico, ou uma qualquer avaliação literária da obra que acaba de ver reconhecido “oficialmente” ao autor dos títulos citados e de muitos outros de uma produção escrita intensa, para quem viveu até aos cinquenta e quatro anos, um lugar ao lado de Camões e de Pessoa.
A abertura ao público, por estes dias, na “Casa” ao lado deste restaurante, da maior “Biblioteca Queirosiana” oferecida por um dos seus mais conhecidos admiradores de sempre, Santos Ferro, poderá dar uma achega para o que verdadeiramente confesso pretender: uma visita ao lugar onde podemos sentir a presença muito próxima da memória do escritor. A uma região que liga três espaços elevados a “Património da Humanidade”, a que vamos chamando “Douro Verde”, no grande Vale do Douro.
Acima de tudo, um convite à leitura dos textos de quem, bacharel em Direito, foi, primeiro, jornalista de profissão, e diplomata, com grande conhecimento e sensibilidade social aos problemas da emigração, e de quem vamos continuando a descobrir, permanentemente, novos motivos de grande atualidade.

Parte I

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