Língua Portuguesa na Ásia

O prestígio de outrora

Ao longo de vários séculos foi o crioulo português de Batávia (actual Jacarta) simultaneamente língua franca e língua de prestígio utilizada por mestiços e indígenas como forma de afirmação social. Testemunha isso mesmo o registo deixado pelo corsário suíço Elié Ripon, que começou a sua aventura asiática em Java, em 1618, tendo regressado a Europa em finais de 1627. Entrementes, combateu em terra e no mar contra portugueses, espanhóis, ingleses, piratas e indígenas. Referindo-se a um ataque a Batávia, em 1619, profere: “não víamos ninguém, apenas ouvíamos as vozes dos portugueses que gritavam “Jesus! Virgem Maria!”.
Já em 1596 os holandeses, futuros senhores daqueles domínios, depararam em Jacarta com um syahbandar (autoridade portuária) falante de português. O facto permitiu-lhes aperceberem-se da importância comercial dessa cidade. Seria, de resto, a Companhia Holandesa das Índias Orientais (VOC) a fomentar o uso do português em Batávia, incapazes os holandeses de implementar o seu própio idioma nas escolas a fim de converter e catequizar as crianças locais. E como urgia a tradução completa da Bíblia para português reinol, foi incumbido o calvinista português João Ferreira de Almeida de realizar essa tarefa. A obra seria publicada em Amesterdão, no ano de 1681, pela Companhia Holandesa das Índias Orientais. A VOC viria, inclusive, a integrar diversas palavras portuguesas no seu vocabulário, tais como: aguade (aguada); alfandigo (alfândega); armada; calcula (cálculo); fetor (feitor); gastos; porto; e seguro.
Para conseguirem um bom domínio da língua portuguesa, à semelhança do que há muito tempo vinham fazendo compatriotas seus, os funcionários da VOC utilizavam-na sempre que podiam. Escreve Duarte Nunes de Leão no seu Origem da Língua Portuguesa com data de 1606: “Os homens desses Estados (Flandres) tanto pretendem saber a língua portuguesa, por o muito comércio que com os Portugueses têm, que todos os anos, nas naus que a Portugal vêm, continuamente mandam muito número de moços, filhos de mercadores e tratantes, a aprender a língua portuguesa, e serve só pelo prémio de a saberem”.
As vitórias holandesas em Malaca (1641) e Macassar (1667) constituiram um rude golpe no uso da língua portuguesa, mas ela resistiu. No sul das Celebes, por exemplo, foi o idioma de correspondência na corte dos sultões de Macassar até, pelo menos, ao final do século XVII. Notava, em 1613, o viajante inglês John Jourdin, que o sultão de Macassar se exprimia “fluentemente em português” e também o utilizava na correspondência que mantinha com D.Filipe III, como o documenta uma carta datada de 1637 e redigida pelo seu secretário Francisco Mendes, que seria seu primo (pois tinha-se casado com uma princesa de Macassar) ou talvez até um dos filhos que tivera com uma mulher portuguesa. Activo entre 1637 a 1656, Francisco Mendes estava encarregado de tratar da correspondência com o reino de Portugal.
Outro membro da expedição de Jourdin, Henry Middletton, recorreu ao português para escrever uma carta ao Grão Mogol, redigida algures no Mar Vermelho a 18 de Maio de 1612.
Em 1639, Sultan Alludin, primeiro rei de Gowa (sul das Celebes), escreve em português ao monarca inglês Carlos I, e Pattingalloang (1600-1654), ávido coleccionador e leitor de livros europeus, era fluente em português e espanhol. O padre Alexandre de Rhodes, que o conheceu em 1646, dele disse o seguinte: “quem o ouvisse falar sem o ver pensaria que se tratava de um português, pois falava a língua tão bem com um habitante de Lisboa”.

São inúmeros os exemplos desse verdadeiro acto de resistência linguística na região. Em 1669, o rei do Camboja escreveu em português ao rei da Dinamarca, assim como faria mais tarde, em 1776, o rei do Sião. Também em português se exprimia o sultão do Brunei, Muhammad Kanzul Alam, na carta datada de Junho de 1809 e enviada ao governador de Macau, José Osório de Castro Cabral e Albuquerque. O mesmo se passava com os soberanos de Palembang (sul de Samatra), caso de Pangeran Seda Ing Kenayan, que redigia cartas em português, e um sucessor dele teve um secretário de origem portuguesa chamado Pascoal Rodrigues de Andrade, a quem ditava missivas em malaio. Há vários documentos que comprovam a presença na corte de luso-asiáticos aí nascidos e que desempenhavam funções de tradutores-intérpretes, tanto na cortes samatrenses de Palembang como nas de Jambi.
São conhecidas as rivalidades e lutas travadas entre achéns e portugueses, mas também houve momentos de aproximação e mútua convivência. Um coisa é certa: a chegada dos portugueses veio destronar o malaio como língua franca na região, o que aconteceu a partir de 1525-30. Pouco tempo depois surgem cartas redigidas em português pelos monarcas de Pedir, em Samatra, e Ternate e Jailolo, nas ilhas Malucas. A entrada em cena dos holandeses não alterou, nesse domínio, o panorama. Em 1601 o príncipe Maurício de Nassau escreveu em espanhol a Alluddin Riayat Syah, sultão do Achém, e este respondeu-lhe em português.

Embaixadores, intérpretes e missionários

Nomeado para o cargo pelo capitão Fernão de Albuquerque, Afonso Vicente, “casado e leal à coroa”, seria o primeiro embaixador luso a estabelecer residência na corte do Achém. Ali viveu até 1602, como nos dá conta o piloto Jonh Davies. Informa ainda este inglês, em 1599, que Vicente ostentava “o título de Dom” e tinha como principal tarefa evitar que os holandeses se estabelecessem naquelas apetecíveis paragens. Aliás, o português seria acusado pelos homens da VOC de ter sido o incitador da surtida aos navios da armada de Cornelius van Houtman, na sequência da qual viria a sucumbir esse almirante. Anos antes, em Lisboa, sob a capa de mercador, o hoje intitulado “descobridor do caminho holandês para as Índias”, reunira todas as informações necessárias para seguir as nossas peugadas a Oriente e aí obter o tão desejado provento. Como se vê, de “descobridor” Houtman nada teve.
Apesar de tempos a tempos serem cordiais as relações entre portugueses e achéns, por força dos interesses, muito longe estávamos de uma relação de amizade. A frase do Hikajat Atjeh define bem o relacionamento dos nossos mercadores com o soberano de Achém: “E o chão brilha reflexos vermelhos, verdes e amarelos, como se fossem estrelas no firmamento. E todos os pequenos calhaus da praça resplandecem por causa do brilho dos diamantes que usa Perkasa Alam [o verdadeiro nome de Iskander Muda]. E todos os Franguesinhos [portugueses] correm a apanhar os calhaus, julgando tratar-se de jóias. Mas quando Perkasa Alam se afasta um pouco, os calhaus deixam de cintilar e os Franguesinhos abrem as mãos para os deitar fora. E toda a gente deitou a rir estrondosamente como se fora um trovão no céu”.
Entre os luso-asiáticos que ganhavam a vida como intérpretes no mundo malaio constam os nomes de Domingos Vale, nascido em Cochim, e de um tal Pedro Ferreiro, natural de Goa. A este último pediu o sultão Iskandar Muda que traduzisse para português uma carta destinada a Luís XII que a 27 de Julho de 1621 seria confiada ao viajante francês Beaulieu.
Na segunda metade do século seguinte, o inglês Thomas Forrest, reincidente naqueles domínios, diz que “o Sultan Oola Odine” [Sultan Allaudddin Muhammad Syah (1781-1795)] falava francês e português. Ao que consta, aprendera essas línguas aquando da sua estada nas ilhas Maurícias, em rota para Meca onde fora, como bom muçulmano, cumprir a obrigatória preregrinação.

Embora Portugal nunca tenha tido qualquer feitoria no Achém, a língua de Camões sempre esteve presente nos documentos locais. E isto pelo século XIX adentro, como o demonstra uma declaração do governante da região de Susu, na costa oeste de Samatra. Na verdade, a língua portuguesa estava, já nessa altura, perfeitamente instalada na corte do Achém. Entre os vários exemplos disponíveis há “uma carta redigida a propósito da venda de um escravo” e uma carta “do sultão do Achém, Sultan Johor al-Alam Syah”, ao governador-geral de Bengala e demais estados britânicos da Índia.
Não era só a língua que marcava presença. De 1808 a 1816 residiu no Achém o comerciante Carlos Manuel Silveira, desempenhando a prestigiante função de “conselheiro do sultão”.
Nesse universo diplomático tiveram também predominante papel os homens religiosos. O período de tréguas e bom relacionamento comercial do Achém com Malaca registado entre 1589 e 1604, deve-se aos esforços de frei Amaro de Jesus, mas também de Tomás Pinto e Afonso Vicente, abonados comerciantes de Malaca. A razão desse desanuviamento conta-se em duas penadas: em 1592, naufraga junto costa de Samatra um navio português. A bordo segue o bispo de Macau, que o sultão Alauddin Riayat Syah al-Mukammil recolhe juntamente com os restantes passageiros. Entre estes, temos o agostinho Amaro de Jesus, nascido em Malaca. Posto que este falava malaio, o sultão trata de o enviar a essa cidade “com oferecimentos de paz e mostras de boa vontade”. Seguir-se-iam trocas de várias embaixadas, tendo Amaro de Jesus servido de embaixador do sultão por duas ocasiões, em 1600 e 1603. Era de tal excelência a sua relação com o sultão que este lhe atribuíu o título de Bintara Orang Kaya Maharajalela Putih. Ou seja, e por partes, bintara (arauto ou mensageiro), orang kaya (título honorífico), maharajalela (próximo do sultão) e putih (homem branco). Este foi, sem dúvida, um relacionamento sem paralelo nos anais da diplomacia portuguesa na região.
Mais a sul, em Bali, parecia haver receptividade quanto a uma eventual presença de missionários na ilha, facto que teria sido transmitido a alguns mercadores que lá aportaram em 1630. Face a essa perspectiva, o reitor do colégio jesuíta de Malaca informou ao vice-provincial em Cochim e, “com custos suportados pelo capitão da fortaleza D. Álvaro de Castro armaram-se dois navios com destino a ilha”. Porém, quando aí chegaram, em fins de Abril de 1635, distinto era o ambiente. Mostrava-se agora avesso aos missionários o rei, e apenas lhe interessava o comércio com Malaca. Na verdade, o seu interesse inicial devia-se à necessidade que tinha da ajuda militar dos portugueses, pois era pressionado pelos rivais javaneses que a todo o custo tentavam islamizar o último, ainda hoje, reduto hindu no arquipélago malaio. Além disso, a intriga holandesa também ajudou. Protagonista deste episódio, o jesuíta Manuel de Azevedo, a propósito, escreveu a “Relação Brevíssima da Viagem ao Reino de Bale no ano de 1635”. Já antes, em 1618, ao desembarcar em Bima (actual Sumbawa) com o intuito de converter o rei local, o jesuíta deparara “com embaixadores de Macassar e do Sunan de Giri, Panembahan Agung, autoridade religiosa de Java oriental”, e ainda um embaixador do capitão e do bispo de Malaca e de Francisco Fernandes, capitão-mor dos portugueses de Solor e Larantuca. Para não desvirtuar, Azevedo apresentou-se como um outro embaixador das personagens citadas mas sobretudo “do rei dos Céus, que lhe mandava oferecer a sua divina lei, e com ela para sua amizade, a salvação para a alma”.

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

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