Merujas

ainda é tempo delas!

É o alerta comestível que a Primavera está de regresso!
A este estímulo à saudade e de pretexto à peregrinação, além de tão amerujado baptismo, acrescento-lhe outras nomeadas ― as que guardo na memória, as que vou escutando por aí, lendo em escritos soltos, por vezes escarranchadas em cardápios de alguma restauração regional, anotadas em prosas de mero soalheiro ― e as que suponho [co] existirem nos linguajares das regiões mais achegadas do país vizinho, onde igualmente grassa por lá tão espontânea mania de enfartar o prazer. E é muita a palavrada que a sustenta! Ó não fosse ela a melhor erva do mundo! Assim sendo, aí vai um pouco daquela enormidade de nomeadas

meruge, maruja, moruja, marujinha ou meruginha, morugem ou merugem ― estas, como sendo as designações mais identificadoras, assim escritas nos canhenhos caseiros e assim faladas em tais oratórias de apelo à terra, por toda a região transmontana, duriense, pela raia alistana, charra, beirã, por terras abulenses ou pela Galiza também experimentada nos seus sabores. Outros qualificativos mais circunstanciais

mariquita, nomeada afectiva que nos transmite a ingenuidade pelo seu desejo, boruja, beruja ou veruja, cada casa com o seu desígnio, cada um com o seu pronunciar, erva-d’água ou erva-das-fontes, em certezas de hábitos por outros consumidores (…) na Catalunha tarraconense, também ali é conhecida por herba de las fonts, também por lá vai direitinha para os alguidares saladeiros (…) erva-de-ribeira ou erva-regueira, talvez (!) fossem estas as designações mais comuns noutras aldeias durienses, erva-dos-sapos, erva anfíbia e barrosã nas récitas luarentas do «nosso» Padre Fontes (…)

um pouco por toda a Galiza, principalmente com estes dizeres sapeiros, isto, abonado pela bióloga Lucía Cerqueiro quando imaginava um gosto ternurento da pintora Maruja Mallo pela dita erva, ela que gostava de se titular de Marúnica e que sendo Ana María adoptou aquele pseudónimo surrealista (imaginação, apenas!), (também na Catalunha occitânica é titulada como herba dels gripaus)

pamplina-de-água, porventura, ainda noutras terras que fogem a estas memórias, onde uma outra e bem diferente «pamplina», a Samolus valerandi L., é reinventada de «alface-dos-ribeiros», como mil-folhas, numerada desta forma aritmética apenas por terras lamecenses, porque a outra Montia é uma «beldroega-miudinha», regagho, regojo ou regajo, é assim que a reconhece o Tiu Ángelo Arribas que nasceu a catá-las nos regatos de Bila Chana de Barciosa (…) e é assim que a nomeiam na região berciana de Ponferrada (…) orelhinhas, em Escalhão dizia-se que não lhe destinavam outra nomeada de dignidade aos seus préstimos senão aquela, borracha ou beldroega-de-inverno junto da lucidez recolectora dos ribeireiros do Sabor que têm de trepar à procura delas pelos fraguedos das Cabanas, agrião-dos-pastores era outro dos alcunhares informativo que de amiúdo se escutava […]

Muitas vezes a confundir-se com uma outra, a Montia perfoliata (Donn ex Willd.) Howell, de folharicos que mais parecem pequenas colheres de cabo longo e que qualificam como beldroega-do-monte ou alface-dos-pastores, a lembrar [-nos] a denominação de desenrasque [miner’s lettuce] que à dita lhe foi dada pelos mineiros californianos do séc. XIX.

E outra seita delas, apenas raianas — de amapelos, melujín a regachal. Estas saudações retóricas fazem parte dos assentos das nossas ementas de etnosinonímias. Tão-só. E haverá outra enormidade delas! Reflexo da grandeza dos seus afectos. Cismas. E é sempre a minha primeira escolha erveira, muito por ser a [tal] salada dos deuses, pelos costumes alimentares que já se perdem até aos dias da [nossa] prima experiência gustativa e pela rotina restaurativa que há muito se verifica em comedouros de refrear tais mágoas de saudade, [quase] sempre de conforto a tão sidéreo comer ― a posta mirandesa. Afortunada maridagem! Bom! Como agrónomo que sou, apologista de naturas euforias e utente dos frenesins herbáceos do professor José Ribeiro [UTAD] que tanto nos ampara quando as contas daquela ciência que vagueia pela vida das plantas assim o exigem, recomeço a conversa pelas coisas mais simples dos saberes da botânica. A Montia fontana L.

Distinta que o é da morrugem-d’água ou lentilha-da-água, a Callitriche stagnalis Scopoli, embora partilhem idênticos habitats, também ela de pequenas folhas e caules comestíveis, e bem díspar da ruderal [dita] marugem ou morugem-verdadeira, a «craveira» Stellaria media (L.) Villars, muitas vezes apontada como erva-estrela ou morrião-dos-passarinhos, esta, erva peluda e de vocação passareira, usada não como verdura às nossas mesas mas como forrageira para galináceos e como planta mezinheira de tratamento a irritações de pele, bronquites mais benévolas e a constipações não muito aborrecidas

é uma erveira anual (ou bienal) e de ciclo curto que não suporta sombras continuadas. Aquática, também de ganas solarengas, ainda assim com dois a três meses de vida comestível, é colhida entre fins de Janeiro e meados de Abril. (Ainda estamos no tempo delas! Comprei-as na passada 5ª feira, no Mercado de Mirandela.) É inverneira, a derradeira da insensibilidade dos dias, a primeira que rapamos dos charcos e colocamos à mesa — é o assomar das primaveras erveiras — aguentando-se bem com geadas desde que moderadas, (até com variações abruptas de temperatura!), e de habitats exclusivamente ripícolas. É uma herbácea de exterioridade atraente, «prima» botânica da beldroega, já considerada cosmopolita e [ainda] indomável à tentada domesticação agronómica. É mais tenra, muito mais frágil e bem mais saborosa que o agrião-de-ribeira, que tantas vezes a acompanha à mesa, e parece-me ser mais dotada na verdura do palato que a insípida alface de tantas futilidades das cozinhas contemporâneas ou que a moderníssima rúcula dos picantes avinagrados.

Na Península Ibérica diferenciam-se três subespécies de Montia fontana L.: (i) ssp. fontana, que habita zonas de alta montanha (acima dos 1 200 m), (ii) ssp. amporitana Sennen., de ampla distribuição (até aos 2 300 m) e (iii) a [nossa] ssp. chondrosperma (Fenzl) Walters, que coloniza habitats de menor humidade, abaixo dos 1 400 m e de distribuição mais limitada.

Erveira de caules alongados, rasteiros ou de fisionomia rampante, que se espraiam por mais ou menos meio metro quando crescem a partir do acalmar das águas e encolhem-se um pouco mais quando saem para terra, (muito) delgados, franzinos e até delicados, ramificados nos nós inferiores, forma facilmente raízes adventícias que lhe permitem uma colonização rápida de novos espaços. Manda folhas ligeiramente carnudas, sésseis, aproximadamente espatuladas, com uma única nervura, às vezes arredondadas no ápice e sempre atenuadas na base, de margens hialinas e opostas duas a duas. As flores, também elas miudinhas, com cinco pétalas brancas, desiguais, dispostas em cimeiras terminais e laterais, em qualquer caso, e com poucas dotadas de unidades reprodutoras hermafroditas, [são] de floração de Abril/Maio a Setembro/Outubro, segundo a altitude e as condições climáticas ambientais. Os frutos são cápsulas quase globosas, geralmente com três sementes muito pequenas, negras e reticuladas. A meruja, erva de aparências tentadoras

é [em síntese] uma agradável daninha
assídua de ambientes fracamente ácidos, também indicadora de riqueza nutritiva, frequentando margens de pequenos riachos, regatos e regueiras, assentando-se à beira de nascentes, paredes ressumantes e zonas periodicamente encharcadas, os tais habitats ripícolas, mas, a preferir a naturalidade de águas correntes e pouco mineralizadas ― hidrófita por se desenvolver em meio aquático ou helófita por crescer na lama ― onde forma tufos, mouchões ou tapetados que podem ser mais ou menos extensos. É mais vulgar na franja nascente do Nordeste Transmontano e pelas Beiras transfronteiriças. Em Portugal [Continental] só é rara no sul alentejano e muito rara no Algarve costeiro. Além da significativa dosagem de humidade, o que é natural pelos seus habitats de preferência (até pela proveniência do termo que melhor a identifica, meruja)

a lembrar o chuvisco, o caídinho da chuva, a borraceira, a morrinha, o morujo (do português antigo) (…) [um] provincianismo transmontano de origem obscura ao contrário dos vocábulos ‘morugem’, ‘merugem’ (?), e ‘morrião’ (?), que tudo leva a crer que provêm do latim mollugine, através de mollugo — termo que Plínio, o Velho, já usava para se referir à (s) planta (s) [Anagallis ssp., ou seria à Stellaria media (L.) Vill. (?)] para tratamento da raiva, mal-de-olhos, asma, inflamações de pele (…) A etimologia da designação, em mirandês, rega[g]ho, estará [certamente] relacionada com a palavra castelhana «regajo» que, no dicionário da Real Académia Españóla [1737], significa “el charco de água detenida”, ajustado, em dicionários mais recentes, para “charco que se forma de algun arroyuelo (riacho), y el mismo arroyuelo”. Este dígrafo [gh] representa um som fricativo velar surdo, que corresponde ao j do castelhano e surge por empréstimo dessa língua.

o seu primo componente é a fibra, ao que tudo indica em teores mais elevados que em muitos dos actuais vegetais cultivados e tão privilegiados nas dietas das nomenclaturas vigentes [a tal alface das matronas romanas, o espinafreiro massacre dos nutricionistas, os cabeçudos repolhos verdes dos hipermercados, os sulfúricos brócolos das cantinas hospitalares ou as ervilhas da cara feia de tanta gente]. Além disso, sabe-se que aquelas folharicas disponibilizam uma ração razoável de proteínas e quantidades apreciáveis de compostos antioxidantes, sobretudo ácido ascórbico, α-tocoferol e fenóis, e podem ser consideradas, entre as verduras de folha, excelentes fontes de ácidos alfa-linoleico ― ácidos gordos ómega-3, ω-3, com um baixo ratio ω-6/ω-3.

Certamente por razões experimentadas ao longo dos séculos e não por pesquisas mais esclarecedoras dadas a conhecimento público, que ainda são [muito] insuficientes para dinamizar o seu cultivo agronómico e discutir outras competências, recomenda-se a sua moderação pelo ‘mau’ contributo dado às reles pedras nos rins, muito pelos teores de oxalato presentes no corpo da planta.

A parte superior dos caules, tenros, com os ditos folharicos de “antes que a erva espigue, o cuco bote cantoria de burlão e a poupa aninhe os ovos na buraqueira das árvores”, (pensado em modo riodonorês), porque tais folhicas vão ficando duras, com sabores menos verdes, ou tão pouco os talos estejam suficientemente desenvolvidos, são utilizados crus na confecção de saladas

simples de amanho, só temperadas com arejos de sal e vinagre aprontado das sobras ou das camas de vinho tinto, um ou outro dente de alho esmagado pra lançar gosto, com ou sem cebola cortada às rodelas, enfeitadas ou não de azeitonas [es] quartilhadas

e muito raramente entram no ajeite de caldos e sopas que, por sinal, até são muito agradáveis pela sua frescura. Confortáveis e estranhas transmitem alegria ao exercício gastronómico. Servem de acompanhamento a qualquer prato. Uns dizem que vão melhor de aconchego a carnes grelhadas de leitão, borrego ou cabrito, ou daquele prodígio divino — tamanho cacho de vitela assada no lume! ― a dita posta, a “posta mirandesa”. Outros asseguram que é às fornadas de galo! Ou como valência a fritadas de peixes do rio, esmagadas de batatas com um naco de barbada assado nas brasas, bacalhau esfarrapado, a ensopados de caça! Enfim (…) Pelo menos ao longo do Douro, que abriga citrinos de doçura tão equilibrada e dá guarida a parentelas herbáceas tão delicadas, achegam-lhe laminados de laranjas e folhagem de outras erveiras — de agriões de ceifar na horta, ou caçados no correr da ribeira, azedas vinagreiras do recosto das muradas e mais raramente (e sem graças) com rabos (as folhas) de lentuga [erva bem conhecida das bermas dos caminhos e infestante recorrente nos nossos olivais]. E tantas vezes, apenas noutros tempos de lutas quotidianas pela sobrevivência, só mesmo para ganharem um ligeiro sabor a picante e estimularem apetites mais furtivos, também lhe misturavam folhas tenras de enxadreias que tanto abundam junto ao fresco dos [nossos] lameirões. É comer de bom ougar! Manifestação profana de honras celestiais! Fala a [própria] experiência de consumidor compulsivo. Porém, há que redobrar prudências, porque – tal como outras aquáticas comestíveis – convivem frequentemente com caracóis pulmonados, os estaporados caramujos do género Lymnaea, os vectores da arrelienta fascíola hepática.

Embora boas daninhas que o são, como não se produzem em condições controladas, nem longe dos pastoreios animais (e da respetiva contaminação fecal), assim como dos infames caracóis, ou seja, previamente ao seu consumo devem ser bem lavadas com vinagre (comercial), ou sabão líquido, ácido cítrico ou permanganato de potássio (em condutas farmacêuticas), para expurgar [todas] as possíveis metacercárias que alojam aquela maléfica bicharada e que ali possam estar enquistadas.

Associada à vida e aos ressumares primaveris, a Montia fontana L. ― designação que homenageia o naturalista italiano Giuseppe Monti e que arrecadou o epíteto latino fontana que significa «água de fonte» ― é seguramente uma das nossas identidades gastronómicas. É mesmo a soberana das ervas saladeiras, delas é a primeira! A melhor do [meu] mundo! E muito provavelmente do mundo de outros.

O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico

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